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'A Balada do Velho Marinheiro' como representação do devaneio dos românticos

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA

COMPARADA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA

“A Balada do Velho Marinheiro” como representação do devaneio dos

românticos

Alípio Correia de Franca Neto

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Teoria Literário do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Letras.

Orientador: Profa. Dra. Viviana Bosi

v.1

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Agradecimentos

Gostaria de deixar consignados aqui meus agradecimentos a pessoas que de uma forma ou de outra deram sua contribuição a este trabalho. São elas:

À professora Viviana Bosi, por sua orientação segura, paciência e amabilidade em me facultar o acesso a um sem-número de referências bibliográficas importantes para esta tese;

Ao professor John Milton, por algumas sugestões pertinentes acerca de focos para abordagem;

Às professoras Moira Andrade e Thaís Giammarco, por sua ajuda na revisão da tese, tornada tanto mais valorosa pelas circuntâncias adversas;

E a Raphael Nunes e a Márcia Frai, por sua solicitude na aquisição de material para pesquisa.

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RESUMO

A pesquisa procurará demonstrar que o poema “A Balada do Velho Marinheiro” (1798, primeira versão publicada), do poeta inglês Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), é uma representação artística do conceito dedevaneio” [revery] dos românticos.

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obra teórica de Coleridge, são a razão do jogo de simetrias presentes no poema, e que seu imaginário e simbolismo radical – aspecto que se aplica a muitos de seus poemas – estão a serviço do que se pode chamar de técnica do devaneio ou do “sonho acordado”. Um capítulo final levará a efeito um levantamento do legado da obra poética e dos escritos críticos de Coleridge e de sua influência sobre os poetas e críticos que lhe sucederam.

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ABSTRACT

This study aims to show that the poem "The Rime of the Ancient Mariner", first published in 1798 by English poet Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), is an artistic representation of the concept of romantic reverie.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

O Ecletismo de Coleridge

Interpretações de “A Balada do Velho Marinheiro” Nossa Proposta

PRIMEIRA PARTE: PURA IMAGINAÇÃO A Revolução Industrial

Ecos da Revolução Francesa na Inglaterra Conceito de Romantismo

A Crítica Romântica da Sociedade Burguesa

O Declínio do Racionalismo Filosófico e Científico O Gênio Romântico

A Poesia se torna “Ideal” A Ascensão da “Imaginação” Aspectos da Filosofia Organicista

A Adesão de Coleridge ao Pensamento Organicista A “Coalescência do Objeto e do Sujeito” I

Conceitos de Imaginação e Fantasia em Coleridge

SEGUNDA PARTE: ÓPIO, SONHOS E DEVANEIOS O Culto Romântico do Sonho e o Ópio

A Flor de Coleridge O Devaneio Romântico

A “Coalescência do Objeto e do Sujeito” II

Coleridge e sua Teoria dos Sonhos, do Devaneio e da Ilusão Dramática

TERCEIRA PARTE: O DEVANEIO COLERIDGEANO As Baladas Líricas

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As Glosas A Epígrafe Primeira Parte Segunda Parte Terceira Parte Quarta Parte Quinta Parte Sexta Parte Sétima Parte

Movimento Circular O Devaneio Coleridgeano A Questão da Moral “Entender sua Ignorância” Considerações Finais

Apêndice I “A Balada do Velho Marinheiro” Apêndice II ““Kubla Khan””

Apêndice III “A Pessoa de Porlock”, de Jerey Reed Referências Bibliográficas

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A “BALADA” DO VELHO MARINHEIRO” COMO REPRESENTAÇÃO DO DEVANEIO DOS ROMÂNTICOS

Alípio Correia de Franca Neto

... some night-wandering man whose heart was pierced With the remembrance of a griveous wrong,

Or slow distemper, or neglected love,

(And so, poor wretch! Filled all things with himself, And made all gentle sounds tell back the tale Of his own sorrow).

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INTRODUÇÃO

O Ecletismo de Coleridge

Vasta é a envergadura do pensamento de Coleridge, e variadas as metamorfoses do espírito proteano com que ele se entregou de modo igualmente fervoroso a tarefas as mais díspares entre si.

O status de Coleridge como poeta nunca foi posto em questão, e os historiadores da literatura parecem unânimes em afirmar que ele se deveu sobretudo a um período, por assim dizer, de “fulguração”, que se estendeu por apenas cinco anos, o ápice de sua energia criativa tendo ocorrido durante o annus mirabilis de 1797 até a primavera do ano seguinte. Por essa época, Coleridge teve contato pela primeira vez com Dorothy e William Wordsworth e escreveu poemas que haveriam de se incluir definitivamente entre os mais célebres da literatura inglesa, “A ‘balada’ do velho marinheiro”, ““Kubla Khan”” e “Christabel”, seus assim chamados “Mystery Poems” [Poemas de Mistério] ou seus poemas “góticos”, o primeiro deles tendo sido o poema de abertura das “Lyrical ballads” [Baladas líricas]. Esta obra, aliás, marca o início oficial do movimento romântico na Inglaterra2 e, se teve em Coleridge um eminente colaborador, encontrou na figura de Wordsworth o seu grande mentor. Tratar de Coleridge como tendo sido exclusivamente poeta é, contudo, pecar por reducionismo.

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ideias liberais e moderadas, embora antijacobinas. Aos signatários do periódico Watchman [O Sentinela], que surgiu por sua iniciativa em 1796 e que estampava seus próprios artigos, além de contribuições de Thomas Poole, seu amigo leal e um homem de opiniões fortemente democráticas, ele foi o defensor das liberdades civis e também o autor de panfletos antibélicos. Para os leitores de The Friend [O Amigo], que trazia ensaios “sobre os Princípios da Justiça Política, da Moral e do Gosto e a obra dos Poetas Ingleses antigos e modernos à Luz desses Princípios”, ele foi um filósofo político e crítico social, amiúde denunciado por alguns como o radical renegado que se converteu a tóri, mas defendendo-se ao deixar patente sua lealdade a princípios, ao primado das considerações sociais acima das políticas (COLERIDGE,1934), e ao afirmar que “os governos são mais o efeito do que a causa daquilo que são”. Reiterava, portanto, sua convicção de que os males sociais advinham de filosofias errôneas, sendo tarefa de intelectuais responsáveis se opor a elas -- opiniões que, a par de seu combate ao ateísmo e de seu empenho em favor da educação para os pobres, tiveram força entre os primeiros socialistas cristãos. Como teólogo, paralelamente às pregações unitaristas e às corajosas e agudas visões acerca da natureza da persuasão, acabou sendo a um só tempo aclamado e atacado pelos tractarianos do setor ritualista e pela facção liberal da Igreja Anglicana, e a ele se credita o mérito de ter introduzido nela uma “crítica de ordem superior”.

Num nível extraliterário, os que privaram de sua companhia e as plateias dos que compareceram a suas conferências – mormente sobre política e teologia, em geral dadas de improviso −, nele reconheceram o orador admirável3, dotado daquele

2 René Wellek informa que à época da publicação das Baladas líricas não havia indícios de uma

consciência geral de que a nova literatura inaugurada por esta obra pudesse ser chamada de romântica (1963,p. 132).

3 Thomas De Quincey (2002), imitando o estilo de Coleridge na concatenação das frases, descreve o

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“estranho poder da fala” com que o Marinheiro se descreve a si mesmo, e de um apetite onívoro em matéria de leituras (já houve quem o comparasse a Goethe por suas inquirições até mesmo no domínio da botânica). Virtualmente nenhum grande escritor do começo do século XIX que lhe cruzou a frente passou incólume a sua influência. Poetas como Byron, Shelley e Keats reconheceram-lhe a penetração das ideias, e prosadores do porte de Thomas De Quincey, Hazlitt e Charles Lamb se debruçaram sobre sua obra, quer para discuti-la, quer para criticá-la ou dedicar-lhe estudos. O filósofo John Stuart Mill, autor de um ensaio que até hoje é tido como uma das melhores introduções a Coleridge, a este considerava, e a Jeremy Benthan, uma das “mentes seminais” e um dos “pensadores mais sistemáticos da época”. George Saintsbury, em sua A short history of english literature [Breve história da literatura inglesa], ao se reportar à obra crítica e filosófica de Coleridge, chega a lhe conferir, um tanto exageradamente, o status de contendor ao título de maior crítico de todos os tempos, alegando categoricamente que “Subsistem, pois, os três: Aristóteles, Longino e Coleridge... não podemos de fato dizer que ele é o maior dos três... mas sua envergadura é necessariamente mais ampla”.

Na verdade, as principais ambições de Coleridge como escritor pareceram ter-se concentrado nessa vertente de sua obra, como atestam os vinte anos finais de sua vida dedicados quase que exclusivamente à organização de escritos dessa natureza. Também o comprova a publicação relativamente recente, datando de 1981, de um manuscrito alentado de Coleridge que veio a ser conhecido pelo nome de Logic [Lógica] e que integra os volumes da publicação de suas obras pela Princeton University Press-Routledge, livro que, apesar de conter seções inteiras que são traduções ou paráfrases de A crítica da razão pura de Kant, desde então passou a ser considerado a mais erudita e fundamentada filosofia sistemática da linguagem desenvolvida por qualquer escritor inglês do período romântico (KEACH, 1996, p.112). De fato, Coleridge difere da maioria dos escritores ingleses que o antecederam justamente por seu empenho programático em prol de uma epistemologia e metafísica em que estribar sua estética, e também por uma teoria

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literária e por princípios de crítica que lhe nortearam a poética. Sua diferença, porém, não está apenas nisso. Coleridge é o grande depositário da filosofia idealista alemã, o maior mediador entre a cultura alemã e a inglesa em sua época, e as controvérsias mais acirradas, que nos piores casos resultaram até em acusações de plágio, tiveram origem no estudo das influências que ele recebeu dessa tradição. René Wellek, que a Coleridge dedica todo um capítulo em sua monumental História da crítica moderna, rastreia-lhe as fontes com extrema acurácia e fornece um balanço equilibrado da real contribuição de Colerige aos estudos teóricos.

Neste capítulo, ele afirma que, em muitos passos importantes de suas obras, Coleridge toma de empréstimo vocabulário, frases e passagens inteiras a autores como Kant, Schelling, A. W. Schlegel, Fichte, Schiller e Jean Paul. O débito para com Kant é reconhecido explicitamente no capítulo IX da Biografia literária, e, dessa maneira, segundo a autoridade de Wellek, “On the Principles of Genial Criticism”, por exemplo, texto que Coleridge julgava uma das melhores coisas que escrevera, segue de perto distinções feitas em A crítica da faculdade do juízo; a aludida Lógica de Coleridge, com as traduções de passos da primeira “crítica”, constitui “uma exposição elaborada” dessa obra, com suas “tábuas de categorias e as antinomias tomadas literalmente” de Kant4; diversos termos-chave de Coleridge, como gênio e talento, advêm do Kant da terceira “crítica”, bem como a este pertenceriam certas distinções que Coleridge fez acerca do belo, do útil e do agradável, além de suas opiniões sobre gosto e sua crença no caráter subjetivo do sublime. Já o reconhecimento de seus débitos para com Schelling, porém, é bem relutante, embora hoje pareça evidente e tenha sido marcado pela polêmica. Na Biografia literária, Coleridge chega a fazer agradecimentos a Schelling e toma para si a tarefa de servir de intérprete da obra do alemão “a seus compatriotas”. Outras vezes, Coleridge acusa Schelling de “materialismo grosseiro”, ou ataca-lhe o panteísmo e as conversões à Igreja de Roma, e, no final da Biografia, condena expressamente argumentos metafísicos de Schelling por seu caráter “informe e

4 Cf. René Wellek, História da crítica moderna, trad. Lívio Xavier, Editora Herder, São Paulo, cap.

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imaturo”5. Não obstante essas vacilações, foi sobretudo por causa desse autor que Coleridge seria alvo de diversas acusações de plágio, vindas à tona pela primeira vez por meio de Thomas De Quincey, em suas Reminiscências, em que dedica ao poeta uma pequena biografia, apondo-lhe uma nota que versa exclusivamente sobre a questão dos supostos plágios6. Assim, ainda segundo Wellek, tiveram origem em Schelling longas passagens dos capítulos XII e XIII da Biografia literária, que são seções conducentes à célebre distinção entre “imaginação” e “fantasia” -- talvez o “mais firme empreendimento de Coleridge a fim de alcançar base epistemológica e filosófica” para suas teorias; o exame da relação sujeito-objeto, de que se ocuparam I. A. Richards e Herbert Read, “sua síntese e identidade, o apelo ao inconsciente”7, são lições colhidas em Schelling; “On Poesy or Art”, tido por vários comentadores como uma das chaves para o pensamento de Coleridge, é “pouco mais do que uma paráfrase da Oração Acadêmica de Schelling”8; à sua Theory of Life, Wellek chama de “mero mosaico de passagens de Schelling e [Henrik] Steffens”. A valorização que Coleridge faz da figura do poeta guarda semelhança com a exaltação feita por Schelling, e também por Schlegel, da do artista e, por conseguinte, da arte, esta elevada a “um papel metafísico que faz dela o centro da filosofia”.9

Não é necessário destacar mais exemplos do recenseamento de Wellek para perceber o papel que especialmente os filósofos idealistas alemães desempenharam na formação de Coleridge; disso, porém, não se deve inferir nenhum servilismo criativo da parte dele com relação a tais autores. O próprio Wellek reconhece que

5Idem, p.137.

6 “Decerto fui eu a primeira pessoa... a apontar os plágios de Coleridge, e acima de todos os outros

aquele, circunstancial, do qual é impossível considerá-lo inconsciente, de Schelling. Muitos de seus plágios provavelmente não foram intencionais, e advieram daquela confusão entre coisas flutuando na memória e coisas derivadas de si mesmas, que ocorre por vezes à maior parte de nós que lidam muito com livros, de um lado, e com a composição, de outro...” (Cf. De Quincey, 1923, p.85-86). Em sua nota, Thomas De Quincey prossegue, no entanto, a chamar a atenção à implausibilidade de “ensaios inteiros” traduzidos terem sido tomados por composições originais pelo próprio Coleridge, afirmando ao mesmo tempo sua imparcialidade no que concerne a sua amizade com Coleridge e a seu suposto dever de relatar “suas opiniões mais francas”. Na verdade, estudiosos explicam a questão dos supostos plágios como decorrência dos problemas de memória de Coleridge, acarretados pelas drogas, e chamam a atenção às explicações e defesas do próprio poeta, bastante convincentes e corajosas, que podem ser lidas no capítulo IX da Biografia.

7 Wellek, op. cit., p.136. 8Idem, p.137.

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Coleridge “combina as ideias que tira da Alemanha de uma maneira pessoal e, além disso, com elementos da tradição do neoclassicismo do séc. XVIII e do empirismo britânico”, acrescentando que esses débitos se aplicam apenas a uma parte de sua obra. Não há motivo para supor que o assim chamado “mestre do fragmento”, ou “gênio” da analogia”, não tenha desenvolvido um instrumento especulativo próprio aquilo que tomou de empréstimo aos filósofos alemães, em virtude de seu poder de introvisão e de sua aplicação em análises pormenorizadas de obras literárias.

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por exemplo, a “New Criticism” [Nova Crítica], uma das contribuições mais importantes da crítica de língua inglesa aos estudos teóricos no século passado.10 Dentre os teóricos do “New Criticsm”, Richards, o criador da “prática da crítica literária”, é um coleridgeano confesso, que chega a considerar Coleridge o pai da ciência da semântica e que propõe uma espécie de ética secular e utilitária, que por sua vez rejeita doutrinas cristãs ou de qualquer outro tipo, em defesa de uma teoria da poesia refratária a ideias e sistemas rígidos. Uma adesão explícita a analogias e categorias orgânicas de valor típicas de Coleridge, bem como a suas ideias sobre poesia como conciliação de elementos heterogêneos pode ser encontrada em Cleanth Brooks (1940, 1948). Também na esteira do Coleridge que considera a poesia produto de uma tensão dialética entre impulsos antagônicos na mente do poeta e, por isso, tendo a “ambigüidade” como característica fundamental11, seguiria, por exemplo, o William Empson de “Seven types of ambiguity” [Sete Tipos de Ambigüidade12], ele mesmo e F. R. Leavis apresentando afinidades com Richards e podendo ser considerados discípulos dele. Herbert Read, um defensor da “forma orgânica” e um crítico que, com interesse pelas belas-artes, se vale do instrumental de Freud e Jung, é outro a receber influência de Coleridge, a quem considera, além de um precursor do existencialismo, pré-freudiano, em virtude de sua preocupação constante com a observação psicológica, preocupação que transparece nas análises dele e que é resultado de sua ocasional vacilação entre “uma base psicológica e uma base epistemológica” para essas análises – vacilação que, de resto, constitui, como tantas vezes se disse, um traço comum à psicologia empírica e aos idealistas alemães.13

O “ecletismo” de Coleridge foi reflexo da vitalidade e do dinamismo de seu pensamento, mas o preço pago por sua personalidade multifacetada foi justamente o caráter fragmentário de sua obra – quando mais não seja a impressão de diversos biógrafos quanto a Coleridge ter tido uma existência, por assim dizer, também

10 Incluídas nela, de modo geral, as obras de T. S. Eliot, de I. A. Richards e de vários críticos

americanos de renome, como Cleanth Brooks, Alen Tate, Crowse Ranson e R. P. Blackmur.

11 Cf. Otto Maria Carpeaux, História da literatura ocidental, Editora Alhambra, Rio de Janeiro,

1981,vol. V, p.1139.

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“fragmentada” –, uma impressão que, é provável, acabou ensejando a atribuição ocasional de epítetos obscuros e imprecisos a sua pessoa, bem como a criação de mitos em torno dela – Coleridge, o viciado em drogas, o plagiário, o procrastinador, o gênio perdido em suas próprias riquezas interiores –, epítetos e mitos que não raro serviram mais para obscurecer do que para aclarar aspectos de sua obra. Fragmentária, esta foi, afinal de contas, produto da mente “seminal” referida por John Stuart Mill, e conserva o mesmo frescor e fecundidade daquelas “sementes literárias”, ou “grãos de pólen”, que era como Novalis e Schlegel chamavam seus fragmentos, tanto um como outro representantes da tradição de que Coleridge haveria de ser o mais ilustre porta-voz na Inglaterra.

Interpretações de “A Balada do Velho Marinheiro”

Na história das artes, não foram poucas as vezes em que uma obra única veio a se tornar, por uma razão ou outra, objeto de mitos, interpretações e doutrinas que acabariam por alçá-la a uma condição de proeminência. Se se quiser um exemplo dentre tantos, lembre-se o caso do Édipo, de Sóflocles, por muito tempo obnubilado pela neblina da controvérsia freudiana e anti-freudiana. Na mesma esteira de pensamento, a Coleridge se pode creditar o mérito de ter sido autor de duas obras do tipo, “A ‘balada’ do velho marinheiro” e ““Kubla Khan””, independentemente da possibilidade de sua personalidade complexa ter contruibuído para torná-las verdadeiros “enigmas” interpretativos propostos às sucessivas gerações de leitores. De fato, no século passado, esses dois poemas se tornaram um objeto de movimentos conflitantes de crítica, até mesmo mutuamente excludentes.

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ecoados por escritores e leitores. Quando esses poemas, monumentos da humanidade, tornam-se clássicos, seus versos reverberam com conotações subliminares que derivam de obras que lhes sucederam. Como disse Eagleton, literatura não é só o que os autores escrevem, é também aquilo que se fala e escreve sobre ela. Por outro lado, grandes poemas são passíveis de sofrer uma “erosão” inevitável de sentido com o correr do tempo, à proporção que mudam língua e costumes. Concomitantemente, porém, eles acumulam novos sentidos e, desse ponto de vista, é possível que a “Balada”possa hoje ser lida com ainda mais prazer do que se poderia fazer na época do próprio Coleridge.

Seria presunçoso, por inexequível, tentar oferecer uma crítica pormenorizada da maior parte das visões conflitantes acerca da “Balada” desde sua publicação. De modo que um lance de olhos apenas às contribuições de estudiosos desde as primeiras décadas do século passado deve ser suficiente para distinguir tendências, fixar linhas básicas de interpretação, traçadas em leituras que hoje se podem dizer “canônicas”, e a partir disso relatar preferências e aversões, com vistas a se optar por um caminho.

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está vazado, foram taxadas muitas vezes de “preciosistas”, além de pouco contribuir com a compreensão do modo pelo qual Coleridge elabora os dados colhidos em suas leituras e os relaciona numa estrutura significativa ou, para usar termos coleridgianos, como esses dados se tornam organicamente relacionados uns com os outros. Mas a magnitude e a influência da abordagem essencialmente biográfica de Lowes foram suficientes para tornar a obra importante.

A crença num “olho de falcão” de Coleridge, capaz de transmudar em poesia tudo o que lia, também foi alimentada por Robert Cecil Bald (1940), em seu The Ancient Mariner: Addenda to The Road to Xanadu, que se opõe a Lowes ao afirmar que as leituras de Coleridge não eram tão aleatórias quanto Lowes supunha. Também diferentemente de Lowes, ele procura avaliar os efeitos do ópio sobre a poesia de Coleridge, explorando outro ângulo da abordagem biográfica. Muito sensatamente, ele arrazoa que, embora Coleridge não estivesse ainda nos estágios mais elevados do vício no ópio, sua experiência como um consumidor já lhe abria as portas ao devaneio.

Ainda na linha da abordagem biográfica, “The mariner and the albatross”, George Whalley (1973) interpreta o poema à luz do que ele chama “uma alegoria pessoal”, enfatizando o grau em que a solidão, os medos e o sofrimento do marinheiro são projeções dos próprios sentimentos de Coleridge.

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sua dependência do ópio como alívio ao sofrimento. É difícil levar a sério a interpretação simbólica de Beres que considera o crime do Marinheiro simbólico do assassinato da mãe, o poema atuando como válvula de escape para o poeta extravasar sua agressividade reprimida14. Em que pese a aguda análise que o autor faz do caráter de Coleridge, muitas vezes se questionou a possibilidade de sentidos simbólicos inconscientes se tornarem passíveis de manipulação num poema tão rico em variedades simbólicas.

A tradição analítica, em sua vertente junguiana, fornece o plano de fundo para a abordagem simbólica de Maud Bodkin (1934) em seu Archetypical patterns in poetry, estudo em que ela examina o poema como uma expressão de certos padrões emocionais inescapáveis da própria natureza humana, como sendo distintos de emoções menos fundamentais que podem variar de uma época a outra, de cultura a cultura, de pessoa a pessoa. Para a estudiosa, seriam esses temas emocionais que dariam a razão da universalidade do poema. De Jung Bodkin toma de empréstimo o termo “arquétipo”, como o nome designando tais temas, bem como se vale, ainda que com reservas, do conceito junguiano de “inconsciente coletivo”, já que ela está consciente de evidências antropológicas sobre a inexistência de correspondências empíricas em apoio à ideia de inconsciente coletivo, a recorrência de padrões arquetípicos podendo ser explicada em termos de herança e aspectos comuns da experiência humana. De qualquer forma, para Bodkin, a “Balada”seria uma alegoria no mesmo sentido em que os mitos gregos podem ser considerados alegóricos. Ao fazer tais alegações, Bodkin tem em mente a distinção do próprio Coleridge quanto à alegoria e à narrativa simbólica, a primeira sendo uma história em que cada objeto e incidente é simbólico de algo mais, e a segunda se constituindo numa narrativa em que só certos objetos e incidentes conferem à história um todo em sentido universal. Para ela, a “Balada” seria, pois, um mito, como se poderia chamar “Moby Dick” de mito, podendo ser usufruída a princípio exclusivamente como uma narrativa, mas, após vária leitura, um nível superior de sentido, por assim dizer, haveria de pairar sobre essa narrativa como uma nuvem luminosa. Esse modo de abordagem semelha

14 Em seu Philosophy of literary form, Kenneth Burke consideraria a ave como o símbolo da mulher

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muitas vezes o recorrente em estudos antropológicos de religiões comparadas, mas a impressão geral do estudo de Bodkin, que de resto é encontradiça em vários críticos às voltas com mitos, é a de que esses padrões arquetípicos reconhecíveis entraram no poema de maneira inconsciente, e as objeções a essa abordagem não raro versaram sobre a grande possibilidade de os arquétipos da morte e do renascimento, por exemplo, em suas roupagens notadamente cristãs, terem sido tecidos conscientemente por Coleridge, ele mesmo tendo sido filho de um vigário e certamente tendo ouvido sermões incontáveis sobre morte e ressurreição e sobre a conversão dos pecadores, além de ter demonstrado, em sua correspondência anterior à “Balada”, grande preocupação com o pecado original, com o arrependimento e com a natureza da Queda. No poema, a própria palavra “cross” (cruz) em “cross-bow” (besta, ou balestra) apontaria para isso, e “O espírito só, que no país/Da névoa e neve resta,/Este amou a ave, que amou o homem, que a abateu com sua besta” não poderia deixar de ser reminiscente, tanto para Coleridge como para nós outros, de Deus, que amou seu Filho, que amou os homens, que O crucificaram.

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ave ou fera”, no final do poema − conduzindo a uma “total aceitação de Deus e do universo”.

O prisma do simbolismo sexual também é adotado pela Camille Paglia de Personas sexuais (1992). Para a crítica, as personas presentes na “Balada” constituiriam uma “alegoria sexual”. Sua teoria é expressa nos seguintes termos:

Noivo, Conviva e Marinheiros são todos aspectos de Coleridge. O Noivo é uma persona masculina, o ego confortavelmente integrado na sociedade. Esse ego viril é sempre visto anelante, de longe, por uma porta aberta pela qual saem explosões de alegres risadas. O Conviva, “parente” do Noivo, é um suplicante adolescente que aspira à realização sexual e à alegria coletiva. Para conseguir isso, tem de fundir-se com o Noivo. Mas é sempre impedido de fazê-lo pelo surgimento de um ego fantasma, o Marinheiro, o homem-heroína ou ego hermafrodita, que viceja no sofrimento passivo. É um caso de sempre o noivo e nunca a noiva. O Conviva afasta-se no fim porque, mais uma vez, o ego hieraticamente ferido venceu. O Conviva jamais será o Noivo. Tantas vezes ele tente passar pela porta para o local da festa, tantas o Marinheiro se materializará e o deterá com sua história sedutora. Essa entrada é a cena obsessiva do enigma sexual coleridgiano. O ostracismo e a marginalização são a estrada romântica para a identidade. (PAGLIA, 1990, p.302)

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como sendo “trepidantes festões”, reconsiderações ou revisões que “muitas vezes se afastam crucialmente, em tom, do texto que ‘explicam’” (PAGLIA, 1990, p.305). Para ela, essas glosas seriam uma tentativa, por parte do Coleridge cristão de abrandar o Coleridge “daimônico”: “Com racionalização e moralização, Coleridge tentou apagar os incêndios daimônicos de sua própria imaginação” (PAGLIA, 1990, p.305).

Numa abordagem diversa, em seu excelente The romantic imagination (1950), particularmente no capítulo sobre a “Balada”, C. Maurice Bowra apresenta uma defesa equilibrada do tema cristão. Ele afirma que, no poema,

Coleridge exercita um realismo imaginativo. Por mais inaturais que possam ser seus acontecimentos, eles são formados a partir de acontecimentos naturais, e por essa razão acreditamos neles. Podemos até nos sentir familiarizados com eles porque seus constituintes são familiares e exercem um apelo direto, natural. Uma vez que penetramos esse mundo imaginário, não sentimos que ele está além de nossa compreensão, mas reagiríamos a ele como se reagíssemos à verdadeira vida. (BOWRA, 1950, p.59)

Enfatizando o significado de uma “moral” presente no poema, o crítico observa que

Por mais que possamos usufruir o Velho Marinheiro, com certeza devemos sentir que momentos há em que ele irrompe além da ilusão e conclama a algo profundo e grave em nós. Apesar de tudo, ele apresenta uma moral, e, embora Mrs. Barbault a tenha julgado inadequada e Coleridge, por demais enfática, ela não pode ser posta de parte. (BOWRA, 1950, p.66)

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O que importa é que o Marinheiro viola uma lei sagrada da vida. Nessa ação, vemos a frivolidade essencial de muitos crimes contra a humanidade e o sistema ordenado do mundo, e devemos aceitar o ato de matar o albatroz como simbólico deles. (BOWRA, 1950, p. 68)

Já a necessidade que o Marinheiro tem de dar continuamente seu relato se justifica por ser “encontrada na maioria dos criminosos; e a necessidade que o Marinheiro tem de falar é em especial apropriada porque, ao forçar os outros a ouvi-lo, ele recupera um pouco daquele diálogo humano do qual seu crime o roubou” (BOWRA, 1950, p. 71).

Desse ponto de vista, o Marinheiro estaria destinado, como reza uma das glosas, a “ensinar, por seu próprio exemplo, o amor e a reverência a todas as coisas que Deus fez e ama”.

Por outro lado, para o Kenneth Burke de The philosophy of literary forms, a impressão de algum tipo de “redenção” no poema adviria não de uma relação com uma estrutura de pensamento exclusivamente cristã, mas da representação de um “ritual para a redenção” do poeta com respeito ao ópio. Desse ângulo, o poema trataria essencialmente de questões que são “simbólicas” da experiência de Coleridge com a droga. E nestes termos ele justifica sua abordagem, ao estudar a “ação simbólica”:

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sucedendo no poema, devemos estudar as relações recíprocas passíveis de ser descobertas por meio de um estudo da mente do próprio Coleridge. Se um crítico prefere restringir as regras da análise crítica ao ponto de estes elementos particulares serem excluídos, esse é seu direito. Não vejo nenhuma objeção formal ou de categoria àcrítica assim concebida. Mas se ocorrer a seu interesse estar na estrutura do ato poético, ele usará tudo o que estiver disponível – e até mesmo considerará um tipo de vandalismo excluir certos elementos que Coleridge deixou, baseando essa exclusão em algumas convenções quanto ao ideal de crítica. O principal ideal da crítica, do modo pelo qual o concebo, é usar tudo o que há para usar. (BURKE, 1973, p.22-23)

Consoante a esses argumentos, Burke identifica na obra de Coleridge padrões de pensamento – que ele chama de “equações” – por vezes cristalizados em imagens e metáforas, que são recorrentes em anotações de cunho pessoal, em vários de seus poemas, em sua crítica, em suas exposições filosóficas e religiosas – padrões que, estudados em seus diversos contextos, servem para lançar luzes sobre o que ele próprio considerava como seu sentido:

Se tivéssemos outros poemas, poderíamos rastrear mais essas equações. Por exemplo, descobriríamos as “equações da culpa, do Sol no meio-dia e dos problemas do casamento” recorrendo. Se dispuséssemos das cartas e de anotações introspectivas, poderíamos, por meio da ponte imagística revelar o papel das batalhas que Coleridge travou com a droga nas equações das palavras loon

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simbólico como um todo, você está autorizado, se o material estiver disponível, a revelar também as coisas que o ato está fazendo para o poeta e para ninguém mais. Esses acicates privados estimulam o artista, no entanto, podemos reagir às imagens relativas à culpa a partir de nossos acicates particulares totalmente diferentes. Não precisamos ser viciados em drogas para reagir ao sentimento de culpa de um. O vício é privado, a culpa, pública. De maneiras assim é que as áreas privadas e públicas de um ato simbólico a um só tempo se imbricam e divergem. (BURKE, 1973, p.24-25)

Segundo essa abordagem, ao se rastrearem as imagens em seus poemas com respeito às que ele emprega em suas cartas ao descrever a droga, podemos discernir os modos pelos quais a Balada se constitui nesse ritual para a redenção de seu vício:

Descobrimos a transubstanciação da droga, levada a efeito pela mudança alquímica que ocorre quando as cobras d’água são transformadas de criaturas malignas para benignas. Aqui, descobre-se que elas são representantes sinedóquicos da droga (na forma de parte da mesma “economia psíquica”, do modo pelo qual se revelam por meio do rastreamento imagístico das equações). (BURKE, 1973, pp. 96-97)

Desse ângulo, para Burke, “Kubla Khan” simbolizaria inteiramente o estágio “benigno” da droga, mas com sugestões de malignidade no movimento serpeante do rio, e “Christabel” representaria por sua vez os dois aspectos da droga, malignos e benignos, “suspensos no momento da indecisão” (BURKE, 1973, p. 97). Por outras palavras, a “Balada” seria essencialmente simbólica da culpa sexual e de outros conflitos subconscientes do poeta, particularmente os gerados por seu casamento insatisfatório, os quais encontrariam assim uma resolução no próprio poema.

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Num ensaio marcado pela erudição, Warren se concentra numa análise do que chama de “tema principal” da “Vida Una” – ou visão sacramental –, e de “tema secundário” da “imaginação”. Grosso modo, Warren procura demonstrar que os acontecimentos bons se dão sob a égide da lua, os maus, sob a do sol. Para ele, a lua está relacionada à imaginação, o sol, à faculdade reflexiva, geradora de morte. A seus olhos, o poema reproduz a sequência de inspiração cristã do pecado, da punição, do remorso e da redenção:

O Marinheiro abate a ave; é vítima de vários padecimentos, dentre os quais os maiores sendo a solidão e a angústia espiritual; ao reconhecer a beleza das feias serpentes marinhas, tem a experiência de uma manifestação efusiva de amor por elas e tem condições de rezar; é devolvido miraculosamente a seu porto natal, onde descobre a alegria da comunhão humana em Deus, e expressa a moral, “só reza bem quem ama bem etc.”. Chegamos à noção de uma caridade universal... o sentido da “Vida Una” de que toda a criação participa e que Coleridge talvez tenha derivado de seus estudos neoplatônicos e que já havia celebrado, e devia celebrar, em outros poemas mais discursivos. (WARREN, 1989, p. 355-356)

Um dos objetivos de Warren é provar que o poema destila os mesmos pontos de vista teológicos e filosóficos expressos em “prosa mais sóbria” em outros escritos de Coleridge. A base de seu argumento está em considerar que o universo do poema é regido por uma lei e ordem benévolas, reveladas gradativamente ao Marinheiro na forma dessa “visão sacramental”.

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segundo Beer, teria empregado a imagem do sol em seu valor positivo, relacionada com Deus.

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desprezo pela vida humana” que o Marinheiro teve para com a ave, e revelaria a presença de um Deus despótico, um “grande Pai”, como se vê no final da Parte VII, perante o qual todos estão “curvados” e ao qual amam não por serem partícipes de uma “Vida Una, mas por meio do medo e da obediência forçada”(BOSTETTER, 1973, p.191). E Bostetter constata que o mundo retratado na Balada “subverte a visão de mundo romântica e de seus valores. Desenvolve-se contrariamente aos clichês da fé romântica... parece irreconciliável com os pronunciamentos religiosos do próprio Coleridge (1973, p. 191), chamando a atenção para a eventualidade de opiniões “profundamente sentidas e reprimidas” no poeta “moldarem e determinarem a ação simbólica do poema”, e para o fato de a “ação simbólica” não necessitar ser condizente com suas ideias religiosas e morais, e lembrando que o correlato objetivo da viagem possibilita a Coleridge “condescender com essas atitudes”. (BOSTETTER, 1973, p. 197)

Adotando um ângulo inteiramente diverso desses exegetas, William Empson, em seu ensaio de 1964, “The ancient mariner”, publicado na Critical Quarterly, haveria de interpretar a “Balada”levantando questões históricas e poéticas sobre ela, considerando-a um grande poema sobre a expansão marítima européia e relacionando a culpa neurótica do marinheiro às angústias veladas do poeta sobre essa mesma exploração marítima e o comércio de escravos, e sua abordagem várias vezes foi considerada extremada e excêntrica.

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de muitas das complexidades inerentes em grande parte – talvez, em sua maior parte – ao próprio gênero poético. Mais recentemente, porém, também tem havido opositores ferrenhos a essa linha.

Por exemplo, Martin Gardner, autor de uma célebre edição anotada da Balada, fez críticas à “frouxidão” e ao “descontrole” de regras, em particular na escola freudiana, para a interpretação do símbolo literário, e Elisabeth Schneider, (1970) de Coleridge, opium and “Kubla Khan”, rejeitou, com argumentos mais precisos do que os de Gardner, as leituras simbólicas do poema, por acreditar que elas são praticamente inerentes à fruição de toda grande obra de arte, derivando da necessidade eterna de cada era reinterpretar o passado por si mesma:

Desde os tempos mais remotos, o simbolismo foi um meio pelo qual num período de mudança o homem pode-se apegar a seu passado mesmo enquanto o deixa de lado. Quando os gregos sofisticados foram além de uma crença literal nos deuses homéricos com seu comportamento demasiado humano, a preeminência de Homero poderia ainda ser preservada por meio da noção de que ele escrevera sobre os deuses simbolicamente e não literalmente. Essa descoberta preservou intata a sabedoria suprema de Homero; ela também ofereceu a vantagem de um novo campo ilimitado para a interpretação engenhosa. Séculos depois, a Idade Média, e até o Renascimento, introduziu sub-repticiamente boa companhia cristã na mesma brecha da interprtação simbólica... A partir de mudança profunda e em rápido curso na vida e no pensamento de nosso presente século, nós também somos impelidos a agarrar, com quaisquer anzóis que possamos, tudo o que pode ser resgatado do passado que se dissolve. O simbolismo é o mais simples desses anzóis...Obras do passado que ainda valorizamos, mas que por meio de qualquer princípio moderno não podemos achar razão para aprovar, nós salvamos ao descobrir nelas um substrato simbólico que se conforma a nossos valores presentes (SCHNEIDER, 1970, p.5-6).

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rejeitadas por ela mesma e por outros intérpretes, que não veriam na “Balada”mais sentidos simbólicos além daqueles tornados óbvios por Coleridge.

Nossa Proposta

Que sentido haveria, pois, em tentar de novo interpretar um poema que dá a impressão de que massa alguma de exegese crítica seja suficiente para deslindar os enigmas propostos por sua fabulação e simbólica? A resposta é que, feitas as assim chamadas leituras “canônicas do poema”, restava ainda aquela “insatisfação cognitiva”, como a definiu Alfredo Bosi alhures, sentida durante o processo de nossa tradução da Balada, quando da percepção de metáforas recorrentes de teor semelhante, relativas à percepção sensorial, que pareciam levar a efeito o que Rimbaud chamou de “desregramento de todos os sentidos”, um aspecto que, tanto quanto podemos saber, antes não fora alvo da análise de exegetas.

Convém, portanto, dizer de antemão que rejeitamos aqui a análise essencialmente simbólica do poema, passível de remeter a elementos extrínsecos de ordem variada, por acreditarmos que no poema aqui e acolá há imagens e estrofes com conteúdos simbólicos, sim, mas conteúdos não raro contraditórios, levando a efeito propositadamente uma espécie de “cacofonia de sentidos”, sem nenhum tema metafísico de ordem superior agregando harmonicamente os símbolos no conjunto. Também rejeitamos uma interpretação moral do poema, outro “elemento extrínseco” que, como se procurará demonstrar, não se coadunava com a visão que Coleridge tinha da obra de arte e que nos parece difícil de aceitar justamente em virtude da presença de diversas moralidades na Balada.

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de nosso ponto de vista, teria sido forte o bastante para deixar suas marcas no poema e que levou o próprio Burke a fazer a afirmação já aludida de que a Balada se constitui numa “redenção” de Coleridge quanto à droga.

Se nossa abordagem, pois, deve voltar a atenção à estrutura e aos elementos intrínsecos da Balada, por outro lado, tentar interpretá-la sempre equivalerá a procurar de novo um “nível de sentido” em que seja possível lhe distinguir a unidade – uma das tantas palavras-chave na teoria romântica. Às vezes, é conveniente lembrar que, quando se fala de diferentes “níveis de sentido” num poema, todos eles devem estar presentes nele de maneira harmônica uns com os outros, bem como com o tom emocional do poema como um todo. De fato, esses níveis devem fornecer uma verdadeira estrutura contrapontística em que cada tema conceda algo positivo a algum outro.

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essa palavra como subtítulo em uma das edições. Ainda nessa esteira de pensamento, o estilo em que o poema está vazado poderia ser chamado de “técnica do sonho acordado”, a impressão de seu simbolismo radical advinda da tentativa de Coleridge de representar a linguagem própria dos sonhos, ou do inconsciente, ou seja, uma linguagem essencialmente simbólica, do modo pelo qual veio a ser considerada sistematicamente depois de Freud. Desse ponto de vista, essa técnica apresentaria expedientes e características próprias, materializando no estilo a sugestão de uma percepção do mundo num estado que se pode chamar de “devaneio”.

Ora, parece-nos que esse “nível de sentido” talvez possa acomodar muitos outros, sem que seja preciso se lhes opor. Aliás, desse ângulo, talvez seja lícito supor que, se nenhum dos exegetas da “Balada” algum dia logrou estar inteiramente certo, não é possível afirmar que eles estivessem errados e que talvez até seja permitido utilizar muitas coisas que disseram, a fim de que se tente dizer algo mais, e “organicamente”.

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digressões incontáveis nas perorações do próprio Coleridge − embora não sem o sentimento bastante incômodo de jamais ser possível fazer isso tão bem quanto ele.

Portanto, a Primeira Parte de nosso estudo, intitulada “Pura Imaginação”, terá como objetivo fornecer um plano de fundo histórico e filosófico do romantismo, destacando os fatores que contribuíram para o surgimento e valorização de concepções acerca da imaginação, por parte de vários autores e do próprio Coleridge, bem como a relação dessas concepções com o pensamento orgânico, de que o poeta foi um tributário. A Segunda Parte, intitulada “Ópio, Sonhos e Devaneios”, tratará fundamentalmente da exaltação dos sonhos e devaneios dos românticos, do tópico relacionado ao ópio, importante em função do envolvimento do poeta com a droga, e de concepções derivadas desse envolvimento com o sonho e o devaneio, fundamentais para a teoria coleridgiana sobre a ilusão dramática e para a escrita de diversos poemas, dentre os quais, a “Balada”. A Terceira Parte, a que chamamos “O Devaneio Coleridgeano”, que se constitui no centro para onde convergirão nossos argumentos, procurará demonstrar que:

1) a “Balada” pode ser considerada uma representação artística da experiência do “devaneio” do modo pelo qual foi definido por Coleridge, em diversos escritos de sua autoria;

2) essa representação se dá por meio de uma série de expedientes específicos, relativos sobretudo a padrões de metáforas e imagens caracterizadas, na maioria dos casos, por uma alteração da percepção sensorial do mundo exterior e da percepção temporal;

3) a “Balada”, no nível do enredo, apresenta uma série de acontecimentos que transmitem intencionalmente ao leitor a impressão de ser “arbitrários” e, além disso, seus gestos poéticos são marcados por “contradições” , ambas as coisas estando a serviço da representação da experiência devaneante do Marinheiro;

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envolvida na leitura de um poema como sendo da mesma natureza de um “sonho” ou, no caso, de um “devaneio”;

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PRIMEIRA PARTE: PURA IMAGINAÇÃO

A Revolução Industrial

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ordem intelectual para levar a efeito a Revolução Industrial. Suas invenções “revolucionárias” eram bastante modestas, como a lançadeira, o tear e a fiadeira automática e, para construir máquina a vapor rotativa, James Watt não precisou de mais do que conhecimentos rudimentares de física, já que uma teoria apropriada a ela só seria desenvolvida por Carnot, na década de 1820 (HOBSBAWM, 2001, p.46-47). Mas as condições adequadas para a Revolução Industrial estavam de fato presentes na Inglaterra. Os britânicos haviam já achado uma solução para o problema agrário, e um número relativo de proprietários empreendedores detinha quase todo o monopólio da terra, cultivada por arrendatários que, por sua vez, empregavam camponeses e agricultores.

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bastante ajustada à Revolução Industrial pioneira em condições capitalistas, e sua conjuntura econômica lhe permitia desenvolver como nenhuma outra nação a indústria algodoeira e a expansão colonial (HOBSBAWM, 2001, p.47-49).

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que transformaria as indústrias de bens de capital – a ferrovia –, já que as minas de carvão não só careciam de máquinas a vapor em grande número como também de transportes eficientes que o levassem do fundo das minas até a superfície e, de lá, o carregassem até os pontos de embarque (HOBSBAWM, 2001, p.60). Aliás, nenhuma outra inovação da Revolução Industrial causaria tanta admiração quanto a ferrovia, o único produto da industrialização do século XIX que haveria de ser absorvido pelo imaginário das artes. Afinal de contas, a ferrovia possibilitava o acesso a países até então isolados do mercado mundial, em razão dos altos custos de transporte, e propiciava um aumento enorme da velocidade de comunicação e do transporte de produtos por terra. Do ponto de vista econômico, seus custos altos eram uma vantagem. Ferrovias demandavam ferro e aço, carvão, maquinaria pesada, mão de obra e investimentos de capital, o que ensejava justamente a demanda necessária para que as indústrias de bens de capital se transformassem tanto quanto a indústria algodoeira.

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patrimônio, proporcional à extensão dos novos mercados, se tornara igual ao dos grandes senhores territoriais, e a dos operários da cidade, que compunham a massa do proletariado, explorada pelos sistemas de produção.

Os aspectos negativos da Revolução Industrial, pois, ao acarretar um sentimento de insatisfação da parte de um grande contingente da população na Inglaterra, exacerbaria o interesse, ou mesmo a aversão, pelos acontecimentos revolucionários, bem como abriria caminho para uma verdadeira revolução da sensibilidade.

Ecos da Revolução Francesa na Inglaterra

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tradicional, uma ordem transmitida gerações a fio desde a Carta Magna até a Revolução Gloriosa. Esse mesmo princípio colocava a estabilidade além do alcance dos revoltosos, e conferia à própria constituição britância, por assim dizer, a solidez de uma instituição divinamente ordenada. Ainda segundo ele, os homens deveriam submeter de todo e de bom grado seus direitos naturais a essa ordem, a fim de usufruir o que lhe parecia serem os verdadeiros direitos do homem – a proteção sob a lei, a segurança do lucro privado e a riqueza herdada (Coote, 1993). Assim, o Estado só deveria ser governado por uma verdadeira aristocracia “natural” de proprietários de terras, da elite intelectual conservadora, e de uns poucos mercadores e fabricantes que, tornados ricos em razão das forças da Revolução Industrial, haviam sido assimilados na ordem tradicional.

Muitos haveriam de saudar com entusiasmo o tratado de Burke, mas, para outros, as ideias nele contidas se assemelhavam a um verdadeiro anátema. A resposta às Reflexões de Burke viria, assim, num dos mais veementes tratados políticos da Inglaterra, Os Direitos do Homem (1791), do revolucionário Thomas Paine.

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desmascaramento da exploração, ou daquilo que, nos Direitos do Homem, ele via como gente fraca e maltratada, além, é claro, de sua proposta de educação subsidiada pelo estado e de segurança social (COOTE, 1993). De fato, o radicalismo de Paine deu mostras de vigorar na maior parte de sua vida, e, se o seu A Justiça Agrária, de 1775, se constitui numa denúncia amarga da desigualdade, foi com A Idade da Razão, escrito entre 1792 e 1795, que Paine estabeleceria definitivamente sua reputação, ao desenvolver o ataque do Iluminismo aos aspectos socialmente repressivos e teologicamente obscurantistas do sacerdócio, motivo pelo qual seu nome na Inglaterra e nos Estados Unidos passou a ser quase sinônimo de “Anticristo”(COOTE, 1993).

Na verdade, Voltaire e Rousseau -- que em particular havia exercido uma influência crucial sobre a literatura inglesa do período -- haviam proposto ideias semelhantes. Para Rousseau, o homem natural era piedoso e instintivo, e eram as forças repressivas da sociedade, voltadas tão-somente para a propriedade e a dominação, que o corrompiam. Somente uma sociedade baseada na “vontade geral” poderia levar a efeito um melhor estado de coisas. As ideias de Rousseau, por sua vez, haveriam de ter um grande impacto sobre William Godwin, o filósofo que exerceria enorme influência sobre duas gerações de radicais ingleses.

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Caleb Williams, o qual, sendo um romance de perseguição, crime, investigação e também um estudo psicológico, tinha por objetivo principal expor os males do que Godwin considerava como a “sociedade artificial”, principalmente do modo como esses males medravam nas operações de seu sistema legal.

Godwin encarava a lei e o governo como um sistema de injustiça, ao passo que, para a sua mulher, Mary Wollstonecraft, os papéis desempenhados pelos sexos se constituíam em outro. De fato, Mary Wollstonecraft, em sua Defesa dos Direitos dos Homens – no fundo, uma resposta a Burke – e em sua obra ainda mais famosa, a Defesa dos Direitos da Mulher, levou a cabo a mais antiga exposição do feminismo com base num sistema abrangente de ética (COOTE, 1993). Mary acreditava que a aristocracia devia ser substituída por uma sociedade em que as liberdades civis, inalienáveis, deveriam gerar o bem natural de todos, e as mulheres casadas deveriam ser educadas como membros úteis da sociedade, alcançando o status de independentes, capazes de ganhar seu próprio sustento e assumir seu papel de mães virtuosas para as então novas gerações de libertários – ideias que à época causaram um abalo tão grande quanto os ataques de Paine.

Conceito de Romantismo

À nova sensibilidade que começava a aflorar se deu o nome de “romântica”, e, por muito tempo, para todos os períodos e literaturas, bem como para a música e as artes plásticas, o epíteto “romântico”, a par da antítese “clássico-romântico” – esta introduzida por Goethe e Schiller e desenvolvida como um critério tipológico pelos irmãos Schelegel –, foi usado na avaliação de obras de arte. A exemplo de um sem-número de palavras de uso corrente, porém, estas categorias empíricas respondem a uma função útil, embora devam ser consideradas apenas como o que, na verdade, são – aproximações.

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Todo classicismo supõe um romantismo anterior. Todas as vantagens que se lhe atribuem, todas as objeções que se fazem a uma arte “clássica” são relativas a esse axioma. A essência do classicismo é de vir antes. A ordem supõe uma certa desordem que ela reduz. A composição, que é artifício, sucede àquele caos primitivo de intuições e de desenvolvimentos naturais. A pureza é o resultado de operações incompletas sobre a linguagem, e a inquietação da forma não é outra coisa que a reorganização meditada dos meios de expressão. O clássico implica, então, atos voluntários e refletidos que modificam uma produção “natural” conforme uma concepção clara e racional do homem e da arte. (VALÉRY apud PRAZ, 1996, p.30)

Na verdade, porém, como tantas vezes se disse, o Romantismo resiste a quaisquer generalizações mais cômodas, e sua delimitação sempre foi um dos maiores problemas de sua abordagem, o termo “romântico” tendo vindo a significar tantas coisas, que muitos chegaram a duvidar de sua eficácia como signo verbal. Também já se disse que a vertente dos que circunscrevem o movimento a manifestações puramente literárias ignora que não se pode aplicar com exclusividade essa perspectiva, por mais importante, ao estudo do Romantismo em todos os países, visto que o movimento transcende a esfera do literário (Bornheim, 1978). No outro extremo, o mencionado ponto de vista dos que identificam traços românticos ao longo da história da civilização e que consideram o dualismo clássico-romântico15 como um processo recorrente no desdobramento da cultura, com fases de cristalização de valores e períodos subsequentes de inconformismo em face desses valores – esse ponto de vista peca por reduzir a história, como disse Bornheim, a uma dialética que implica “pontos fixos de referência”16, sob pena de se ver o Romantismo “em todas as esquinas da história” e caracterizar os termos “romântico” e “clássico” em uma dimensão meramente “psicológica ou antropológica” – o primeiro termo estando para a psicologia da adolescência, assim como o segundo está para a da maturidade –, deixando de lado aspectos “propriamente culturais, históricos e filosóficos” do Romantismo.17 Desse modo, o critério mais apropriado

15 A distinção entre clássico e romântico aparece pela primeira vez na Inglaterra por meio das

conferências de Coleridge proferidas em 1811.

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passou a ser falar de “romantismos” em vez de “Romantismo”, suas variedades coincidindo com as individualidades nacionais, e relacionar as dimensões psicológicas ou antropológicas aos “valores específicos de cada romantismo”, valores que estão, obviamente, além dessas dimensões.18

O que descreve, no entanto, essa nova sensibilidade, que começa a florescer no final do século XVIII e que se designa por “romântica”? A palavra romantic surge pela primeira vez em língua inglesa em meados do século XVII com o significado de “como os velhos romances”, o que a um só tempo indica o influxo sobre a cultura dos romances cavalheirescos e pastorais, bem como atesta a necessidade de se definirem as características que lhes eram peculiares. Trata-se, pois, de uma referência à literatura de língua romana da Idade Média. Curiosamente, características que tais seriam ressaltadas durante o período do racionalismo filosófico e científico, mas a modo de qualificação pejorativa: o elemento “romântico” dos velhos romances estava em sua irrealidade e falsidade, ou na índole fantástica e irracional dos acontecimentos e dos sentimentos retratados nesses romances. Ou seja, por essa época, “românticos” eram os produtos da desregrada fantasia, e a palavra era rigorosamente um sinônimo de “quimérico”, ou então “ridículo”. Desde o princípio do século XVIII, porém, começa a se delinear uma nova corrente no gosto, segundo a qual esse mesmo elemento “fantasioso” passa a ser considerado um valor nas obras de arte. Embora conserve ainda a ideia de um quê de absurdo, “romântico” designa então algo atraente, por ser capaz de deleitar a imaginação. “O assunto e o cenário dessas tragédias, tão românticos e incomuns, são altamente agradáveis à imaginação”, dizia J. P. Warton em 1757 (WARTON apud PRAZ, 1996, p.32). Estas frases remetem ainda ao uso da palavra romântico a respeito de cenários e paisagens, e há exemplos desse emprego pelo menos desde a metade do século XVII. Nesse sentido, à época podiam ser “românticos” os antigos castelos, as montanhas, as florestas, os pastos e os lugares desolados. Diz o dr. Johnson: “Quando a noite faz sombra sobre o cenário romântico, tudo é calma, silêncio e quietude” (DR. JOHNSON, apud PRAZ, 1996, p.33). Destacando-se lentamente do gênero literário do qual foi extraída, a palavra passa a exprimir uma

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admiração cada vez maior pelos elementos selvagens e melancólicos da natureza. De fato, a tal ponto o nome se liga a certas qualidades da paisagem natural, que não admira que tradutores franceses da literatura inglesa à época traduzissem “romântico” por “pitoresco” – palavra de origem italiana, designando o ponto de vista próprio dos pintores. Mas coube a Letourneur, um tradutor de Shakespeare, e ao marquês de Girardin, que escreveu um livro sobre paisagem, se aproximarem mais daquela nova sensibilidade e traduzirem a palavra por romantique, justificando sua opção ao afirmar que o vocábulo designava algo mais do que “romanesco”, ou mesmo “quimérico” e “fabuloso”, e também mais do que “pitoresco”, além de acrescentarem que a palavra “romântico” não descrevia só uma paisagem, mas sobretudo a emoção suscitada por ela em quem a contemplasse. Dessa forma, a palavra “romântico” assumia um caráter subjetivo, designando sobretudo os afetos que a realidade objetiva pudesse suscitar na pessoa.

Na Inglaterra, porém, o dualismo romântico-clássico, nascido na Alemanha, parecia opor uma espécie de “poesia mágica” à poesia retórica e didascálica, representada por autores como Pope. Nessa linha de pensamento, se indagará Jean-Paul, autor de um célebre ensaio intitulado Magie der Einbildungskraft [A Magia da Imaginação]: “Como sucede que tudo aquilo que vive somente na aspiração (Sehnsucht) e na lembrança, tudo o que é distante, morto, desconhecido, possui esse mágico encanto de transfiguração?”, ao que ele mesmo responde: “Porque na representação interior toda coisa perde sua definição precisa, cabendo à imaginação a virtude mágica de torná-la infinito” (JEAN-PAUL, apud PRAZ, 1996, p.33). Também Novalis dirá: “Tudo, quando distante, se torna poesia: a montanha distante, o homem distante, o acontecimento distante. Tudo se torna romântico” (NOVALIS, apud PRAZ, 1996, p.33).

Dessa forma, “romântico” vem a se associar então a “mágico”, “sugestivo”, “nostálgico”, e a outros termos designativos de estados inefáveis da alma. Tal acepção parece ser a empregada, por exemplo, por Coleridge, na segunda estrofe de seu célebre “Kubla Khan”:

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Down the green hill athwart a cedarn cover! A savage place! as holy and enchanted As e’er beneath a waning moon was haunted By woman wailing for her demon-lover!

[Mas Ah!, que báratro romântico, inclinado Na encosta, de través no cedro frondejante! Lugar inóspito! Tão mágico e sagrado Como o que fosse, no minguante, visitado Por mulher a clamar por seu demônio-amante!] (CORREIA, 2005, p.224)

A essência da romanticidade, portanto, passa a repousar sobre aquilo que é inefável. Mas a expressão romântica se caracteriza não só por uma consciência de evocar muito mais do que diz. Em casos extremos, os românticos chegam a tomar a própria expressão concreta como uma espécie de “impureza”, ou “decadência” – como se vê na “Ode on a Grecian Urn” [Ode sobre uma Urna Grega] de John Keats:

Heard melodies are sweet, but those unheard Are sweeter; therefore, ye soft pipes, play on;

[A música seduz. Mas ainda é mais cara Se não se ouve. Dái-nos, flautas, vosso tom;] (CAMPOS, 1987, p.151)

A Crítica Romântica da Sociedade Burguesa

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minas de carvão. A urbanização se acelerara, ensejando o deslocamento de artesãos e lavradores para os centros industriais, onde haveriam de compor a massa do proletariado, explorada pelos sistemas de produção.

A insatisfação com esse estado de coisas foi manifestada primeiramente por poetas pré-românticos, em cuja obra já começavam a despontar ideais revolucionários. Dentre esses poetas, ressaltam os nomes de Robert Burns e William Blake. O primeiro, por exemplo, escreveu com igual facilidade no inglês correto do século XVIII e em dialeto escocês, exprimindo com a singeleza do camponês, sem afetação nem maneirismos literários, os sentimentos, o humor e os defeitos da classe a que pertencia. Mas os tons revolucionários, expressivos do sentimento de revolta em face de injustiças sociais, das restrições da moralidade convencional e do caráter repressivo da religião presbiteriana da Escócia se manifestariam, por exemplo, no antológico “Is there for honest poverty”, mais conhecido por “For a’ that and a’ that”. Na verdade, sua simpatia com relação aos desfavorecidos, quer homens quer animais, a par de suas convicções políticas, haveria de fazer dele um dos maiores representantes do Pré-romantismo.

Igualmente imbuído de ideais revolucionários, embora expressos em tom profético, estava William Blake, cujas alegorias religiosas com o correr dos tempos passaram a ser consideradas instrumentos de crítica social, já que Blake havia admirado a Revolução Francesa e a Revolução Americana. De modo geral, é possível dizer que seus versos levavaram a efeito uma denúncia da espoliação do industrialismo, propondo uma utopia de caráter místico-revolucionário, a modo de Nova Jerusalém.

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alternativa aos problemas causados pela urbanização e industrialização, propunham um retorno à natureza (na verdade, essas tendências já se haviam feito sentir em autores como James Thomson e William Collins). Tanto essas predileções como aversões revelavam, obviamente, um impulso revolucionário.

O historiador Eric Hobsbawm lembra que são mais ou menos obscuras e imponderáveis as causas que determinam o florescimento ou o arrefecimento das artes em quaisquer períodos. No caso do despertar da que era então a nova sensibilidade romântica, não resta dúvida de que os elementos mais importantes para seu surgimento, e que também tornaram explicáveis as relações entre os artistas e a sociedade, foram justamente a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. No dizer de Hobsbawm, a Revolução Francesa era o que inspirava esses artistas, ao passo que a Revolução Industrial, o que os horrorizava (HOBSBAWM, 2001, p.278).

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linguagem e seu folclore, já que artes dependentes da comissão das classes governantes, como a arquitetura e a escultura, não poderiam alcançar semelhante amplitude. De qualquer forma, essas culturas − com exceção da ópera italiana, que era bastante popular − se limitavam a uma minoria de letrados e às classes superiores e médias. Analfabetos e pobres não podiam usufruir as grandes realizações artísticas da época, mas a literatura lograva uma circulação maior, devido às classes médias crescentes e novas, que constituíam um mercado amplo (HOBSBAWM, 2001, p.279). Exceto nos países burgueses como a Inglaterra e a França, e em alguns países das Américas, a música instrumental não lograva alcançar um grande público, e, em outros países, os concertos eram patrocinados pela aristocracia ou por uns poucos aficionados. A pintura se destinava a um número reduzido de compradores, depois que os quadros fossem exibidos nas galerias dos marchands, embora houvesse exibições públicas e museus como o Louvre e a National Gallery de Londres houvessem sido fundados em 1826. Por outro lado, a litografia, a gravação e a estampa se haviam generalizado, por causa de seu baixo preço. Mas a arquitetura por sua vez estava fundamentalmente voltada para encargos públicos ou privados.

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mistérios antigos e da sabedoria oriental – por exemplo, do reino de “Kubla Khan”, a que o mesmo Coleridge dedicou seu poema mais célebre. Como se disse, a essa dimensão se ligava estritamente o “povo”, a comunidade primitiva, notadamente em especial a de camponeses, que, para os românticos, encarnavam as virtudes ainda não maculadas pela sociedade burguesa, e cujas canções folclóricas se constituíam num verdadeiro repositório da alma popular (daí o esforço programático que se observa à época quanto a se coletar essas canções). É bem verdade que o sonho de resgate da harmonia perdida por meio do ideal da comunidade primitiva não foi apanágio dessa tradição, mas pertenceu a todas as épocas, tendo recorrido ao longo da história, como o atestaram, por exemplo, muitos iluministas do séc XVIII (HOBSBAWM, 2001, p.289). Mas, sobretudo a partir de Rousseau, tal ideal passaria a ser um tipo de modelo para todas as utopias. E se essas ideias apontavam para o passado, a da Revolução Francesa apontava para o futuro, e havia obsedado a maior parte dos artistas e intelectuais europeus em 1789 – lembre-se o jacobinismo de autores românticos como Blake, Wordsworth, Coleridge, Campbell e Hazlitt – se/ bem que, na Grã-Bretanha, na virada do séc. XVIII, prevalecessem os desencantados e os neoconservadores.

Afirmações como essas nos fazem pensar na questão continuamente debatida acerca da natureza do Romantismo, isto é, sobre se ele teria sido essencialmente um movimento conservador e reacionário, ou se teria apresentado potencialidades revolucionárias.

Referências

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