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2. MARGARET ATWOOD

2.6. Uma Única Memória

O ponto de confluência destas três testemunhas, tal como mostrado na figura 3, é aqui apresentado no sentido irónico de que existem várias memórias e de que a identidade das mulheres é múltipla. Esta é uma ideia contrária à defendida pelos feminismos, em que todas as mulheres devem seguir as ideias e os padrões de comportamento definidos por regras estabelecidas por essas organizações feministas.

A convergência das três protagonistas começa numa cerimónia de Thanks Given, aproveitada também para dar as boas vindas às Pearl Girls que retornavam das suas missões ao exterior. Depois dessa cerimónia, Lydia apresentou Daisy (renomeada Jade) a Agnes e Becka nos seus aposentos em Ardua Hall.

Para Agnes, agora, o tempo em Gilead (Ardua Hall) não passa, tal como referido anteriormente durante a análise do primeiro romance, de: “Our time was filled, but in a strange way it did not seem to pass.” (idem, p. 287). Existe nesta ideia uma grande contradição: para o leitor, o tempo parece fluir, uma vez que existe uma série de acontecimentos que evolui no tempo das três testemunhas. No entanto, no interior de Agnes o tempo não passa desde que chegou a Ardua Hall. Ou seja, numa vivência do tempo psicológico, ela sente que está congelada espacial e temporalmente. Veja-se aqui a contradição com os tempos modernos, os da tecnologia da informação, em que o tempo e o espaço estão reduzidos a zero.

É minha opinião que esta perceção subjetiva do tempo psicológico é importante para entender o romance. As diferenças entre a nossa sociedade e a teocracia Gilead não se cingem somente ao comportamento, mas abarcam tudo o que define a essência da vida humana. E tendo em conta que Atwood se interessa por questões de género, o que pretende reforçar é a ideia de que em Gilead as mulheres vivem num espaço restrito, mas num tempo infinito. O espaço restrito cria segregação e estratificação da sociedade, ou vice-versa, enquanto o tempo infinito cria a ilusão de que não se vive. Esta segregação, como é óbvio, realça as diferenças entre os géneros, sendo que as mulheres devem viver para os homens, ou para esta sociedade patriarcal, ou em função deles. No outro extremo, como

Donna Haraway afirma, a sociedade tecnocientífica que criou os ciborgues, e onde tudo circula à velocidade da luz, proporciona o mesmo tipo de vida para os homens e mulheres, esbatendo as fronteiras de géneros.

A literatura como conhecimento é outro aspeto que Margaret Atwood realça. Serve-se do Latim, em determinadas situações, para mostrar que, para que haja igualdade, o conhecimento é necessário. Quem não sabe Latim, i.e., quem não tem conhecimento, não será capaz de se defender. Por exemplo, o lema de Ardua Hall é “Per Ardua Cum Estrus.”, o que traduzido, nas palavras de Becka, quer dizer: “Through childbirth labour with female reproductive cycle.” (idem, p. 289). O mesmo acontece perto de nós, como todos sabemos. Recordo o exemplo já mencionado: junto das palavras FÉ, CARIDADE e ESPERANÇA plantadas no escadório do Bom Jesus, estão citações em Latim. A razão para este facto só pode ser uma: mostrar a quem passa por lá e desconhece o Latim que existem os que sabem a língua e que por essa razão estão mais perto de Deus, fonte de conhecimento supremo.

É por estes motivos que aprender a ler e a escrever é caracterizado desta forma: “Being able to read and write did not provide the answers to all questions. It leads to other questions, and then others.” (idem, p. 299).

Assim, o processo da revolução silenciosa levada à prática por Lydia incluiu a fase de ensino das letras a Agnes. A vida pacífica pode ser alterada por causa dos livros, mas a Bíblia foi a primeira a causar alterações no pensamento de Agnes. As histórias escritas não coincidiam com as histórias que se contam oralmente. Geralmente, a verdade mais dura era escondida, principalmente das mulheres. Assim, concluíram Agnes e Becka, as pessoas que controlavam Gilead mentiam a todos. Esta ideia permitiu-lhes ver muito mais além daquilo que lhes diziam, mas ao mesmo tempo trouxe-lhes uma crise de identidade, o que as levou a pensar: “… you could believe in Gilead or you could believe in Good, but not both.” (idem, p. 304).

O modo de pensar de Agnes mudava de dia para dia. Para isso contribuíam as revelações que obtinha dos Bloodlines Genealogical Archives. Ficou a saber que Baby Nicole era sua irmã e que estava em Gilead. Estes registos são similares aos registos que Hitler fazia dos milhões de mortos que assassinou, como se quisesse preservá-los para a posteridade.

Por contraponto: Agnes foi treinada para ler enquanto Daisy foi treinada para ser uma operacional do Mayday. No entanto, em ambos os casos, cada uma das raparigas não estava preparada para os ensinamentos. Agnes foi educada num ambiente direcionado para a procriação, e, como tal,

literacia, e estava agora a ser preparada para lutar física e psicologicamente contra um inimigo real, abdicando do conforto a que estava habituada.

O plano arriscado de Lydia para destruir Gilead começou a ser posto em prática. A intriga do romance convergia para o seu epílogo com revelações e ações que permitiriam às quatro mulheres sozinhas (Lydia, Daisy, Agnes e Becka) iniciarem o processo de desmantelamento deste estado teocrático. Baby Nicole era, afinal, Daisy, irmã de Agnes; a mãe de ambas está viva e vive no Canadá. O micro ponto implementado por dentro da pele no braço de Daisy continha informações comprometedoras sobre Gilead, os crimes dos seus dirigentes máximos e outras revelações que depois de disseminadas permitiriam a destruição da ditadura. Para isso seriam necessários sacrifícios.

Porém, “It’s like a trail of light!” (idem, p. 368). Finalmente, conheceram a sua mãe. Gilead ainda não acabou, mas é o princípio do fim da ditadura, o dealbar da libertação das mulheres.

O epílogo lança, portanto, uma nota esperançosa: o reencontro com a mãe e o princípio do fim da ditadura. Mas, creio, este tom de esperança que encerra a narrativa poderá realmente deixar o leitor tranquilo ou criará nele um estado de precaução diante de hipóteses de renascimento de autoritarismos? Interessam ainda neste romance as evoluções psicológicas – por vezes, dramáticas – vividas por mulheres, aparentemente conformadas com um regime despótico. Sob este ponto de vista, a obra vai mais longe que a anterior: Offred é, em termos diegéticos, uma personagem imutável; mas as três protagonistas de The Testaments revelam uma progressão psicológica notável, sobretudo a que é vivida por Lydia.