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Uma Revolução Teocrática Cristã como Distopia

2. MARGARET ATWOOD

2.1. Uma Revolução Teocrática Cristã como Distopia

Como refere Donna Haraway, de uma forma geral as questões de género resultam do patriarcado, uma construção social e histórica em que os homens suportam o poder principal e dominam nas funções de liderança política, autoridade moral, privilégio social e controlo das propriedades.

Por outro lado, no âmbito religioso, as igrejas Católica Romana e Ortodoxa, por exemplo, restringem o sacerdócio aos homens, sendo a palavra “patriarcado” usada como título de circunscrições eclesiásticas geridas por patriarcas, e.g., Cardeal Patriarca de Lisboa. Na maior parte das sociedades atuais, mas principalmente nas mais conservadores, como é a dos Estados Unidos da América, as regras políticas, plasmadas na Constituição, bem como a praxis política, fundamentam-se nesta ideia patriarcal, ou pelo menos emanam dela. Estas sociedade ou grupos conservadores muito poderosos dentro delas, tendem a reagir de uma forma muito assertiva contra todos os movimentos que promovam o esbatimento do limiar entre géneros, uma realidade sempre presente na maior parte, senão em todas, as sociedades contemporâneas.

No sentido de chamar a atenção para este problema, Margaret Atwwood criou uma distopia baseada em valores políticos alicerçados na religião, procurando mostrar-nos que esta é uma luta permanente à qual não se deve dar tréguas. Mas, como afirma a autora, “So the book is not ‘antireligion’. It is against the use of religion as a front of tyranny; which is a different thing altogether.” (Atwood, 2017, p. 6).

Na organização interna do livro The Handmaid’s Tale, Atwood alterna partes muito curtas, de um capítulo, com secções mais longas, de vários capítulos. As curtas têm o título “Night”, exceto uma delas, cujo título é “Nap”. A brevidade dos títulos antecipa a curta extensão das partes, reduzidas a um período do dia no qual a protagonista, a Serva Offred, se encontra sozinha no quarto.

Nesses períodos de isolamento, a personagem reflete e, sobretudo, compara a sua vida passada com o momento presente, aquele que corresponde ao tempo de implantação da revolução teocrática.

período que se seguiu à sua captura, quando foi internada em instituições que procederam à sua “reeducação” para se tornar Serva.

Estas meditações têm, a maior parte das vezes, origem em observações e pequenos acontecimentos que Offred vivencia.

Nas secções narrativas mais longas, onde muitos destes devaneios também têm lugar, são marrados detalhes da diegese, muitas vezes de forma lenta e extensamente descritiva, permitindo ao leitor um conhecimento pleno dos contornos desta nova sociedade distópica.

The Handmaid’s Tale é uma narrativa que coloca, como frequentemente acontece na escritora

canadiana, mulheres que ocupam estratos menos bem posicionados da sociedade numa posição de protagonismo. Assim acontece com Alias Grace e com The Year of the Flood.

A narrativa prende-se em muitos detalhes, principalmente os relacionados com o ambiente e com as personagens. Os pormenores são-nos apresentados de uma forma lenta, como se a protagonista estivesse num estado de quase-morte ou tivesse sofrido um grande trauma (o que, neste último caso, é verdade), revivendo mentalmente aspetos de que nunca se lembraria numa situação normal, numa vida como a que teria sem as mudanças e sem as restrições que tem agora. É a vida a correr vagarosamente, como se não existisse tempo, como se o tempo não passasse. Esta dimensão do tempo psicológico é especialmente relevante no romance.

Numa vida normal, com muitos momentos bons, pode afirmar-se que o tempo passa rapidamente, o que não acontece na história de Offred, cuja vida é marcada pela negatividade.

A história, vivida no presente, narra vários períodos importantes da vida da protagonista através do recurso às suas recordações e sonhos. Assim, a anamnese estrutura grande parte do romance.

O “hoje”, no centro, e como ilustrado na figura 1, surge sem perspetiva de futuro, tudo converge para o centro, para uma espécie de buraco negro que exerce uma força descomunal. Tudo força Offred a situar-se na realidade presente, todos os elementos (o ambiente, as pessoas e as ações) dessa sociedade convergem num ponto comum, em ideias únicas, ideias fixas, imutáveis, controladas por essa força gravítica que tudo encerra em si própria.

Recorrendo a uma prolepse, a narradora conduz o leitor para um futuro indefinido, que pode estar distante ou próximo, que pode ser alcançável ou aparentemente inatingível, real ou imaginário. Uma vez aí, revela-nos a história da protagonista recorrendo a analepses.

O passado representa o presente do leitor, pretendendo a autora dizer que a distopia que criou está sempre à nossa frente (ou poderá estar), quer estejamos em 1985 ou em 2020.Para que tal aconteça, basta que a sociedade não esteja atenta a movimentos políticos e/ou sociais com desejos deste tipo de poder.

Como foi já referido, é através de viagens no tempo que Offred nos revela partes da sua vida passada (na verdade, uma outra vida). Tendo como inspiração factos, locais, objetos e pessoas, a protagonista recua no tempo, mas fá-lo de uma forma errática, como se tivesse todo o tempo necessário para o fazer deste modo aleatório, sem sistematização, sem urgência, sem uma linha temporal lógica. É assim que a Serva poderá estar, no mesmo momento, a vaguear pela infância com a mãe ou a fugir com a filha no período da revolução. Para isso coloca em discursos diretos aqueles as pessoas que foram mais importantes para si, nessa sua outra vida: a mãe, a amiga Moira, o companheiro Luke, a filha e, finalmente, após a revolução, as Tias e as companheiras que foram forçadas com ela à aprendizagem de uma existência confinada à procriação.

Figura 1- A vida distópica das mulheres: um movimento compressor.

para que se possa refletir sobre a obra usando outra perspetiva. Não significa isto que a narrativa esteja desordenada; pelo contrário, está organizada de forma a mimetizar o comportamento humano com as ideias a surgirem ligadas às interações com o ambiente e as personagens, facto que ajuda os leitores na compreensão da obra. Como se procura ilustrar na figura 1, é assim que a infância de Offred com a mãe, o período da universidade com Moira, o tempo da família com Luke e a filha, e o período de treino com as Tias e as outras mulheres capturadas, confluem no ponto central, na sua vida criada artificialmente para procriar, tal como se fosse um ciborgue, sem sentimentos. Offred é transformada numa criatura maquinal, valiosa porque capaz de procriar, mas cuja função meramente instrumental se limita a isso mesmo, à gestação de uma criança que fará a felicidade da mulher infértil do seu proprietário.

De salientar, todavia, uma outra grande diferença entre as imagens das figuras 1 e 2. Enquanto no representado na figura 1 existe uma linha temporal, é a história da protagonista até chegar a Serva, no que se representa como narrado na figura 2 essa linha temporal não existe, tudo se vive no presente.

Figura 2- A implosão da sociedade num mundo ciborguiano.

O futuro não tem lugar nesta estrutura societária, será sempre igual ao presente. Na verdade, o futuro está encarcerado na própria força implosiva do presente. Sem o saberem, pensando que tudo

estava a convergir para as suas ideias, estas forças teocráticas não conseguem abarcar tudo o que procuram absorver. Porém, o futuro está aí, está nesta implosão que vai provocar uma nova expansão, dando lugar a novas ideias, ideias diferentes, ideias complementares, à liberdade. O futuro, aparentemente inexistente, está no próprio tempo, num tempo imobilizado – pela inexistência de futuro –, um tempo concentrado e absorvido pelo buraco negro, um tempo que começará a contar, novamente, do zero. É o tempo zero de uma nova existência, de uma vida pós-distópica. É para isso que servem as distopias, para definir uma nova fronteira (no) do tempo.

Neste ponto, assumem alguma importância os conceitos apresentados por Paul Virilio (2000): a redução do espaço a imagens bidimensionais, com falta de perspetiva, e a redução do tempo e do espaço a zero, uma vez que a informação circula à velocidade da luz.

A concentração de todas as coisas, como mostrado na figura 1, num único ponto parado no tempo não tem fim, gerando uma implosão do “hoje”. Através das relações humanas e da amizade, geram-se sentimentos mais fortes e, tal como na maior parte das distopias, senão em todas, surge o amor que aglutina essa implosão, como esquematizado na figura 2. É neste contexto que Margaret Atwood aborda os temas do feminismo e da sexualidade, o que conduz ao conflito, não necessariamente entre os géneros, e, por fim, a uma libertação, à liberdade, apesar de a autora não ter chegado tão longe nesta narrativa, deixando essa possibilidade em aberto. Esta estratégia é compreensível, uma vez que a narradora retrata de forma verosímil a sociedade em que vivemos e na qual nem o contexto social nem a própria escritora encontraram ainda respostas para estas questões.

Esta obra tem vários pontos de confluência com a subjetividade trazida pelos desenvolvimentos tecnocientíficos para a vida diária das pessoas, a transgressão de fronteiras e o feminismo, como abordados por Donna Haraway.

Recuperando o pensamento da ensaísta estado-unidense, pode chegar-se a esta afirmação: sendo nós ciborgues, mesmo que de forma subjetiva, fica assim de certa forma esbatida a diferença entre os géneros quando considerada a era da micro e nano-eletrónica em que vivemos.

É desta forma que a distopia procura criar uma imagem da sociedade atual, neste caso tendo em conta principalmente a relação de género, a importância relativa do homem e da mulher na sociedade, o confronto entre o machismo e o feminismo, o feminismo bom e o feminismo mau (avocando que todos os machismos são maus).

Num tempo “ciborguiano”: Será este tipo de argumentações necessário? Existirão diferenças entre homem e mulher? Serão necessários o homem e/ou a mulher para manter a espécie? Que espécie queremos manter? O homo sapiens continuará a existir? Poderemos chamar homo sapiens a pessoas com “poderes” incorporados artificialmente? Poderemos chamar-lhes pós-humanos? Ou uma nova espécie?

Nas secções seguintes procura-se estabelecer estas relações fazendo uma análise mais detalhada de The Handmaid’s Tale, mas seguindo os esquemas mostrados nas figuras 1 e 2, e não a ordem da narrativa. Serão, portanto, analisados um movimento compressor da infância até à procriação numa sociedade distópica e a implosão dessa sociedade até à liberdade.