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ΨΥΧΑΓΩΓΊΑ (PSICAGOGIA) COMO O OFÍCIO DO FILÓSOFO

No documento Platão, poeta de uma nova tragédia (páginas 84-88)

ΜΕΤΑΞΥ” ( METAKSI): A REPÚBLICA

E, quanto àqueles que acreditam que essa virtude [política] não é

3.3 ΨΥΧΑΓΩΓΊΑ (PSICAGOGIA) COMO O OFÍCIO DO FILÓSOFO

Vimos que, para Schleiermacher, a obra de Diógenes Laércio seria dispensável para a compreensão do pensamento platônico. Procuramos demonstrar, porém, que ambos os pensadores (cada um a seu modo) defenderam o mesmo ponto de vista sobre a ação do discurso engendrado por Platão sobre seus interlocutores. Focamos sobre o episódio narrado pelo biógrafo (considerado anedota por uns, ou mera ficção por outros) sobre a invocação de Hefesto por parte do criador da Academia. Procuramos oferecer outra interpretação: o deus do fogo fora invocado não para destruir as criações poéticas do então “cisne de voz débil”, mas sua presença e atuação seria como um deus transmutador, forjador de algo novo.

Depois disso, analisamos a presença de Hefesto na tradição poética, em alguns diálogos platônicos e como o referido filósofo conferiu ao deus uma posição ímpar na construção de certos argumentos, buscando o elo entre a deusa Atena e o deus da forja. Essa similitude não decorreria apenas da relação de parentesco entre essas duas divindades (seria Hefesto tio ou irmão da deusa virgem? Haveria o deus coxo gerado um filho de Atena?), tampouco do elo parturiente entre os dois (Hefesto ajudando Zeus a dar à luz a deusa de olhos glaucos). Platão estabelecerá uma conexão entre as duas divindades ao colocar na boca de Protágoras o mito de Prometeu: Hefesto e Atena partilham da mesma φύσις.

Protágoras

Como, porém, Epimeteu carecia de reflexão, despendeu, sem o perceber, todas as qualidades de que dispunha, e, tendo ficado sem ser beneficiada a geração dos homens, viu-se, por fim, sem saber o que fazer com ela. Encontrando-se nessa perplexidade, chegou Prometeu para inspecionar a divisão e verificou que os animais se achavam regularmente providos de tudo; somente o homem se encontrava nu, sem calcados ou

coberturas, nem armas... Prometeu [...] para assegurar ao homem a salvação, roubou de Hefesto e de Atena a sabedoria das artes

juntamente com o fogo [κλέπτει Ἡφαίστου καὶ Ἀθηνᾶς τὴν ἔντεχνον

σοφίαν σὺν πυρί]...

Assim, foi dotado o homem com o conhecimento necessário para a vida; mas ficou sem possuir a sabedoria política; esta, se encontrava com Zeus, e a Prometeu não era permitido penetrar na acrópole, a morada de Zeus... Dessa maneira, furtivamente, penetrou no compartimento

comum em que Atena e Hefesto amavam exercitar suas artes, e roubou de Hefesto a técnica de trabalhar com o fogo, e de Atena a que lhe é própria, e as deu aos homens [εἰς δὲ τὸ τῆς Ἀθηνᾶς καὶ

Ἡφαίστου οἴκημα τὸ κοινόν, ἐν ᾧ ἐφιλοτεχνείτην, λαθὼν εἰσέρχεται, καὶ κλέψας τήν τε ἔμπυρον τέχνην τὴν τοῦ Ἡφαίστου καὶ τὴν ἄλλην τὴν τῆς Ἀθηνᾶς δίδωσιν ἀνθρώπῳ]. (PLATÃO. Protágoras 321c – e. Tradução de Carlos Alberto Nunes e grifo nosso)

Protágoras, nessa narração mítica, coloca no mesmo “espaço físico”, no mesmo “compartimento”, entendido aqui como “morada” (οἴκηµα) tanto Ἥφαιστος quanto

Ἀθηνᾶ. Ora, se estão juntos, depreendemos que esse vínculo não seria gratuito. Portanto,

o compartilhamento da mesma “morada” indicaria uma alusão à mesma φύσις desses deuses: ambos comungavam do mesmo “amor à arte” (ἔντεχνος σοφία).

Aqui caberia uma pergunta: qual ofício poderia unir esses deuses, aparentemente tão opostos? A resposta aparece nesse mito de maneira indireta: a junção entre τέχνη (aqui representado por Hefesto) e νοῦς (representado pela deusa da sabedoria). Prometeu percebeu que a salvação para o homem, ente totalmente desprovido de qualquer recurso na partilha das qualidades empreendida por Epimeteu, consistiria no entrelaçamento da técnica (arte laboral) e do conhecimento para usar o fogo e dele produzir sua defesa (armas) e sua indumentária (roupas, calçados etc.). Se no mito essa relação entre conhecimento e habilidade técnica aparece de maneira oblíqua, em Crítias tal relação torna-se evidente. Mais uma vez, não poderemos fazer uma digressão detalhada sobre esse diálogo devido a delimitação da nossa análise (que, nesse caso em particular, é discutir a relação entre Atena e Hefesto). Muito teríamos a discorrer sobre essa obra: por exemplo, a possível conexão entre esse diálogo com A República; a relação entre os aspectos dramáticos e o tema central; o fato de ser um diálogo inconcluso; a maneira abrupta como se inicia a conversa entre os personagens; o recurso de Crítias ao utilizar uma narração mítica para falar sobre a guerra entre a “proto- Atenas” e Atlântida; o fato da “representação”, ou seja, da “imitação” aparecer e ser atrelada ao discurso e como esse item se relacionaria com o “parecer ser” justo no

Protágoras etc. Contudo, para demarcarmos nossa investigação, focaremos

especificamente na fala inicial de Crítias.

Consoante esse personagem, os deuses de maneira harmônica dividiram entre si as regiões da terra e após tal partilha, a povoaram com os seres humanos por eles criados. Além disso, encontraram uma maneira fácil, livre de agressão, para controlar os homens: Crítias Atuavam sobre a alma por meio da persuasão como se fora um leme, segundo sua própria intenção e assim conduziam e governavam todo ser mortal [οἷον οἴακι πειθοῖ ψυχῆς ἐφαπτόμενοι κατὰ τὴν αὐτῶν διάνοιαν, οὕτως ἄγοντες τὸ θνητὸν πᾶν ἐκυβέρνων]. Enquanto as outras divindades organizavam as regiões restantes que a sorte lhes ofertara,

Hefesto e Atena, por terem a mesma natureza – sua irmã por ter vindo do mesmo pai e por se identificarem no amor à sabedoria, e às artes, se dedicam ao mesmo – receberam ambos esta região[a alma] como única parcela, apropriada e útil à virtude e à inteligência por natureza, [Ἥφαιστος δὲ κοινὴν καὶ Ἀθηνᾶ φύσιν

ἔχοντες, ἅμα μὲν ἀδελφὴν ἐκ ταὐτοῦ πατρός, ἅμα δὲ φιλοσοφίᾳ φιλοτεχνίᾳ τε ἐπὶ τὰ αὐτὰ ἐλθόντες, οὕτω μίαν ἄμφω λῆξιν τήνδε τὴν χώραν εἰλήχατον ὡς οἰκείαν καὶ πρόσφορον ἀρετῇ καὶ φρονήσει πεφυκυῖαν] implantaram homens bons e autóctones e introduziram à ordem política em seu raciocínio.

(PLATÃO. Crítias 109c – d. Tradução e grifo nossos)

Atena e Hefesto vinculam-se para além de qualquer grau de parentesco. Estão unidos pois coparticipam da mesma natureza, a saber, pela φιλοσοφία (amor à sabedoria) e φιλοτεχνία (amor às artes)151. Além disso, na partilha dos deuses, coube ao deus metalúrgico e à deusa de olhos brilhantes controlarem e persuadirem a ψυχή humana mediante a ordem política (πολιτεία τάξις) incutida no seu raciocínio. Dito de outro modo, o ser humano seria facilmente persuadido mediante o discurso, pois aprouve aos deuses engendrar essa particularidade nos homens. Devemos ressaltar que a violência física aplicada aos animais para domá-los, como os pastores fazem com seu rebanho de ovelhas (conforme as palavras proferidas por Crítias), não caberia à humanidade. Enquanto os animais, desprovidos da razão, obedeceriam facilmente quando submetidos ao flagelo, os homens, reagiriam de forma distinta, pois foram dotados de conhecimento político pela dupla divindade. Dessa maneira, sua Ψυχή, tal qual um leme, seria controlada e dirigida sem necessidade de violação do seu corpo. E o

151 Ressaltamos que ao traduzirmos φιλοτεχνία por “amor às artes”, entendemos por “arte” não apenas o que se refere à

que seria mais eficaz e mais poderoso que a agressão física? O que produziria melhor efeito? Segundo nos parece, o λόγος estaria nesta passagem para o raciocínio, assim como os golpes do cajado estariam para os animais desprovidos do conhecimento. Destarte, o discurso seria mais eficaz, mais poderoso e produziria melhores resultados do que qualquer violência física.

Se, na obra de Diógenes Laércio paira uma certa desconfiança, por parte de alguns, em se tratando da invocação do jovem Platão ao deus do fogo, espera-se que essa nuvem de incerteza se dissipe ou, pelo menos, diminua ao procurarmos entender a aparição desse deus nos diálogos escritos pelo filósofo. Partindo dessa premissa, proporemos algumas convergências entre a ação do deus do fogo e a ação do poeta- filósofo. A primeira delas é o caráter singular do deus Hefesto. Ele é o deus, por excelência, µεταξύ, e como alusão à essa característica ressaltamos seu andar claudicante, sua origem que remete ao fogo e a água.

Ao se associar à Atena, torna-se um deus ψυχοποµπóς, ou seja, um deus guia da

ψυχή humana. Vemos essa caraterística de Hefesto quando afasta o homem do estágio

animalesco (desprovido do fogo, do conhecimento, andando nu sobre a face da terra, alimentando-se de carne crua como uma fera, impossibilitado de uma vida em comunidade, pois destituído da organização política) e o conduz ao patamar de ser pensante, de amante da sabedoria e entusiasta das artes (segundo a visão que Crítias nos oferece).

De maneira análoga, não percebemos a tentativa de Platão de persuadir a ψυχή dos seus interlocutores, de guiá-los de um ponto inicial (notoriamente calcado na pior das ignorâncias, quando não se tem consciência de que não sabe) até aquele ponto mais alto onde se pode contemplar à sabedoria? Para isso, não vimos esse artesão das palavras, engendrar meticulosamente um novo λόγος cuja característica formal era ser

µεταξύ? Em outras palavras, os diálogos platônicos transitam entre o discurso poético

(já que possui notoriamente elementos poéticos na sua construção) e um novo tipo de discurso com características próprias (como por exemplo, a busca precisa de definições), o qual denominamos de “discurso filosófico”.

Por conseguinte, para dar conta desse λόγος ser uma coisa e também outra, como vimos, alguns comentadores classificam a obra de Platão como uma “filosofia dramática”. Outros, contudo, por entenderem que a ποίησις possuiria apenas um aspecto negativo (tal qual a sofística) e tentam reduzi-la a um “não-lugar” na filosofia de Platão. Com isso, queremos dizer que esse grupo, distinto daquele, coloca a ποίησις no campo

“meramente” literário ou a consideram como “adereço irrelevante” na compreensão do pensamento platônico. Desconsideram, portanto, a “forma” por ele utilizada.

Platão, ao eleger o diálogo filosófico como meio de transmissão das suas ideias, não o faz de maneira impensada ou aleatória. Defendemos a posição de que, assim como aparece inúmeras vezes e de muitas maneiras, no corpus platonicum, a sedução e formação da ψυχή pelo discurso poético, essa compreensão por parte desse referido filósofo, outorga à ποίησις extrema relevância na composição da sua filosofia, não apenas como conteúdo a ser discutido, mas também como forma eficaz de alcançar seus interlocutores.

Em suma, a analogia entre Hefesto – Atenas e o campo do ofício do filósofo é o papel formador da alma dos homens pelo discurso (poético-filosófico). Para ilustrar nossa premissa, apresentaremos no próximo tópico, ao analisarmos a conversa entre Céfalo e Sócrates na República, como Platão concatena recursos poéticos e filosóficos com o objetivo de guiar a alma dos seus leitores.

No documento Platão, poeta de uma nova tragédia (páginas 84-88)