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CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS ENTRE O HERÓI HOMÉRICO E O HERÓI PLATÔNICO.

No documento Platão, poeta de uma nova tragédia (páginas 58-62)

ΜΕΤΑΞΥ” ( METAKSI): A REPÚBLICA

3 A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA ΠΟΙΗΣΙΣ (POÍESIS)

3.1 CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS ENTRE O HERÓI HOMÉRICO E O HERÓI PLATÔNICO.

Procuramos até aqui ressaltar a importância da forma usada por Platão para transmitir suas ideias. O diálogo filosófico possui uma rica dramatização que, segundo nossa opinião, faz parte integrante e intencional do conteúdo. Em outras palavras, pontuamos a presença da ποίησις (poíesis) não apenas como conteúdo, mas também como forma na obra platônica. Esse entrelaçamento entre conteúdo e forma aponta para a construção de um tipo de discurso que, apesar da crítica à ποίησις, dela não pode prescindir. Tanto é que a elaboração desse novo λόγος traz em seu bojo elementos poéticos. Por exemplo: o modo como Platão procura inserir Sócrates na linhagem heroica, criando um novo tipo de herói. Vimos este ponto anteriormente, quando analisamos a κατάβασις na República e traçamos, de maneira sucinta, um paralelo entre Sócrates e Odisseu. Para avançarmos um pouco mais nessa direção, utilizaremos o filho de Tétis como paradigma do herói.

Na Ilíada, canto XVIII, ao saber da morte do seu “companheiro amado, Pátrocolo, a quem (...) honrava acima de todos os outros” (HOMERO. Ilíada. Canto XVIII, 80 – 81, tradução de Frederico Lourenço), Aquiles explode em dor. Seu grito dilacerante oriundo de um coração atormentado atravessa céus e terra chegando às abissais profundezas do mar, onde sua mãe, Tétis, ao escutá-lo, fica profundamente consternada. A nereida padece por saber, de antemão, que seu estimado filho não mais retornará ao seu seio104. Chamamos a atenção para os epítetos atribuídos a Aquiles por

Tétis: ἀµύµων (irrepreensível, nobre, excelente), κρατερός (forte, poderoso) e ἔξοχος (excelso, aquele que se destaca). Todos esses atributos proferidos pela ninfa designam o

ἥρως (herói).

Após lamentar-se com as irmãs, Tétis vai ao encontro do filho. Indaga-lhe o porquê de tamanho sofrimento. Recebe de Aquiles uma resposta calcada em dois 104 “Ouvi-me, Nereides minhas irmãs, para que escutando fiqueis todas sabendo os sofrimentos que tenho no coração! Ai de mim, desgraçada! Infeliz parturiente de um príncipe! Eu que dei à luz um filho irrepreensível e forte, excelso entre os heróis [ὤ μοι ἐγὼ δειλή, ὤ μοι δυσαριστοτόκεια, ἥ τ᾽ ἐπεὶ ἂρ τέκον υἱὸν ἀμύμονά τε κρατερόν τε ἔξοχον ἡρώων] (...). Porém nunca mais o receberei de novo, Regressado para casa, no Palácio de Peleu”. HOMERO. Ilíada. Canto XVII, 52 – 56, 59 – 60. (Tradução de Frederico Lourenço e grifo nosso).

perigosos pilares, a saber, o rancor e o pesar. Ele lhe informa que ceifará, sem misericórdia, a vida de Heitor, algoz do seu caro Pátroclo. Vertendo lágrimas, Tétis vaticina: “Ai de mim, será rápido o teu destino, meu filho, pelo que dizes! Pois logo a seguir à de Heitor está a tua morte preparada” (Homero. Ilíada, Canto XVIII, 95 – 96). Aquiles não retrocede perante aquele augúrio. A morte não o intimida. A escolha já foi feita: prefere defender a honra do amigo falecido (o qual fora vilipendiado de maneira brutal) e morrer “logo em seguida”, do que levar uma vida larga e tranquila, mas sob a insígnia da desonra. Por isso, aceita o que o maior dos Olímpicos decidira e não se desvia das Moiras:

Muito agitado lhe respondeu então Aquiles de pés velozes: “Que eu morra logo em seguida, visto que auxílio não prestei ao companheiro quando foi morto; (...) Mas agora já não regressarei à amada terra pátria, (...). O meu destino acolherei na altura em que Zeus quiser cumpri-lo, assim como os outros deuses imortais. Nem a força de Héracles fugiu ao destino, Ele que mais amado foi pelo soberano Zeus Crônida. Também a ele o destino subjugou, e a raiva malévola de Hera. Do mesmo modo também eu, se igual destino me foi preparado, Haverei de jazer quando morrer. Agora escolho o glorioso renome.

Não me impeça [Tétis] de combater, por mais que me ames: não me convencerás.”

(Homero. Ilíada. Canto XVIII, 97 – 99, 101, 115 – 121, 125 – 126 . Tradução de Frederico Lourenço e grifo nosso).

Aquiles faz sua célebre escolha e, ao abdicar de uma vida longeva, afasta-se consequentemente de λήθη (esquecimento). Será celebrado por aqueles que perpetuarão, em um eterno rememorar, seus grandes feitos. O filho de Tétis encara seu destino sem temor, pois seus atributos de herói o impedem de agir diferente. Justamente, por isso, seu “glorioso nome” será relembrado pela posteridade. Ressaltamos que nem o pranto da sua mãe nem a iminência da morte conseguem demovê-lo dos seus intentos. Homero esculpe perante nossos olhos o ἦθος105 de Aquiles.

Ora, Platão retomará essa passagem da Ilíada, na Apologia 28a – e, colocando Sócrates na mesma posição de Aquiles, ou seja, a de um ἥρως. A cena dramática criada pelo artesão de palavras, de certa maneira, possui elementos que nos remete à escolha de Aquiles. Sócrates terá que optar entre pagar a multa, assumir a culpa das acusações que pesavam sobre ele e sair ileso do tribunal (vivendo os anos que lhe restavam em

105 Chantraine, 2000, p. 894, oferece-nos uma tradução poética de ἦθος para além de “caráter”. É também “a disposição da

paz), ou então enfrentar a morte por algo que julgara justo. Veremos o mesmo ἦθος heroico em Sócrates que vimos em Aquiles quando Tétis descrevera as características do seu filho: ἀµύµων, κρατερός e ἔξοχος. Porém, com uma notável diferença: sóbrio, ao invés de irascível e atento a viver justamente. Apesar deste trecho da Apologia ser um pouco extenso, faz-se necessário citá-lo na íntegra para percebermos como o personagem principal se iguala ao herói homérico, no sentido da sua disposição da alma: irrepreensível, corajoso e por isso mesmo, excelso. E como, ao mesmo tempo, diverge desse paradigma homérico. Basta compararmos a postura socrática em relação a Aquiles. O que incita o filósofo e o faz permanecer inabalável na sua escolha é a palavra de Apolo recebida por intermédio do Oráculo. Já o grande amigo de Pátroclo recusa-se a ouvir a voz da divina Tétis. Vejamos como Platão descreve o ἦθος de Sócrates:

Sócrates

(...) As calúnias e a inveja das gentes [ἡ τῶν πολλῶν διαβολή τε καὶ φθόνος] e não Meleto ou Ânito condenaram e condenarão muitos outros

homens bons [ἀγαθοὺς ἄνδρας]. Creio que [οἶμαι] me hão de condenar também (...).

Ou talvez alguém diga: “Não te envergonhas, Sócrates, de te comportares de tal maneira, agora que corres o risco de ser morto [‘εἶτ᾽ οὐκ αἰσχύνῃ, ὦ Σώκρατες, τοιοῦτον ἐπιτήδευμα ἐπιτηδεύσας ἐξ οὗ κινδυνεύεις νυνὶ ἀποθανεῖν;’”]?

A esse darei uma resposta justa: não falas bem, se pensares que um

homem que valha alguma coisa se deve preocupar com viver ou morrer. Quando age, não deve ter outra coisa em que pensar senão na justeza ou não justeza daquilo que faz e se é ou não um homem bom [ἐγὼ δὲ τούτῳ ἂν δίκαιονλόγον ἀντείποιμι, ὅτι ‘οὐ καλῶς λέγεις, ὦ ἄνθρωπε, εἰ οἴει δεῖν κίνδυνον ὑπολογίζεσθαι τοῦ ζῆν ἢ τεθνάναι ἄνδρα ὅτου τι καὶ σμικρὸν ὄφελός ἐστιν, ἀλλ᾽ οὐκ ἐκεῖνο μόνον σκοπεῖν ὅταν πράττῃ, πότερον δίκαια ἢ ἄδικα πράττει, καὶ ἀνδρὸς ἀγαθοῦ ἔργα ἢ κακοῦ].

Se não fosse assim, os semideuses que morreram em Tróia de pouco valeriam e de pouco valeria o filho de Tétis, que desprezava tal perigo tanto quanto não suportava a vergonha. Quando estava a ponto de matar Heitor, a mãe, que era uma deusa, disse-lhe: “Meu filho, se vingares o fim do teu companheiro Pátroclo, (...) tu próprio morreras (...)”.

Ao ouvir isto, Aquiles, pouco caso fez da morte e do perigo, pois temia mais viver como um homem ruim [ὁ δὲ τοῦτο ἀκούσας τοῦ μὲν

θανάτου καὶ τοῦ κινδύνου ὠλιγώρησε, πολὺ δὲ μᾶλλον δείσας τὸ ζῆν κακὸς] (...). Crês que [Aquiles] se preocupava com a morte ou o

perigo [μὴ αὐτὸν οἴει φροντίσαι θανάτου καὶ κινδύνου;]? Pois assim é, na

verdade, Atenienses. Onde quer que o homem ocupe o lugar que lhe parece melhor, aí deve ele permanecer e arriscar-se, sem pensar na morte ou no que quer que seja. Ao lado do seu chefe não deve temer nada a não ser a vergonha.

Teria eu cometido uma terrível falta se, (...) quando o deus me deu um posto – que, pelo que julguei perceber era viver a filosofar, examinando-me a mim próprio e aos outros – desertasse desse posto, com medo da morte ou do mais que fosse (...)

[ἐγὼ οὖν δεινὰ ἂν εἴην εἰργασμένος,(...) δὲ θεοῦ τάττοντος, ὡς ἐγὼ ᾠήθην τε καὶ ὑπέλαβον, φιλοσοφοῦντά με δεῖν ζῆν καὶ ἐξετάζοντα ἐμαυτὸν καὶ τοὺς ἄλλους, ἐνταῦθα δὲ φοβηθεὶς ἢ θάνατον].

(Platão. Apologia 28a – e, tradução de José Trindade Santos e grifo nosso).

Sócrates, tal qual um vidente, enxerga para além daquilo que se apresenta. Os seus reais acusadores não eram aqueles homens postados à sua frente, Meleto e Ânito, com suas acusações pífias e contraditórias. Seus verdadeiros e poderosos inimigos eram

διαβολή (calúnia; falsa acusação) e φθόνος (inveja; ciúmes), pois conseguiram ceifar

homens bons (ἄνδρες ἀγαθοί) tanto no passado quanto no presente. Cônscio do poder dos seus legítimos inimigos, Sócrates presume (οἴοµαι) que também sucumbirá. E para reforçar sua escolha, a saber, que não retrocederia, mesmo diante da possível morte (ἀποθνήσκω), constrói um diálogo hipotético entre ele e alguém.

Este desconhecido indaga a Sócrates se não teria vergonha (αἰσχύνη) de ter agido de tal maneira que colocou a própria vida em risco. A resposta de Sócrates evidencia seu ἦθος. A única razão para ter αἰσχύνη é viver sem observar e praticar a justiça. Dito de outro modo, o que se deve ter em mente é ser ou não ser um homem bom. Ora, um “homem que valha alguma coisa”, mesmo um “valor ínfimo” (µικρός

ὀφελός), não deve se preocupar com viver ou morrer, mas com a maneira como se deve

viver. Tal qual o filho de Tétis, Sócrates não teme a morte ou o perigo e, sim, viver como um homem ruim (ζάω κακὸς). Nesse momento, como uma sequência lógica dos acontecimentos, percebemos a insinuação platônica: se Aquiles não recuou perante a morte, Sócrates, tal qual o herói, também não recuaria. Se um temeu viver de maneira que feria a justiça e a honra, o outro envereda pela mesma senda. Ambos se relacionam com a divindade e a resistem (não podemos esquecer que, primeiramente, Sócrates inicia sua busca por alguém mais sábio do que ele como uma forma de confrontar o deus e mostrar-lhe seu erro). No entanto, apesar de ambos não serem páreos às Moiras, e sucumbirem ao destino de todo mortal, o filósofo mostra sua peculiaridade: entende a real mensagem divina (viver a filosofar) e assume seu posto. Tal qual Aquiles entra na batalha guiado pela palavra divina, Sócrates permanece, pois, firme até o final.

3.2 ἭΦΑΙΣΤΟΣ (HĒPHAISTOS) E ἈΘΗΝᾶ (ATHĒNÁ) ENCONTRAM O

No documento Platão, poeta de uma nova tragédia (páginas 58-62)