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A Ação Modernizadora da Igreja Católica

O Desenvolvimento de Comunidades, programa que se desenvolve no Brasil a partir de uma parceria entre os Estados Unidos da América e o Brasil, foi criado a partir da Guerra Fria. Após a segunda guerra mundial, preocupada com a expansão do ideário comunista no chamado, desde então de „Mundo Livre‟, os Estados Unidos começam a desenvolver programas de ajuda aos países do então chamado Terceiro Mundo, sob sua órbita de influência, para dirimir os problemas mais agudos dessas nações.

Ammann apresenta essa política desenvolvida pelos Estados Unidos da América da seguinte forma:

Sob o argumento de que „a pobreza é um entrave e uma ameaça tanto para essas populações (pobres) como para as áreas mais prósperas; de que „na atual luta ideológica os povos famintos têm mais receptividade para a propaganda comunista internacional do que as nações prósperas‟; de que „o esforço de ajudarem os povos a alcançarem um nível de vida mais sadio e mais economicamente produtivo eliminaria os focos de comunismo em potencial‟; de que „as melhorias das condições sociais e econômicas em qualquer parte do mundo livre redundaria em benefício dos Estados Unidos‟ este país se proclama líder do mundo pela boca de seu presidente: „creio que devemos oferecer aos países amigos da paz, afirmava Truman em seu discurso de posse, os benefícios do nosso cabedal de conhecimentos técnicos e ajudá-los a realizar suas aspirações por uma vida melhor. (AMMANN, 2003, p.30)

Essa preocupação, é claro, tinha um viés voltado, segundo alguns analistas, para a formação de mão-de-obra especializada que atendesse ao desenvolvimento tecnológico, que permitisse mais produtividade e consequentemente maior retorno aos investimentos do capital. Acredito, também, que esse processo tinha uma preocupação central em se colocar como ajuda para as populações do chamado terceiro mundo, ou mundo subdesenvolvido, que não tiveram a mesma sorte que os países centrais. Assim, há uma preocupação com a educação, educação que extrapolava o sentido da formação, principalmente da formação para a cidadania, e se centrava na educação profissionalizante. Mesmo quando sua preocupação é ensinar a ler e escrever, o foco é a mudança de hábitos, a racionalização no trabalho e na convivência comunitária. Nesses elementos estão presentes a cooperação, o planejamento e a produção de bens e serviços dirigidos para o mercado.

Pode-se depreender da análise da ideologia do desenvolvimento de comunidades feita por Ammann que a educação é fundamental para:

(...) a expansão da ideologia e do modo de produção capitalista” (p.33) e sendo assim são criadas escolas de serviço social com o intuito de acompanhar e estimular o

processo de organização dos camponeses a partir da introdução de mudanças de mentalidade, inovando processos, modernizando práticas e introduzindo a produção racional e técnica mais adequadas a produção para mercado; “... reconhece-se a necessidade urgente de modernizar a agricultura e criar nas áreas rurais condições favoráveis à consolidação do sistema capitalista. Tal postura casa-se perfeitamente com a política definida em âmbito nacional que aponta àquela época em direção à industrialização do país, a qual por sua vez imprescinde da crescente oferta de produtos primários. (IDEM, p. 33)

A Igreja facilmente se incorpora a esse trabalho. Em primeiro lugar, porque ela também via na expansão comunista uma ameaça. Aliás, ela prepara quadros desde os anos trinta para combater, através de jornais e periódicos, as idéias marxistas que se expandem no movimento operário. São criados institutos onde o pensamento cristão é desenvolvido e adequado à realidade brasileira, como resposta ás diversas análises orientadoras da ação dos Partidos Comunista e Socialista brasileiros. Dá-se, nesse sentido, embate constante entre essas visões de sociedade e do homem, da promoção e desenvolvimento do homem e da sociedade e do estado como instrumento de efetivação de direitos e de políticas públicas.

No Nordeste, é bom frisar, a ação modernizadora das arquidioceses de Fortaleza, Aracaju e de Natal, principalmente desta última, que cria o Serviço de Assistência Rural para atuar no campo, com o intuito de evitar a assimilação da propaganda comunista. É interessante ressalvar a fala de D. Eugênio Sales, que afirma ser necessário atuar no campo para evitar que as populações urbanas do futuro aceitem a ideologia marxista. Criar no campo uma mentalidade mais resistente, mais cristã que rejeite a propaganda marxista atéia, o proselitismo das outras igrejas e a ação radical das Ligas Camponesas.

Enquanto força política, a Igreja conseguiu neutralizar outras forças que também disputavam a hegemonia das lutas dos trabalhadores no momento. Uma delas foi o Partido Comunista Brasileiro, que, aliás, desde a década de 1940 vinha desenvolvendo uma estratégia objetivando organizar o trabalhador rural em associações, ligas e sindicatos, na tentativa de dar uma direção às suas lutas. (CRUZ, 1985, p. 69)

Portanto, para D. Eugênio Sales, o trabalho a ser desenvolvido pela Igreja era voltado para a família e para as comunidades rurais. A intenção era promover integração e a cooperação, a modernização não excludente, mas que garantisse a terra para produção familiar e uma legislação trabalhista que protegesse os trabalhadores rurais, dentro da legalidade, portanto.

No Crato, encontra-se um dos trabalhos da Igreja mais completamente afinados com as propostas expostas acima. O bispo do Crato, D. Vicente de Araújo Mattos, cria a Fundação Pe. Ibiapina. Nessa fundação concentra toda a ação para o homem do campo, e a partir dela são criados clubes de mães, de jovens, de produtores, associações e sindicatos de trabalhadores rurais. Nela também é criada a Escola de Líderes Rurais que tem como preocupação a formação de lideranças afinadas com a Igreja. São ministrados cursos de liderança, de legislação trabalhista, de agentes de saúde comunitário, de sindicalismo, de corte e costura e tantos outros, passando para os jovens que os frequentam uma visão cristã do mundo, claro que uma visão definida e determinada pela própria Igreja enquanto instituição humana, com opções claras quanto aos caminhos que as sociedades ocidentais devem seguir.

A preocupação com o campo se acentua na medida em que começam a emergir formas de organização e luta, independentes ou ligadas aos partidos considerados de esquerda. Não se pode esquecer a ação do PCB na criação de confederações, federações e sindicatos de trabalhadores rurais e a ação do Partido Socialista Brasileiro na organização das Ligas Camponesas. Desse modo, avança a Igreja na proposta de criação dos sindicatos e na divulgação de bandeiras como a da Reforma Agrária. Antes que se expanda a luta pela reforma agrária radical, como proposta pelas Ligas, a Igreja propõe outro modelo que vai no sentido da modernização capitalista: divisão da terra, assistência técnica, produção moderna a partir do uso de máquinas e voltadas para o mercado. Portanto, articulada com o processo de modernização e industrialização propostas pelo desenvolvimento do capitalismo no Brasil. O próprio Celso Furtado associa a

reforma agrária ao desenvolvimento da industrialização dos centros urbanos. As áreas reformadas seriam áreas de produção de alimentos baratos para os centros urbanos, barateando com isso os custos de mão-de-obra. Sendo assim, seriam as áreas reformadas áreas de produção racional e técnica, modernas, portanto, articuladas à indústria nascente como mercados para a absorção de máquinas agrícolas e outros insumos industrializados. Situação que quebraria com a agricultura tradicional, familiar, capaz de economizar braços que seriam posteriormente aproveitados como mão-de-obra da indústria nascente.

São várias correntes em confronto na sociedade brasileira que vão paulatinamente se condensando e conflitando na ação concreta sobre a população rural. Lembro que desde as duas primeiras décadas do século XX vai se consolidando uma visão modernizadora do campo via criação de Faculdades de Agronomia. Essa concepção de desenvolvimento rural, expressado, segundo Mendonça (1996), no movimento ruralista, associada ao desenvolvimento do capitalismo mundial, passa, segundo a autora, pela ideologia divulgada pelos segmentos dominantes de que o Brasil tem uma vocação, definida e determinada por sua extensão e por sua localização tropical, para a agricultura. Não sei se essa concepção tem a ver com a oposição de interesses da elite industrial, com a elite agrária, cada uma procurando definir o estado de acordo com seus interesses e, claro, submetido aos interesses desses segmentos em conflito, que segundo Fernandes, não seriam tão conflitantes assim, na medida em que os capitais usados no processo de industrialização, pelo menos o processo iniciado no final do século XIX, teria se dado em função dos capitais oriundos da atividade rural. Mas acredito que, na medida em que vão se consolidando esses capitais, com certeza os atritos vão ocorrer pela predominância de um setor sobre o outro na determinação das políticas dos governos republicanos de então.

Engana-se quem acredita que a visão ruralista expressa nesse movimento seria conservadora, pretendesse uma restauração da plantação nos moldes anteriores à república. O que se pretendia era a modernização da

agricultura, considerada a vocação natural do Brasil, nos âmbitos da grande propriedade, da média e da pequena propriedade, cada uma delas com sua vocação própria de atendimento aos mercados externos e aos mercados internos; e a pequena e a média voltadas para a produção de alimentos (MENDONÇA. 1996, P. 181). Esse projeto, no fundo, era o mesmo projeto de modernização do campo proposto pela Igreja. Consolidar a economia nacional, afirmar a produção familiar moderna, com capacidade de assegurar a sobrevivência das mesmas e demonstrar que os interesses dos setores agrícolas exportadores ou dos grandes produtores rurais não estavam na contramão do desenvolvimento dos pequenos produtores rurais, pelo contrário, seriam complementares.

Claro que a modernização que se consolida não é aquela proposta na velha república. Em algumas localidades do interior do país, a modernização posta em prática muito mais para atender aos interesses da indústria nascente vai provocar migrações e vai desestruturar a agricultura familiar, escasseando as terras para a agricultura camponesa. Poder-se-ia dizer que a visão de desenvolvimento rural posta em prática pelo desenvolvimento de comunidades se assemelha à visão dos ruralistas. Ela irá propor que a modernização da grande propriedade de terras incida também sobre as médias e pequenas propriedades rurais. O importante é especializar a atividade agrícola por grupo de áreas, de modo que a grande propriedade se especialize na agricultura de exportação, as médias e pequenas se voltem para a agricultura de alimentos, principalmente para atender ao mercado interno.

A Igreja incorpora esse modelo e passa a atuar com ênfase no campo a partir de diretrizes que emanam de encontro realizado em Minas Gerais, sob a orientação de D. Egelke. Segundo Martins (1995), esse encontro foi realizado com a presença da Igreja, sua hierarquia, professores e fazendeiros. Essa configuração dos presentes revela, em primeiro lugar, que a Igreja assume uma postura conservadora de manutenção da ordem e da paz numa sociedade capitalista capaz de promover o desenvolvimento e a modernização das relações de produção no campo. Depois, que o Estado,

através dos professores rurais, assume responsabilidade condizente com sua função de, através da educação, manter a unidade nacional ameaçada pela presença dos comunistas. Mas, a educação não é apenas ministrada pelo Estado, também é desenvolvida pela Igreja, através de colégios espalhados em todo o interior do país e pela ação de bispos que assumem a educação no campo através de institutos e fundações. Como é o caso de Natal e do Crato, educação que não é formal, mas uma educação profissional voltada para as atividades complementares às atividades agrícolas. Não se deve esquecer a formação sindical que em parte se faz no Brasil através da Igreja.

Mas, o papel da Igreja vai mais longe. Seu papel educador não se encerra nas escolas e nas fundações, ele perpassa o culto, com as pregações diárias, no trabalho de catequese e nos organismos de base que são criados por ela no campo. É uma presença bastante generalizada e ramificada que se apóia numa visão de sociedade integrada, cooperativa e solidária, enfim, uma sociedade que privilegia a paz social apesar das diferenças. Nesse encontro, D. Inocêncio Engelke chama a atenção para a questão da reforma agrária: “Com nós, ou sem nós, ou contra nós ela será realizada”38. Tal

chamada de atenção tem um alerta para a urgência da ação da Igreja e dos proprietários para as necessidades do homem do campo, dos problemas que são vividos por eles e a necessidade de resolvê-los, antes que os comunistas sublevem a sociedade.

As comunidades são uma base para o trabalho da Igreja e o desenvolvimento de comunidades será a ideologia que irá permitir a unidade e a paz no campo, ao mesmo tempo, evitará o proselitismo comunista que tem por base a exploração do trabalho pelo capital, a opressão e a ausência de direitos que efetivamente favoreçam o homem do campo. Para a Igreja, ou se modernizam as relações de trabalho no campo, se melhora as condições de vida dos trabalhadores ou os trabalhadores se levantarão, basta ver o exemplo das Ligas Camponesas. E a ação da Igreja se faz

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exatamente para se contrapor às iniciativas que se colocam contra a forma capitalista de produção, modo de produção capaz de atender, através do desenvolvimento, as carências dos mais pobres. O Desenvolvimento de Comunidades, segundo a Igreja, e por isso ela se envolve com o processo de organização de comunidades, é a melhor maneira de suprir as carências e a pobreza, é a melhor forma de desenvolvimento por garantir a cooperação entre trabalhadores e empresários, afinal essas classes necessitam da cooperação uma da outra. Para RICCI (1999)

Havia um agrupamento político no interior da Igreja Católica que organizava encontros cuja tônica era a valorização da família rural como unidade econômica, de suas características de povo conservador e desconfiado, em que se pregava a introdução de máquinas e o „financiamento por intermédio de cooperativas para soerguer-lhes o ânimo. (p. 55)

Mais adiante Ricci mostrará a relação da Igreja com a ONU na implementação do desenvolvimento de comunidades:

Na década de 1950, a ONU estimulou o esforço educacional e modernizador do terceiro mundo utilizando-se do conceito de comunidades com o objetivo de unir „os esforços do próprio povo [...] aos das autoridades governamentais, com o fim de melhorar as condições econômicas, sociais e culturais das comunidades, integrar essas comunidades na vida nacional e capacitá-las a contribuir plenamente para o progresso do país. Chegou a afirmar a necessidade urgente de modernizar a agricultura, criando-se condições para a consolidação do capitalismo moderno.

A participação de setores da Igreja neste processo foi intensa. A União Católica Internacional de Serviço Social promoveu, sob o patrocínio da UNESCO, o Seminário de Educação de Adultos para o Desenvolvimento de Comunidade, em 1957, que reforçou a necessidade do trabalho nas comunidades rurais a partir dos novos imperativos internacionais. (Idem, p.56)

No desenvolvimento de comunidades, está um dos elementos que depois possibilitaram o aparecimento das comunidades eclesiais de base, isto porque cria uma base comunitária, aproxima as pessoas na discussão de suas carências e potencialidades e, na medida em que são frustradas, na percepção mais crítica dos direitos: para quem estão dirigidos os direitos, quem são os destinatários dos mesmos e os limites da participação. Os

técnicos envolvidos no processo também passam a perceber que o desenvolvimento de comunidades, em seu formato inicial dos anos cinquenta e sessenta do século passado, não gera oportunidade para os segmentos populares, mas gera a acomodação diante dos entraves que dificultam a ação popular. Da mesma maneira que gera desconforto na Igreja, principalmente entre religiosos, na medida em que percebem que o desenvolvimento no campo gera mais desemprego, são as máquinas substituindo o homem, rompendo com as relações tradicionais que, no mínimo, possibilitavam ocupação e terra para a produção de alimentos.