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A Época do “senhorzinho satisfeito”

CAPÍTULO 2 Parte II

2.11 A Época do “senhorzinho satisfeito”

O título é bastante sugestivo. A reflexão orteguiana possibilita, com este capítulo, uma reflexão mais combativa. Não se trata de apresentar o problema, tampouco de descrever a tipologia do homem atual na sociedade moderna, pelo contrário, faz-se necessário, segundo o autor, combater o “senhorzinho mimado”, que, no passado, era dirigido e não se importava com isso, mas, agora, resolveu comandar o mundo. De posse dos estudos psicológicos e históricos do novo Adão, Ortega y Gasset aborda três pontos característicos e fundamentais para que se compreenda a ação funesta desse indivíduo denominado de massa.

De acordo com o primeiro ponto, o homem-massa tem a impressão inata e radical de que a vida é fácil e sem limitações, por isso dispõe de uma sensação de domínio e triunfo fora do comum. Pelo segundo, o homem-massa se promove moral e intelectualmente como senhor absoluto. Quer dizer, esse homem não necessita dos demais, ele vive de acordo com os seus desejos e suas opiniões e não precisa de nenhum princípio que o regule, pois ele é o próprio princípio. E, por fim, o homem-massa intervirá em tudo de forma violenta e arbitrária para assegurar os seus desejos vulgares. A sua ação é direta e, por isso, não há limites. Sobre esses pontos, Ortega y Gasset nos

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86 adverte: “Esse conjunto de facetas nos faz pensar em certos modos deficientes de ser homem, como a ‘criança mimada’ e o primitivo rebelde, isto é, o bárbaro” 110.

O pensador espanhol adverte que a sociedade fechou os olhos para o alarmante fato de que o bárbaro111 comanda a Europa, mas, que, no futuro próximo, todos irão perceber os resultados de uma ação violenta e arbitrária dessa tipologia de homem. No momento, o homem-massa não parece incomodar; ele é, segundo o autor, uma espécie de personagem que desfila em toda parte da sociedade e impõe seus desejos, semelhante ao menino mimado, como se observa nesta frase: “O menino mimado é o herdeiro que se comporta exclusivamente como herdeiro” 112.

Apresentamos anteriormente que o pensamento orteguiano é assinalado por metáforas e figura de linguagens. O menino mimado, por exemplo, representa o homem-massa que vive em função de seus desejos e de suas vontades voláteis. E com o advento desse homem comandando a sociedade moderna lhe resta a civilização como herança. Dessa forma, as benesses da civilização, a exemplo da ciência empírica e da comodidade, impulsionam a alma vulgar do homem-massa para exercer o domínio da humanidade. Nessa perspectiva, denuncia Ortega y Gasset: “É uma das muitas deformações que o luxo produz na matéria humana” 113. Herdeiro dessa cultura de massa, a alma vulgar se fecha nas ilusões cotidianas e passa a viver a exterioridade de uma realidade banal que é postergada pela efemeridade do “moderno”.

De acordo com esse pensamento, Ortega y Gasset faz uso do seguinte exemplo: pensemos na aristocracia hereditária. O homem ao nascer encontra-se instalado, sem saber como, em um espaço de riquezas e prerrogativas e tem que viver como herdeiro de uma vida que não escolheu e que não é sua. Encontra-se condenado a representar o outro e, ainda, não consegue ser ele mesmo e tampouco o outro. Assim, nos assegura o pensador espanhol: “E tem que viver como herdeiro, isto é, tem que usar o arcabouço de outra vida. E aí, o que acontece? Que vida vai viver o ‘aristocrata’ por herança, a sua ou a do prócer inicial? ”114. A preocupação do autor é precisamente apontar a vida como

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Ibdem, p. 130.

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O autor faz um adendo importante. Não se deve tomar por bárbaro o primitivo normal. Este é suscetível às instâncias superiores. O bárbaro que comanda a Europa é um terrível sujeito que, do nada, invadiu a sociedade e impôs sua ação violenta e desumana.

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ORTEGA Y GASSET, A Rebelião das Massas. 1987. p, 130

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Ibdem, p. 130.

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87 luta e esforço para que seja ela mesma. E o aristocrata herdeiro não pode sentir a vitalidade de sua própria vida.

A discussão em torno da aristocracia hereditária é, segundo o autor, para demonstrar que a vida do homem-massa não passa de uma construção automática da civilização moderna. Quer dizer, o século XIX possibilitou a formação de um espectro de homem que o autor denomina de bárbaro. E este, filho da modernidade, só compreende as benesses da civilização, mas não os seus problemas e suas angústias. Para Ortega y Gasset, a sociedade moderna gerou o que há de pior na história da humanidade, a saber, o bárbaro do século XIX. Seguindo esse entendimento assegura o filósofo espanhol: “Não veio de fora do mundo civilizado como os ‘grandes bárbaros brancos’ do século V; tampouco nasceu dentro dele por geração espontânea, como os girinos nos tanques de água – segundo Aristóteles -, mas é seu fruto natural” 115.

Para o filósofo espanhol, não se pode pensar o homem sem compreender a sua vida como drama. E na assertiva anterior ele nos adverte que a sociedade moderna vilipendiou a noção sublime de “vida” e a transformou em efemeridade, ou seja, o que era sacrifício e luta, tornou-se tranqüilidade e conforto. No entanto, os que assim fizeram, desprezaram, segundo o autor, a lei da paleontologia e da biogeografia. Quer dizer, o surgimento e o progresso da vida humana ocorreram, na perspectiva de Ortega y Gasset, quando houve o equilíbrio entre os meios disponíveis e os problemas a serem enfrentados. Deste modo, nasce e floresce a vida. Nesse sentido, assevera o pensador espanhol: “Assim, para me referir a uma dimensão bem concreta da vida corporal, lembrarei que a espécie humana brotou em zonas do planeta onde a estação quente era compensada por uma estação de frio intenso” 116.

Tal postura gera uma reflexão de conflito. A vida é filha dos contrastes. E viver é, na perspectiva do autor, lançar-se no combate cotidiano e perder-se na finitude da boa luta. Contudo, o “senhorzinho satisfeito”, em sua anormalidade, não compreende a dimensão da vida enquanto drama constante e produz a nulidade política de uma sociedade em formação. Há outro exemplo importante, nos escritos orteguianos, que demonstra a deficiência da ação direta desse bárbaro: o senhorzinho acredita é que é possível qualquer coisa na sociedade moderna. Que ele pode tudo. O filósofo o compara

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Ibdem, p. 133.

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88 a um menino mimado de família, pois, na esfera familiar, tudo fica impune até mesmo, segundo o autor, os maiores delitos. De acordo com essa interpretação, afirma o filósofo de Madrid: “O âmbito familiar é relativamente artificial e tolera dentro dele muitos atos que na sociedade, nas ruas, trariam automaticamente conseqüências desastrosas e indubitáveis para seu ator” 117.

A posição do senhorzinho é, segundo Ortega y Gasset, semelhante ao menino de família citado no exemplo. Ele acredita que pode se comportar como se fosse a sua casa. Dessa forma, nada é irrevogável e tudo é possível. A discussão gira em torno do limite, aliás, da falta de limite, na visão do autor, para essa criança mimada. Ela vive o seu presente, não importa o passado tampouco o futuro. O importante é o agora, uma figura sem raiz que se deixa levar pelas correntezas dos desejos grosseiros. Semelhante ao menino de família, que desconhece a sociedade, assim também é o homem-massa. Esse não conhece a civilização e, por isso, a toma como se fosse a sua casa, onde tudo é permitido. O detalhe repugnante, segundo o autor, é que, este homem, menino satisfeito, resolveu governar o mundo e, por isso, impõe o esvaziamento do “eu” e a construção vulgar de uma alma torpe.

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