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Primitivismo e história

CAPÍTULO 2 Parte II

2.10 Primitivismo e história

Apresentamos, em momentos anteriores, a noção de história segundo o pensamento orteguiano, estabelecemos relação entre primitivismo e técnica e, de forma especial, destacamos a concepção de primitivismo nos escritos de Ortega y Gasset. Agora, faremos uma observação entre primitivismo e sua relação com a história à luz das idéias orteguianas.

A reflexão do autor tem como base a compreensão tipológica do homem e sua ação na sociedade atual. Nesse tópico, Primitivismo e história, capítulo da obra A

Rebelião das Massas, o autor estabelece uma dicotomia entre mundo-natureza e mundo-

civilizado. No primeiro, o homem pode viver como bem quiser, enquanto, no segundo, não se pode viver independente do artesão, ou seja, o mundo-natureza é teórico e cabe ao naturalismo101; o mundo-civilizado tem um comando, uma norma e uma cultura. O disparate do homem-massa é, para Ortega y Gasset, viver em um espaço civilizado e

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Ortega y Gasset nos oferece a possibilidade de pensar culturas que não participam da civilização. Entretanto, essa realidade não é a européia. E por isso, a Espanha não pode viver o seu estado de natureza.

83 pensar que se trata de um ambiente natural. Nesse sentido, afirma o pensador espanhol: “A civilização parece-lhe selva” 102.

De acordo com essa discussão, Ortega y Gasset reafirma que se faz necessário um comando especial e qualificado para dirigir a sociedade, pois o que se observa no espaço público espanhol é precisamente o império do homem-massa. E o detalhe teórico é, justamente, a contradição que se faz sentir na sociedade moderna: de um lado, o império do homem-massa e, do outro, o avanço da civilização. O autor reconhece o paradoxo e declara que sobrevirão, no período curto de tempo, o caos e a barbárie, como afirma neste trecho: “Quanto mais a civilização avança, mais se torna complexa e difícil. Os problemas que apresenta hoje são superintrincados. Cada vez é menor o número de pessoas cuja mente está à altura desses problemas” 103.

O fundamental, nessa discussão, é perceber a disparidade entre o tempo civilizatório e o homem-massa. Em nosso entender, a partir da assertiva orteguiana, falta uma noção cristalizada de princípio entre os indivíduos. Uma espécie de norma e instância superior capazes de interligar os indivíduos num processo de civilidade. Mas para que isso ocorra é premente retomar o entendimento do que o filósofo denomina de história. Contudo, apresentamos anteriormente a noção de história, agora observaremos, na perspectiva do autor, o fato histórico que determina o primitivismo. Nesse sentido, afirma Ortega y Gasset: “Na Grécia e em Roma não foi o homem que fracassou, mas seus princípios” 104.

Isso nos encaminha, enfim, para compreender a dualidade em Ortega y Gasset em relação à noção de fracasso que ocorre na linha da história. De um lado, na antiguidade clássica, fracassam os princípios, ou seja, povoam os espaços públicos e não existem mecanismos jurídicos para garantir a sobrevivência integral da sociedade. Do outro lado, ao contrário do passado, o homem na sociedade moderna fracassa. Quer dizer, não consegue acompanhar o progresso da civilização e daí advém o perigo e a barbárie. Para elucidar a discussão, vale recordar a metáfora do camponês que, com os dedos calejados e desajeitados, tenta pegar uma agulha sobre a mesa. Dessa forma,

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ORTEGA Y GASSET, A Rebelião das Massas. 1987, p. 122.

103

Ibdem, p. 123.

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84 adverte o autor: “O saber histórico é uma técnica de primeira ordem para conservar e continuar uma civilização provecta” 105.

Assim, o autor reivindica um novo sentido de história. Segundo ele, faz-se necessário despertar o interesse pela história e sua influência na construção do cotidiano. O problema do século XIX, na ótica de Ortega y Gasset, é o alto grau de amnésia que sofre o povo espanhol, o que gera um prejuízo intelectual desumano para sociedade. Veja o exemplo que recorre o nosso autor. Segundo ele: “As pessoas mais ‘cultas’ de hoje são de uma ignorância histórica incrível” 106. Subtende-se que os cultos administram a sociedade européia, mas não dispõem de um conhecimento prévio de história, por isso, reproduzem os mesmos erros do passado. A história deve ser o nosso guia, atesta o autor, e nosso ponto para acompanhar o desenvolvimento da civilização.

Enfim, Ortega y Gasset reestrutura o seu percurso intelectual e denuncia, além da presença ostensiva das massas no cenário político, a falsa constituição de intelectuais. Dessa maneira, observamos o percurso orteguiano para desmistificar o que considera progresso e civilização. A partir desse pensamento, assevera o filósofo espanhol: “O que é inconcebível e anacrônico é que um comunista de 1917 se lance numa revolução que é idêntica em sua forma a todas que já aconteceram antes e na qual não há menor correção dos defeitos e erros das antigas”. 107 A esse respeito, a história, somente ela, pode, para Ortega y Gasset, auxiliar o indivíduo a pensar o presente a partir do passado. Desse modo, o homem pode acompanhar o caminho da civilização e participar, de forma civilizada, da sociedade como sujeito livre e emancipado.

Mas para que ocorra a emancipação do sujeito é preciso evitar o chamado lugar- comum, ou seja, o lugar de repetição na história. Dessa forma, é possível, na perspectiva do autor, criar novas realidades políticas e sociais. Todavia, os movimentos populares e políticos que se sucederam na história não dispõem de elementos do passado para corrigir o presente. Nesse sentido, assegura o pensador espanhol: “Com o passado não se luta corpo a corpo. O futuro vence-o porque o engole. Se deixar qualquer coisa dele de fora estará perdido”108. A assertiva é clarividente, ou seja, o futuro é, de fato,

105 Ibdem, p. 124. 106 Ibdem, p. 124. 107 Ibdem, p. 125. 108 Ibdem, p. 126.

85 superior ao passado, mas este é, para Ortega y Gasset, a ponte que conduz o homem do presente ao futuro promissor de uma Espanha gloriosa.

Ainda, em relação à história, é preciso que o passado esteja presente, não no presente como a uma repetição de fatos; sua presença é pedagógica, ou seja, não podemos jogá-lo fora, pois senão ele volta. Precisamos dele para, segundo Ortega y Gasset, nos orientar no cotidiano e possibilitar passagens seguras e conscientes para o futuro. Assim, o filósofo conclui o capítulo com a seguinte assertiva: “Necessitamos da história integral para ver se conseguimos escapar dela, não reincidir nela” 109. O novo homem, no afã de sua efemeridade, não compreende a dimensão da história e sua conjuntura de fatos. Por isso, o novo Adão incorre no caminho do mundo fugaz e volátil.

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