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A Ética da Sobrevivência A Relativização dos Valores

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1. A Guerra e o Processo de Descaracterização de Uma Cultura

1.2. A Ética da Sobrevivência A Relativização dos Valores

José M. Imbamba comenta em seu livro que a crise cultural angolana pode estar perdendo o caráter de “transitoriedade” imposto pela guerra, e admite a possibilidade de mudança nos valores e costumes. Segundo ele, uma “crise cultural” como é o caso de Angola hoje, pode levar à extinção de uma sociedade, mas pode, também, “ser ocasião da sua

142 HENDERSON, Lawrence. A Igreja em Angola, p. 287.

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transformação profunda, o início duma nova cultura e de uma nova era”.144 As culturas não são estáticas, e ele enumera algumas razões que estão na base das mudanças culturais, como os desastres naturais, ideológicos, religiosos e biológicos. Mas, tanto ele como outros intelectuais angolanos têm denunciado a falta de senso crítico com que estão sendo assimilados diferentes padrões de comportamento e valores, resignando-se ao novo sem questionar o quanto compromete sua identidade como cidadão angolano. Ele comenta as mudanças inevitáveis, contudo, alerta, para os perigos da importação aleatória, da clonagem cultural que, sem uma devida contextualização, pode virar uma cultura de remendos, superficial e ilusória. Afirma que os males devem ser eliminados a fim de que a nação angolana possa resgatar os “fatores vitais internos”, que foram praticamente banidos “pelas construções artificiais e desumanas importadas ao longo dos séculos e que condenaram o homem angolano ao passivismo, à resignação fatalista e ao estoicismo crasso”.145

A guerra com a constante pressão da morte iminente, foi um dos fatores que mais contribuiu para mudanças nos comportamentos sociais e relativização de valores, que em outras realidades, que não a africana, são considerados absolutos. Ela também impediu a formação de guardiões dos valores culturais. Foi uma das responsáveis por facilitar as “infiltrações” de alguns novos hábitos no cotidiano, que conduziram a uma descaracterização da cultura Angolana. Nos anos de guerra, a luta pela sobrevivência prevalecia sobre os padrões éticos até então reconhecidos como corretos.

Prática como a candonga, já comentada no início deste capítulo, está entre as “invenções” da população que se encaixa na “ética da sobrevivência”. Como o governo não conseguia solucionar a questão de abastecimento para toda a população por conta da situação de guerra, somada a sua política econômica, o povo a cada dia criava novas maneiras para sobreviver. A candonga por sua vez fomentava na vida diária outras práticas criadas e

144 Ibid., p.81-82. 145 Ibid., p. 109

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utilizadas por parte considerável da população: era a Yula146, que aos poucos foi se tornando ato comum no cotidiano. Albuquerque refere em seu texto à venda de produtos que tinham vindo para ajuda humanitária: “... situação nada clara: a venda, em alguns mercados paralelos, de produtos de consumo, como leite... farinha e açúcar em embalagens de ajuda humanitária. Visitei um desses mercados no Huambo...”147. O povo já conjugava o verbo Yular para se

referir às suas aquisições para conseguir um negócio ou candonga. Tanto a Yula como o esquema, representavam fontes de receita para a candonga conforme nos relata Schubert:

A maior parte da candonga consistia do comércio puro e simples, da venda e revenda de mercadorias, adquiridas através de esquemas, eventualmente ainda no limite da legalidade, muitas vezes procedentes de um “desvio”. Efetuavam-se desvios em grande escala nos portos de Luanda e de Lobito, nos aeroportos, e nos depósitos das organizações internacionais, do governo ou do exército... Para a maioria das angolanas e dos angolanos a vida era uma luta diária para não sucumbir nas garras de um cerco cada vez mais apertado.148

Solival Menezes também comenta que essa “cultura do desvio” foi deflagrando uma situação de corrupção generalizada. Não era somente as verbas e os bens públicos em geral que eram furtados, “até mesmo os produtos vindos do exterior como ajuda humanitária eram desviados para a ‘economia subterrânea’ (o ‘paralelo’), num vigoroso processo de corrupção, agravando ainda mais esse cenário”.149

Como indicado anteriormente, esta nova cultura do comércio remonta à questão da freqüência com que as lojas eram abastecidas, e que está vinculada ao planejamento e política econômica nacional, coadjuvada pela guerra, que por suas características devastadoras foi o fator desencadeante desta situação de calamidade. Principalmente na cidade do Huambo, região central do país, onde foi o epicentro do conflito armado, o abastecimento das lojas era bastante prejudicado porque as estradas estavam bloqueadas em função dos combates pela

146 Yula era o ato de sabotar ou desviar bens das organizações ou de instituições do próprio governo com a

finalidade de realizar algum negócio financeiro para benefício particular do desviador.

147 ALBUQUERQUE, Carlos. Angola: A Cultura do Medo, p. 38. 148 SCHUBERT, Benedict. A Guerra e as Igrejas, p. 184.

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região. As colunas150 que conseguiam furar o cerco da Unita, não davam conta de suprir as

lojas. Alguns empresários conseguiam transportar por via aérea os produtos mais selecionados, mas os custos eram exorbitantes.

Como o fornecimento era irregular, os produtos de necessidades básicas faltavam constantemente nas lojas. Estes estabelecimentos tinham dias específicos para atender a população, e as filas eram grandes para tentar comprar os poucos produtos que chegavam. Nestas condições, o critério para aquisições já não era a necessidade da pessoa e/ou da família, mas o “equipar-se” para trocas ou vendas pelos produtos desejados. Este foi um dos aspectos da sobrevivência em que surgiram muitas polêmicas e uma questão ética delicada, principalmente para a Igreja evangélica, pois nem sempre as pessoas compravam aquilo que necessitavam, mas sim o produto que tinha nas lojas ao preço oficial estabelecido pelo governo, para depois fazer a candonga no mercado paralelo.

A maioria das igrejas evangélicas em Angola, por exemplo, tem um posicionamento firme em relação às bebidas alcoólicas e os cigarros, que chegavam com o transporte aéreo, o sistema que tinha menos riscos, e no mercado paralelo eles constituíam uma moeda forte na candonga. Passou a ser um procedimento comum comprar este gênero de produtos nas lojas ao preço oficial, para depois trocar ou comprar nas praças os gêneros de primeira necessidade, como arroz, feijão, trigo, entre outros, como nos descreve Schubert:

Via de regra, as igrejas protestantes seguiam o mandamento que obrigava os seus membros a abster-se do fumo e do álcool. Cigarros, vinho e cerveja, porém, faziam parte da distribuição oficial de bens.... Com muita controvérsia e veemência discutiu-se a pergunta, se deveria ser permitido aos crentes protestantes comprar tais produtos ao preço oficial, para depois vendê-lo na candonga e, com o rendimento, comprar arroz ou açúcar...151.

150 Colunas – Eram grupos de caminhões que se arriscavam pelo interior do país para levar bens industriais e

alimentares às populações “ilhadas” em zonas de combate. Eram escoltados por carros militares bem armados, mas muitas vezes não conseguiam chegar ao destino, pois caiam em emboscadas preparadas pelos guerrilheiros. Nestas ocasiões, carros eram queimados, pessoas mortas, bens roubados. Dependendo do ponto de ataque, os primeiros ou os últimos do comboio retornavam ao local de origem ou avançavam para o destino.

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Esta ética da sobrevivência tinha seus desdobramentos em outros segmentos. Na escola, mesmo não tendo bom desempenho, o aluno passava mediante um “presentinho” para o professor, que era muito mal remunerado ou tinha os seus salários atrasados durante meses. O “presentinho” podia ser dinheiro ou um cartão de apresentação para que se pudesse fazer um “esquema”. Os professores e educadores, acrescenta-nos Imbamba, “se converteram em sedutores, corruptores e vendedores de notas e certificados, condenando os alunos à preguiça mental e à ignorância perene”.152

Entretanto, um dos maiores estragos que a guerra provocou na cultura angolana, foi a situação de fragilidade em que colocou a família, anteriormente estável e com lindas tradições. Com a morte de milhares de homens, deixando viúvas e órfãos por todo o país, as mulheres passaram a exercer o duplo papel de manter o lar e cuidar dos filhos e da casa. A mulher angolana transformou-se em um símbolo de força e coragem, como admite Schubert: “... Elas tinham um papel muito importante. Eram elas que, através do comércio, sustentavam as famílias, montando esquemas com incrível coragem...”.153

Em se falando de direitos humanos em Angola, foram as mulheres e crianças que mais tiveram seus direitos violados nestes anos de guerra. Privadas de alimento, serviços de saúde, escola e da condição básica de ser família, ter casa ou qualquer abrigo, expulsos de suas terras, vendo seus bens saqueados ou, muitas vezes, suas casas serem destruídas, as crianças são as maiores vítimas. O relatório da Unicef, o fundo das Nações Unidas para a infância, segundo reportagem do jornal Folha de São Paulo154, revelou que: “Angola, é o pior lugar do

mundo para uma criança nascer e viver”. A reportagem diz que o país está em primeiro lugar

152 IMBAMBA, José Manuel. Uma Nova Cultura para Homens e Mulheres Novos, p. 144. 153 SCHUBERT, Benedict. A Guerra e as Igrejas, 182.

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no ranking de risco de vida para as crianças. Uma outra reportagem da mesma Folha de São Paulo, do dia 21 de dezembro de 1997 traz um artigo sobre crianças que perdem a infância e vão à guerra, declarando que todos os dias 250 mil crianças ao redor do mundo, em vez de se levantarem para ir à escola, pegam em armas e vão à guerra. Angola aparece em segundo lugar na lista de países citados.155 (Figura: 09)

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Figura 09

DIAS, Otávio. Crianças Perdem Infância e vão à Guerra, Folha de São Paulo, 21 de Dezembro de 1997, Caderno 1, página 22.

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As meninas não escaparam também dos flagelos da guerra. Até o momento no país persiste ainda o fenômeno das “quatorzinhas”.156 Durante o conflito armado, as missões

especiais de civis e militares vindos de outros locais, somados aos militares nacionais, formavam um grupo de homens privilegiados que tinham fornecimentos especiais concedidos às Forças Armadas. Eles procuravam as meninas que se “vendiam” em troca de algum bem para ajudar a família. Posteriormente, não só militares, mas muitos chefes utilizavam as crianças para alcançar seus objetivos e fantasias sexuais.157

E nesta crise generalizada incluindo o colapso da economia e a falta de perspectivas, o forte sentimento de “quem se importa?” crescia cada vez mais. Os “chefes”158, com seus

contatos e esquemas, conseguiam enviar seus filhos para estudar fora, principalmente Portugal, África do Sul e Brasil. Aos remanescentes, só lhes restava lutar para permanecer vivos e inovar cada vez mais suas “invenções” para sobreviver.

Fechando a discussão sobre costumes e valores, Imbamba deixa em aberto a reflexão dicotômica entre o absoluto e o relativo. Ele traz o questionamento sobre a universalidade e relatividade dos valores. Existem valores absolutos válidos para todas as culturas? Eles variam de cultura para cultura? Observando a variedade de culturas verificamos que são os valores que diferenciam uma da outra, o que nos permite afirmar que o relativismo cultural é um fato, como nos descreve o mesmo autor: “Assim que, apesar de o relativismo cultural ser um fato inegável, sustentamos, contudo a existência duma base comum de valores supremos partilhados e promovidos por todas as culturas”.159

156 Quatorzinha – Nome dado à criança utilizada para satisfazer os desejos sexuais dos homens que as

recompensavam com alimentos ou presentes pessoais.

157 IMBAMBA, José Manuel. Uma Nova Cultura para Mulheres e Homens Novos, p. 151.

158 Chefes – Era a designação que o povo dava para a pessoa que pertencia a uma elite que tinha acesso a

facilidades diante do governo ou empresas e que lhes permitiam ter certos privilégios.

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Independentemente do rumo que a cultura venha a seguir, o momento de transição, depois de décadas de guerra e ocupações, aponta para uma crise cultural. Se os costumes e os valores são dois dos pilares que podem contribuir para o mapeamento de uma cultura, com certeza no momento faríamos uma leitura e interpretação incorreta sobre a nação. Seria injusto avaliar Angola sem conhecer profundamente o seu contexto histórico, considerando que “os costumes manifestam o coração dum povo, pois ajudam-nos a ver e avaliar a sociedade e os membros que a integram...”.160 A guerra selvagem que se travou no país,

estimulou bastante um dos instintos primários do homem: a preservação que vem acompanhada do egoísmo. E nesta ética da sobrevivência, os valores foram diluídos, a maneira de conceber Deus, o mundo, e até mesmo a vida assumiu outros padrões. O critério para as escolhas não era mais o certo e o errado convencional, mas a filosofia adotada era a “dos fins que justificavam os meios”, o que nos leva a estabelecer o diálogo com Imbamba quando escreve que “são os valores, portanto, que orientam as principais escolhas de comportamento em nível pessoal ou social”.161 No entanto, em meio à situação de

“desorientação generalizada” dos diversos segmentos da sociedade, inclusive das autoridades constituídas, o que presenciamos em Angola foi “a perversão dos costumes, pois as pessoas, mais do que nunca, tornam-se, dia após dia, escravas dos seus próprios instintos: o egoísmo, o prazer, o ódio, o poder e a violência”.162 Concordo com Imbamba quando diz que a situação

de sobrevivência na guerra levou a população a trair “a cultura angolana genuína, propensa ao respeito e à defesa da vida, ao altruísmo, à hospitalidade, ao diálogo, ao convívio, à paz, à amizade, ...”.163 Valores que já citados anteriormente e que fazem de Angola uma referência e

modelo de vida comunitária e solidária presente em muitas áreas rurais do país.

Podemos reconhecer que, neste pós-guerra imediato, um projeto prioritário é promover um cuidado integral para o ser humano, trabalhando para a sua recuperação e reabilitação,

160 IMBAMBA, José M. Uma Nova Cultura para Mulheres e Homens Novos, p. 43 161 Ibid., p. 45.

162 Ibid., p. 131 163 Ibid., p. 131.

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pois o equilíbrio e o desenvolvimento de uma sociedade dependem muito da saúde dos seus cidadãos. As pessoas estão em busca de um referencial de esperança.

A cultura do “ter” precisa ser substituída urgente pela cultura do “ser”, porque o mundo do ter é exclusivo e o do ser é inclusivo.164

E neste momento decisivo para a história da nação angolana, o próprio governo tem feito apelos para que as organizações e igrejas se associem a ele nesta empreitada de reconstrução nacional e assistência integral a população que foi tão martirizada nestes anos de guerra. Um grande desafio é lançado para a comunidade cristã em Angola, pois ela tem dado provas de sua influência para inserção do ser humano na sociedade. Seu papel é primordial na tarefa de restituir neste ser humano sua dignidade e estima, trabalhando para sua recuperação e desenvolvimento integral. A igreja pode participar do processo de resgatar os valores esquecidos, os princípios de solidariedade e trazer propostas decisivas para a formação de um homem mais verdadeiro.

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