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A Ação do Estado e a Presença dos Trabalhadores na Seca de 1987

CAPÍTULO III – O RELACIONAMENTO ENTRE A MULTIDÃO E OS

3.2. A Ação do Estado e a Presença dos Trabalhadores na Seca de 1987

No ano de 1987, uma “seca parcial”330 afetou o Ceará e as ações da multidão mais uma vez se espalharam pelo estado. Foi nesse momento, de emergência do movimento de luta pela terra a partir do conflito em Touro, ampliando os espaços de contestação e de oposição ao governo de Joaquim Clementino, que as posições da Igreja progressista em relação ao tema foram melhor acolhidas na paróquia. No mesmo ano, foram relatadas as primeiras ameaças de saque conhecidas entre todas as fontes coletadas por esta pesquisa. Mas apesar disso e das conseqüências da seca para a economia local, nenhum saque ocorreu em Itapiúna.

Em 06 de junho, Aprígio Silva publicou no jornal O Povo uma nota divulgando que “as autoridades e os comerciantes” da cidade tinham “possíveis saques prometidos pelos trabalhadores rurais que estão vindo à sede procurar emprego e comida”331. Nesse sentido, a novidade anunciada pela fonte é que nela não se fala em saque como um “mal exemplo”

328 RUDÉ, George. A Multidão e a História. Estudo dos Movimentos Populares na França e na Inglaterra,

1730-1848. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 211.

329 CNBB. Nordeste: desafio à missão da Igreja no Brasil... Op. Cit. parágrafo 60.

330 Foi considerada uma “seca verde”, ou seja, as chuvas foram suficientes para fazer crescer as folhas da caatinga, mas pela irregularidade prejudicaram a agricultura.

externo que poderia ser seguido pelos trabalhadores rurais de Itapiúna, mas sim como possibilidade cogitada por eles próprios caso suas reivindicações não fossem atendidas.

Contudo, poderíamos indagar se de fato estas ameaças eram uma novidade no município ou se estaríamos diante de observadores que até então haviam ocultado, conscientemente ou não, os avisos de sedição. As duas possibilidades são factíveis e, apesar das dificuldades em respondê-las, sou levado a crer que em meio à escassez generalizada e às ações vacilantes do Estado, os pobres promoveram sim ameaças de motim antes de 1987, porém de formas menos claras, mais sutis e veladas. Dessa forma, estaríamos diante de uma atitude nova, demonstrando que mudanças estavam em curso na conduta política dos trabalhadores, favorecidas pela presença dos movimentos sociais (CEBs, pastorais, sindicato). Estes passaram a influenciar, estimular e até mesmo mobilizar a formação de movimentos típicos de multidão, e mesmo possuindo cada qual uma lógica toda própria de formação e funcionamento, realizaram, por assim dizer, uma troca de experiências e expectativas, através da presença de indivíduos que transitaram entre ambos os movimentos.

O alerta de Aprígio Silva fazia sentido quando observamos o clima tenso vivido no interior. De acordo com o jornal O Povo, o ano de 1987 no Ceará havia sido marcado pelas multidões de sertanejos que invadiram e saquearam depósitos de merenda escolar, grupos escolares, lojas comerciais, “postos da Cobal, Cibrazem e Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição(INAM), em quase todos os municípios”332. A Igreja Católica, assim como nos posicionamentos anteriores, endossava estes movimentos, mas continuava a vê-los como atos temporários de desespero, que eram justos pela presença de dois atenuantes: a fome, “obrigando” os trabalhadores a (re)agirem, e os artigos saqueados, quase todos alimentos de propriedade pública.

É assim que podemos interpretar a declaração dos bispos no jornal Tribuna do Ceará em 23 de julho, dizendo: “os trabalhadores rurais são cidadãos honestos e a fome obrigou-os ‘a virem buscar alimento nos depósitos do Governo, que os comprou com dinheiro do povo’”333. Havia então, uma tentativa clara de distanciar o saque do roubo e da pilhagem, tornado-o uma questão de justiça e direito elementar.

Pressionado pelas invasões, o governo Tasso Jereissati, ainda em seus primeiros meses, passou a estudar a aplicação de um programa de emergência que tentava aplicar metodologias condizentes com discurso eleitoral vitorioso de combate ao clientelismo político

332 Jornal O Povo, 24 de julho de 1987. “Invasões e Saques Durante Todo o Ano”.

e de modernização do estado334. A proposta oficial, já ensaiada em 1982-83, propunha um plano emergencial com apoio ao “pequeno produtor, proporcionando trabalho permanente com a recuperação de escolas, construção de casas, de barragens e pontes em todo o estado, além de promover a irrigação e pagar salários ao trabalhador rural”335. A base do discurso era evitar medidas antes associadas às práticas de favorecimento dos grandes proprietários e grupos dominantes locais. Mas como o tempo demonstrou a face excludente destas políticas não foi afetada substancialmente.

Nesse primeiro momento, de elaboração da Emergência, os bispos cearenses e a Fetraece manifestaram “seu apoio à nova filosofia do programa”336, mas desde que fossem reforçadas as reivindicações dos trabalhadores: permanência da população perto de suas moradias, garantia de água e alimento, oferta de vagas suficientes, pagamento em dia e de salário mínimo, aplicação da força de trabalho em obras comunitárias e formação de comissões integradas com ampla representação (Igreja, trabalhadores e poder público local). As CEBs, em seu encontro regional, também reforçaram a defesa dos mesmos princípios, acrescentando a necessidade da distribuição da terra como solução definitiva para os efeitos sociais da seca. Criticando o Estado, escreviam: “esquecem nossos governantes que a causa principal da fome é a maneira injusta de governar a nossa sociedade. Não podemos ficar presos só na emergência. É preciso não perder de vista[...] que a nossa luta principal é pela Reforma Agrária”337.

No segundo trimestre de 1987 o temor da falta de chuvas foi concretizado e a quebra da safra foi inevitável. Ao mesmo tempo, cidades eram invadidas e saqueadas por agricultores em protesto338. Dessa forma, o clima tenso no interior do estado forçou o Governo a acelerar a implantação do programa e iniciá-lo em 02 de junho em 10 cidades.

Mesmo com o início das ações, a inclusão de Itapiúna não foi imediata, porque o Maciço de Baturité estava excluído das “áreas de emergência decretada”339. Para contornar a presença ameaçadora dos “flagelados” na cidade de Itapiúna e suas “possíveis ameaças” de saque, como citou Aprígio Silva, “o prefeito Joaquim Clementino reuniu-se com o secretário

334 Cf: PARENTE, Josênio e ARRUDA, José Maria (org.). A Era Jereissati: modernidade e mito. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002.

335 Jornal Diário do Nordeste, 15 de maio de 1987. “Vinte Municípios Estão em Estado de Emergência”.

336 Jornal O Povo, 21 de junho de 1987. “Bispos Apóiam Emergência”; Jornal Tribuna do Ceará, 23 de junho de 1987. “Bispos Apóiam Trabalhadores Vitimas da Seca”.

337 “Carta ao Povo Cearense”: 7º Encontro Regional das CEBs da Regional Nordeste I da CNBB. Itapipoca, 13 de julho de 1987. Pasta “Seca-Reivindicações-Denúncias”. Arquivos da CPT-CE.

338 Quixeramobim, por exemplo, foi sistematicamente ocupada e várias vezes saqueada durante o ano por multidões apoiadas pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais.

estadual de ação social e lhe entregou um “documento contendo o resultado da pesquisa com cerca de 2 mil pessoas”, na qual se constatava “que 94 por cento da safra” estava “perdida e que a população local” estava “ociosa e faminta”340.

No mês seguinte, em 10 de julho, Itapiúna e outros municípios da região já haviam sido incluídos e iniciavam o alistamento de trabalhadores. Francimar Barros, escrevendo nesta data ao Diário do Nordeste (de quem era correspondente em Itapiúna), relatou que prosseguiam “no escritório montado nesta cidade para o atendimento aos flagelados... as inscrições de trabalhadores para aproveitamento no plano de emergência”. O alistamento cadastrou 4.112 pessoas, todas desempregadas e “sem condições de obtenção de sustento”. Para ele, “a situação não seria preocupante se o Governo garantisse emprego para todos” porque somente 700 vagas foram destinadas ao município. A incerteza levava diariamente “dezenas de flagelados” a acamparem “defronte ao escritório onde se processa o atendimento. Eles vêm em busca de emprego para dele tirar o seu alimento e da família”, mas “voltam para casa desalentados porque inexiste o trabalho e nem mesmo esperança, pois é destonante(sic.) o número de vagas oferecidas para o número de inscritos”.

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Sr. Cordeiro, declarava na mesma matéria que “todas as pessoas inscritas são necessitadas, sendo a grande maioria associada ao sindicato”. Muitos estavam “passando fome com suas famílias porque não têm onde trabalhar”. Por isso, “mendigar, implorar pela caridade pública, na forma de esmolas, vem sendo uma atividade utilizada pelos agricultores e seus familiares”: eles “se dizem obrigados” a procederem assim “para não morrerem de fome”341. Destes e de outros conflitos envolvendo a emergência nasceram a maior parte das ameaças de invasão e saque.

Em Itapiúna, a Emergência perdurou até 31 de janeiro de 1988, quando o governo estadual anunciou a primeira etapa de desativação, incluindo Itapiúna e mais 65 municípios, “liberando” os trabalhadores para o plantio, já que havia a previsão de um “inverno” regular. Ainda assim, seriam pagas três quinzenas com reduções progressivas de 25, 50 e 75% do salário normal. Como era de se esperar, a desativação provocou protestos e novas ameaças de saque, ampliadas pelo atraso de mais de duas quinzenas. Na cidade, a presença de camponeses à procura de soluções era cotidiana e rotineira342. A Ematerce, a câmara municipal e a

340 Jornal O Povo, 06 de junho de 1986. “Itapiúna Pede Inclusão no Programa do Governo”.

341 Jornal Diário do Nordeste, 10 de julho de 1987. “Itapiúna Alista 4.112 Pessoas”. Somente em 17 de setembro deste ano o Governo Estadual reconheceu que a situação de calamidade afetava todo o estado, e então, incluiu os últimos 30 municípios ainda ausentes na “Emergência”.

prefeitura eram os lugares mais visitados. Foi nesse contexto, que eclodiu um saque no início de fevereiro.