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CAPÍTULO III – O RELACIONAMENTO ENTRE A MULTIDÃO E OS

3.4. Uma Experiência Consolidada

Em 1988, após a onde de saques pelo interior entre os meses de janeiro e fevereiro, o governo estadual recuou e, apesar da concretização do “inverno”, lançou o PAPCS (Programa de Obras Permanentes Contra a Seca), incluindo Itapiúna na lista de municípios beneficiados. Nomenclatura nova, porém os objetivos divulgados não diferiam dos programas anteriores: utilizar o trabalho camponês para realizar obras sociais e comunitárias.

No início de 1989, o debate na imprensa de Fortaleza e o clima de tensão no interior perduraram. Em 22 de fevereiro, Ilário Marques, eleito no ano anterior pelo PT, denunciava em pronunciamento na Assembléia Legislativa o “desprezo com as vitimas de pelo menos três anos de invernos que foram depauperadas pelas perdas constantes da

400 Por solicitação expressa da(o) militante que deu este depoimento, seu nome será suprimido. O Programa Arrancada da Produção, do Governo Estadual, foi anunciado pelo Jornal O Povo em outubro de 1987. Foram estocadas 2.000 toneladas de sementes pela CIBRAZEM, EMATERCE e CODAGRO. Em 19 de janeiro de 1988, a CODAGRO começou a estocagem para comercializar a preço subsidiado para pequenos produtores as sementes em seus 140 postos de revenda.

produção e por uma política que sequer dá garantia de preços”. Seu pronunciamento era uma resposta às acusações do Deputado Everardo Silveira responsabilizando o PT pelos saques e invasões no interior. Para Ilário, a fome e o Governo Estadual eram os culpados “pela situação de iminente convulsão social”. Ressaltava também que até mesmo “os planos emergenciais que ‘no Ceará têm alimentado os inescrupulosos que fazem da seca uma indústria’”401, e dos quais o PT têm sido contrário, o Governo Tasso vinha recusando implantar. Já o Governo respondia à situação de crise declarando: “apesar de preocupados, estamos otimistas, porque confiamos na Funceme[...] Estamos esperando a caracterização da estiagem para lançar o programa”402. Enfim, basicamente o Governo limitava-se a esperar pelo agravamento da crise para, então, aplicar medidas paliativas e conter os saques.

Apesar das incertezas e vacilações, Itapiúna teve chuvas abundantes e em abril de 1989 já sofria com enchentes nas áreas ribeirinhas do Rio Choró. Porém, o ano seguinte presenciou a ocorrência de uma seca generalizada em todo o estado. Dessa vez, foram deflagrados dois saques em Itapiúna.

Nos três meses iniciais de 1990, a tensão social era nítida pelo interior. Explodiam saques em várias cidades e alguns deles chegaram a ter presente mais 5 mil pessoas403. Em 19 de março, “a passagem do equinócio, logo após o dia de São José” – última esperança de chuvas para os sertanejos – “desencadeou uma onda de saques de agricultores em busca de alimentos e trabalho, no interior”. Saques e invasões “foram registrados nos últimos dias em Jaguaretama, Trairi, Barreiras, Redenção, Itapiúna, Quixadá, Madalena e Boa Viagem”, dizia o jornal O Povo em 22 de março404. A mesma matéria, afirma que os saques em Redenção, Itapiúna e Jaguaretama haviam ocorrido na semana anterior. Em 24 de março, o Diário do Nordeste divulgava que “mais duas cidades integrantes da região do Maciço de Baturité” – Redenção e Baturité – haviam sido “invadidas por flagelados”405. Contabilizavam, assim, quatro centros urbanos que sofreram saques a armazéns de alimentos na região do Maciço.

A reação do governo veio lentamente. Em 04 de abril, o Diário do Nordeste noticiava que 13 mil agricultores do Sertão Central estavam cadastros no Plano de Emergência, em apenas 13 municípios, todos desta região. No dia anterior, a APRECE (Associação dos Prefeitos do Ceará) promovia em Fortaleza um encontro para debater os

401 Jornal O Povo, 22 de fevereiro de 1989. “Ilário: ‘há demonstração de desprezo’”. 402 Jornal O Povo, 17 de março de 1989. “Sertão em estado de alerta”.

403 Cf: Jornal O Povo, 22 de março de 1990. “Cinco mil saqueiam em Aracoiaba”.

404 Jornal O Povo, 22 de março de 1990. “Flagelados levam merenda escola de Quixeramobim”.

405 Jornal Diário do Nordeste. 24 de março de 1990. “Redenção e Baturité também são alvo de saques e de invasões”.

problemas da seca. O tom foi de reclamações e críticas severas ao “descaso” do governo estadual com a “calamidade” dos municípios406. Pressionado, o Governo Estadual incluiu mais 13 municípios, entre eles Itapiúna, no “Programa de Verão”.

Mas em 17 abril de 1990 ocorriam simultaneamente saques ao comércio de Quixadá e a depósitos de alimentos públicos em Itapiúna. De acordo com a notícia d’O Povo “a cidade de Itapiúna foi invadida ontem mais uma vez por um número superior a mil homens, que saquearam os depósitos da merenda escolar e da Legião Brasileira de Assistência (LBA), além de uma fábrica de redes comunitárias no centro da cidade”. Os saqueadores, além da busca por comida, protestavam contra as condições impostas pelo governo do Estado ao programa de Emergência. Eles exigiam a aplicação de algumas medidas usadas recentemente pela prefeitura em seu programa de antecipação da Emergência, enquanto o estado não o havia assumido: reclamavam aumento de 100%, exigiam pagamento semanal e também ampliação de vagas. Durante todo o dia, os manifestantes permaneceram na cidade, porém “não mais investiram contra o comércio”407.

Na Câmara Municipal, o saque rendeu calorosos debates na sessão do dia 20 de abril, também motivados pela divulgação de uma “carta” pela Igreja acusando o legislativo e o executivo municipal de inércia frente à situação no campo. Os vereadores Sales Vidal e Neto Martins se reportaram ao evento afirmando terem “falado com a secretária de administração e finanças municipais no sentido de atender as reivindicações dos agricultores para evitar o saque e ela não atendeu”408.

Em 18 de julho os conflitos em torno da Emergência prosseguiram. Na ocasião entidades de trabalhadores do Maciço de Baturité, entre elas a Frente de Libertação da Terra, ocuparam o pátio da SEARA reivindicando o pagamento de diárias correspondentes ao salário mínimo vigente, aumento das vagas de trabalho na região e, ainda, a desapropriação da Fazenda Massapê.

Neste ano, assim como na década anterior, a Igreja cearense participou ativamente das questões relacionadas à crise no campo e às mobilizações camponesas. Em abril de 1990,

406 As soluções apontadas não diferiam muito de modelos aplicados no passado: “implantação de obras permanentes, como recuperação de estadas, construção de açudes, mineração, pedreiras”. O prefeito de Itapiúna, Zé Nilton, era o presidente da Aprece. Jornal O Povo, 04 de abril de 1990. “Prefeitos acusam Seara de descaso com os municípios”.

407 Jornal O Povo. 17 de abril de 1990. “Houve saques também em Itapiúna”. Grifo meu.

408 Livro de Atas da Câmara de Vereadores de Itapiúna, período 01/01/1989 a 05/02/1993, sessão de 20 de abril de 1990, fls.20-verso a 52-frente. Diferentemente da alta popularidade alcançada na primeira administração, José Nilton amargou uma forte oposição, até mesmo dentro de um tradicional reduto governista, que é a Câmara de Vereadores, e foi acusado pela comunidade de ter atitudes inconseqüentes, autoritárias e elitistas, bem diferente da imagem de administrador simples, competente e atencioso que deixou quando renunciou em 1980.

“diante dos saques ocorridos no interior em conseqüência da estiagem”, Dom Aloísio Lorscheider (arcebispo de Fortaleza) solicitava ao Governo “o fim da repressão contra camponeses que procuram, nas cidades, serviço e alimentos”. Já Dom Fragoso (bispo de Crateús) fazia uma defesa contundente dos saques, afirmando que além de serem “um sinal de dignidade”, eram ações “justíssimas” enquanto “produto do desespero dos camponeses, praticados diante do não acolhimento do apelo que fizeram as autoridades visando conseguir trabalho”. Criticando a Emergência, D. Fragoso considerava que “a distribuição de sacolas com alimentos aos flagelados é como uma chupeta, e ofende a dignidade das pessoas409. Nesse sentido, declarava que o “papel da Igreja em Crateús tem sido de ‘ajudar a população a se organizar para reclamar os seus direitos’”.

D. Adélio Tomasin (bispo de Quixadá) também interveio no debate em defesa dos saqueadores, numa matéria do jornal O Povo do dia 06 de abril de 1990, afirmando “que se estivesse passando fome ia saquear da mesma forma como agem os camponeses famintos no interior”. De certa forma, ele concordava com um documento posterior da Igreja que se referia à legitimidade dos saques ao afirmar que “a fome e a sede tem suas exigências legítimas. Todos... tem direito à comida e à água”410. Contudo, mesmo associando o fator alimentar como causa fundamental do saque, ao declarar que “a fome é a pior conselheira”, D. Adélio salientava a forma como a exclusão dos camponeses estimulava as invasões: “quem vive como essa gente, se sente humilhado, mendigando um pedaço de pão. Não tem trabalho, nenhuma garantia. Como os agricultores não conseguem nada se sentem esmagados”411.

Mas diferentemente de D. Fragoso, que criticava integralmente às ações emergenciais do governo, D. Adélio reconhecia que “embora não se possa dizer que seja solução, é melhor que nada. Os pobres têm de comer a migalha do pão e agradecer. As autoridades sabem que é só para sobreviver”. Por outro lado ele advertia que “se as medidas continuarem como estão sendo tomadas, o Ceará será sempre a terra da fome, do saque. Teremos assim, nesse rincão do Brasil, uma bomba, um bolsão de miséria, de perturbação social”. Dessa forma, D. Adélio revelava sutilmente seu pensamento conservador: o saque é uma espécie de salvaguarda à vida, mas representa, por outro lado, um perigo de “perturbação social” que deve ser evitado.

Mesmo defendendo e legitimando os saques, em nenhum momento ele fez referência às entidades de trabalhadores ou à participação da Igreja nestas lutas. A aceitação

409 Jornal O Povo, 07 de abril de 1990. “Dom Aloísio Recomenda Diálogo”.

410 CNBB-NE I. Pronunciamento da Igreja Católica do Ceará. Fortaleza, 30/jul/1993.

das “invasões”, assentada na contingência provocada pela ameaça à sobrevivência, não revelava apoio às demais lutas camponesas. O silêncio que toca a participação de movimentos populares e da Igreja nestas ações revela também o esvaziamento e isolamento que D. Adélio foi pouco a pouco impondo às CEBs, às pastorais populares e à participação da Igreja nos movimentos sociais da Diocese412.