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A ação na justiça: um desfecho de tensões produzidas no cotidiano do trabalho

2 Capítulo I: Trabalhadores do Recôncavo: experiências, direitos e justiças

3.1 A ação na justiça: um desfecho de tensões produzidas no cotidiano do trabalho

“O aborrecimento de Zé povo não explode; é surdo, é secreto, vive latente como a fervura dentro de um vaso em ebulição, porém fechado”.217 Extraído de um periódico de grande circulação no Recôncavo Sul, na época estudada, essa afirmação apresenta uma leitura apenas superficial do comportamento político dos trabalhadores da região em meados do século XX. As ações dos trabalhadores na Justiça representaram, antes de tudo, uma manifestação das tensões e atritos vivenciados no cotidiano das relações de trabalho, notadamente relacionados às disputas por direitos e poderes que, não raras vezes, chegavam às vias de fato. Para além de interesses econômicos, exprimiam também sentimentos e crenças envolvendo questões de trabalho, honra, dignidade e honestidade. A própria lei, objeto de diferentes interpretações, constituía um espaço aberto ao conflito. As audiências trabalhistas quase sempre transcorriam sob um forte clima de tensão. Mesmo nas situações que resultaram em conciliação, esta geralmente foi precedida de conflitos, disputas jurídicas, trocas de acusações, ameaças, etc.

Às vias de fato teria chegado o conflito entre o operário Crispiniano Oliveira dos Santos e o gerente da Olaria Jacaré, que resultou na formulação de um dissídio trabalhista na Comarca de Nazaré, em 10 de outubro de 1944. Nos autos do processo, o reclamante alega que trabalhava

216 Autos da Reclamação Trabalhista de Maria de Jesus, contra José Augusto de Avillar, aberta na Comarca de Cachoeira, em 2/10/1943. APMC, pasta de Reclamações Trabalhistas (1941-1949).

para a referida empresa desde fevereiro de 1937 e que fora despedido sem justa causa e sem receber a indenização devida “nos termos da CLT”.218 O motivo da demissão teria sido um desentendimento de natureza monetária com o gerente da empresa. A origem da discórdia estaria num desconto, injustamente efetuado por este último, na quantia que lhe devia ser paga, relativa ao período de férias. Inconformado, o operário teria se dirigido ao escritório da empresa para questionar o desconto, sendo expulso, pelo gerente, aos gritos, empurrões e pontapés. Este último, irritado com a sua “ousadia”, teria recomendado ainda que não voltasse mais ao trabalho.219

A defesa da empresa consistiu na alegação de insubordinação, indisciplina e abandono do trabalho, por parte do reclamante. Este, “sem motivo plausível”, mas somente por ter sido descontado do seu salário “o que prometera” por amortização de um empréstimo, teria se insubordinado, chegando a travar luta física com o gerente. Este último acrescentou que não o despediu, apesar de ter sido autorizado a fazê-lo, por considerá-lo carente de recursos e devido à situação dificílima que a firma atravessava. Em sua versão, o operário teria abandonado “espontaneamente e ostensivamente o trabalho”.220

Geralmente, em tais circunstâncias, as alegações de indisciplina, insubordinação, negligência e abandono do emprego por parte do empregado, integravam a estratégia de defesa patronal. Lançando mão de tais argumentos, tentava-se descaracterizar a acusação de demissão injustificada, para assim provar abandono de emprego ou demissão por justa causa.

Acolhida pelo juiz, a ação foi recorrida pela firma reclamada, que pediu nulidade da sentença, alegando incompetência da comarca para julgar a referida questão. A justificativa do recurso afirmava que a olaria estava subordinada à direção da Companhia Mercantil, sediada na capital do Estado, fora, portanto, dos limites daquela jurisdição. Na verdade, tratava-se apenas de uma estratégia protelatória, visto que o foro a ser considerado, neste caso, “era o do local de trabalho” e não o da sede da empresa. Da conclusão do processo consta apenas a penhora de uma máquina destinada à fabricação de telhas, do tipo “francesa”, avaliada em cinco mil cruzeiros; um “bem imprestável”, segundo o advogado do reclamante.221

218 A CLT, em seus artigos 477 e 478, dispõe sobre rescisão do contrato de trabalho e, respectiva, indenização. 219 Autos da Reclamação Trabalhista de Crispiniano Oliveira dos Santos, contra a firma Drault e Cia, aberta na Comarca de Nazaré, em 12/10/1944. AFN, documento sem catalogação.

220 Idem. 221 Idem.

Os acontecimentos relatados nos autos da ação apontam para a convivência de práticas costumeiras - como o empréstimo de dinheiro, pela empresa, ao empregado com a garantia verbal de liquidação à época do pagamento das férias, assim como o recurso à violência física, como forma de resolver os conflitos do trabalho - com a legislação e a justiça formais, como fatores de tensão nas relações de trabalho.

A Lei, segundo Thompson, “anunciou o longo declínio da eficiência dos velhos métodos de controle e disciplina de classe, e sua substituição por um recurso padronizado de autoridade”.222 Entretanto, a afirmação do domínio da lei não significou a supressão imediata das práticas tradicionais, como às vezes se supõe. Antes, teria sido um processo lento, marcado por conflitos e acomodações.

Outra situação inusitada, envolvendo a troca de agressão física entre trabalhador e chefia, foi observada na reclamação trabalhista movida pelo tratorista Adão de Amorim contra CIB: Importadora e Construtora Ltda, alegando demissão injustificada. A ação foi aberta na Comarca de Santo Antonio de Jesus, em 1959. De acordo com os autos do processo, o motivo da demissão teria sido o envolvimento do reclamante numa luta corporal protagonizada por outro tratorista, Manuel de Souza Lima e pelo encarregado de campo, Leibnitz José de Oliveira. O conflito teria ocorrido em pleno canteiro de obras que a firma realizava, na condição de empreiteira, para o Departamento Nacional de Estradas e Rodagens (DNER).223

O desentendimento fora provocado pela recusa de Manoel de Souza em executar uma ordem do encarregado, travando com ele uma discussão. Durante a discussão o tratorista teria sacado uma faca do tipo punhal e investido contra o “superior”. Este último, a fim de defender-se, também teria empunhado outra faca, do mesmo tipo, e entrado em luta corporal com o agressor. Tentando evitar “maiores acontecimentos”, o ajudante de caminhão, Agnaldo Moreira, decidiu interferir, dominando Manoel, até ser interceptado por Adão. O caso foi parar na delegacia de polícia, originando um inquérito policial, no qual Adão Amorim aparece como uma das testemunhas arroladas pela empresa.224

É nesse momento que o reclamante entra em cena e que surgem as principais controvérsias sobre o caso. De acordo com a versão contada por Agnaldo Moreira e confirmada

222 THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 282. 223 Reclamação Trabalhista de Adão Amorim, contra C.I.B. Importadora e Construtora Ltda, aberta na Comarca de Santo Antonio de Jesus, em 1/9/1959. APMSAJ, pasta de Reclamações Trabalhistas (1961-1970).

por outra testemunha, no momento em que este último tentava controlar Manoel, Adão Amorim lhe teria agarrado pela cintura e atirado numa poça d’água, favorecendo assim a ação do agressor. Este seria o argumento utilizado pela empresa para tentar provar a “justa causa” da demissão. A participação de Adão no incidente não visaria apaziguar o conflito e sim favorecer o agressor - neste caso, o tratorista Manoel - contra o encarregado de campo. Além disso, estaria alcoolizado, em horário de serviço.225

A versão dos acontecimentos, apresentada pela empresa à justiça do trabalho entrou em contradição com o procedimento adotado no inquérito policial. De testemunha, Adão passaria a réu. Em contrapartida, o reclamante negou a ingestão de bebida alcoólica, apesar da insistência do próprio chefe para que bebesse, e afirmou que teria interferido na briga para apartá-la, sendo posteriormente despedido, por negar-se a cooperar com o “superior”, que pretendia dar uma surra no tratorista Manoel.226

Independente de qual versão esteja correta, mais uma vez o conflito envolveu agressão física entre um trabalhador e o “chefe” imediato do serviço. Provavelmente, devido à maior proximidade e intimidade que geralmente existia entre os trabalhadores e os prepostos patronais - capatazes, cabos de turma, feitores, gerentes ou encarregados – quase sempre recrutados no interior dos próprios plantéis operários - ou até mesmo pelo tipo de autoridade que representavam, a troca de agressões físicas e verbais ocorria, com maior freqüência, entre eles. O choque direto com os patrões era mais comum nas empresas menores, que possuíam um número reduzido de empregados, por dispensar a mediação de prepostos e ter o patrão diretamente exposto e envolvido no local de trabalho.

Embora as chefias intermediárias representassem, em tese, uma extensão da autoridade patronal sobre o conjunto dos trabalhadores - tornando-se, por isto mesmo, uma espécie de escudo sobre o qual se abatia a ira destes últimos - nem sempre elas permaneceram fiéis a tal papel. Por vezes, encontramos estes prepostos do patrão - subempreiteiros, cabos de turma, ou feitores - à frente das reivindicações dos subalternos, tanto em ações diretas, no próprio local de trabalho, quanto em reclamações trabalhistas. As mesmas prerrogativas de liderança, autoridade, proximidade e intimidade que os colocavam em constante tensão com os subalternos, em certas

225 Idem. 226 Idem.

circunstâncias, poderiam se converter em atributos de atração sobre eles, notadamente quando reconheciam a coincidência de interesses.

Isto foi observado, por exemplo, na reclamação movida, em 1945, por dez operários da Companhia Minas da Bahia. Motivada por uma suspensão temporária dos serviços de mineração, que teria resultado na demissão dos empregados, a ação foi encabeçada pelo feitor Sinfrônio Silva.227 Em 1951, o subempreiteiro ou administrador Gentil Teixeira Lobo teria liderado uma mobilização dos operários da firma empreiteira Artur Costa.228 Todavia, na maioria das vezes, quando a categoria não dispunha de sindicato, as ações conjuntas eram lideradas pelos trabalhadores tidos como mais experientes (não necessariamente mais velhos), que demonstrassem aptidões de liderança e que, provavelmente, possuíam maior conhecimento sobre a legislação trabalhista e o funcionamento da justiça do trabalho. Certas vezes, tratava-se de operários que já haviam acessado a Justiça anteriormente. A maioria dos trabalhadores que integraram duas ações conjuntas, contra a Cia. Hidro-Elétrica Fabril de Nazaré e contra a firma Drault e Cia, entre 1946 e 1950, na Comarca de Nazaré, eram reincidentes em experiências na justiça.229 Também, em 1956, defendendo-se perante uma ação conjunta, a Companhia Minas da Bahia alegou tratar-se de um “movimento aliciatório”, liderado pelo ex-operário Epaminondas Ferreira que já havia reclamado contra a mesma empresa e obtido um acordo.230

As punições, freqüentemente denunciadas pelos trabalhadores, constituem outro indicativo das tensões inerentes às relações de trabalho. A própria demissão, circunstância determinante da maioria das ações, certas vezes, adquiria um caráter de punição. Nestes casos, geralmente, era justificada como recurso para a preservação da ordem, da disciplina e das hierarquias de poder. Antes da demissão, descontos de salários e suspensões eram as principais medidas punitivas adotadas pelos patrões nas circunstâncias em que julgavam atos de negligências ou atitudes de insubordinação e indisciplina da parte do empregado. Tal foi a situação observada na ação movida pelo operário Simplício Moura contra o Curtume Nazaré, em 1944, na Comarca de Nazaré. Nela, o trabalhador afirmou que há mais de sete anos trabalhava

227 Recurso ordinário, citado, de Bispo Evangelista, Norberto Santos, Sinfrônio Silva e outros, contra Cia. Minas da Bahia Ltda.

228 Autos da Reclamação Trabalhista de Brasilino Costa, Durvalno José da Silva e outros, contra Artur Costa; aberta na Comarca de Santo Antonio de Jesus em 11/6/1951. APMSAJ, pasta de Reclamações Trabalhistas ( 1909-1958). 229 Refiro-me às duas ações movidas por Manoel Salvador de Oliveira e outros, na Comarca de Nazaré, em 1946 e em 1950, contra Drault e Cia; também às duas ações movidas por Manoel Mauro e outros, em 1947 e em 1950, contra a Cia. Hidro-Elétrica Fabril de Nazaré, na mesma Comarca.

para a referida empresa, “com sua folha de serviços absolutamente limpa”, sendo “ela injustamente manchada por ato arbitrário do gerente”. Este lhe teria aplicado uma multa e, em seguida, uma suspensão por tê-la questionado.231

Sem prévio aviso, ao receber seu salário da semana, o operário teria constatado a anotação e o desconto, referente a uma multa no valor de Cr$ 5,00. Questionado sobre o motivo da referida penalidade, o gerente da firma teria afirmado que havia sido o esquecimento de uma chave na porta da seção de ‘drogaria’. Ele ainda tentou justificar-se, alegando que não havia trabalhado na referida seção na data do incidente; mas o chefe, contrariado, teria retrucado que isso não lhe interessava, pois a multa não seria dispensada e que caso estivesse insatisfeito, pedisse demissão. Para evitar maiores aborrecimentos o reclamante teria deixado o envelope com o dinheiro que lhe seria pago, sobre a mesa, para tentar um novo entendimento no dia seguinte. De volta, teria ouvido do gerente que, além da multa, receberia oito dias de suspensão, por tê-la questionado. Como retrucara que seria uma injustiça, teve a punição ampliada de oito para 15 dias; pois, segundo o gerente, nenhum operário reclamava contra as penalidades sofridas, sendo ele o primeiro.232

Em face do exposto, o reclamante pretendia que a empresa fosse condenada a desfazer as referidas penalidades, por serem injustas, ilegais e terem sido aplicadas de forma discricionária (quando a jurisprudência trabalhista há muito firmava o princípio de que cabe à justiça do trabalho apreciar as penalidades impostas aos empregados em geral). Logo, pleiteava o pagamento dos valores referentes aos dias de suspensão e à multa, indicando como testemunhas, três colegas de trabalho. Em contrapartida, a defesa apresentada pela empresa afirmou que a multa tinha sido causada por negligência e que recaíra também sobre outros dois operários, da mesma seção, e que somente o reclamante a teria refutado, dirigindo-se ao escritório para questioná-la. Motivo pelo qual teria recebido uma suspensão de oito dias, posteriormente aumentada para quinze, por ter voltado no dia seguinte “para insultar a pessoa do gerente”, acusando-o de ficar com o dinheiro da multa.233

Multas e suspensões eram aplicadas pelos mais diversos motivos e foram também, muitas vezes, questionadas pelos trabalhadores na justiça. Em 1946 o operário Florêncio Anastácio da

231 Cf. Recurso Ordinário de Simplício Moura, contra Drault e Cia, expedido na Comarca de Nazaré, em 27/ 12/1944. AFN, documento sem catalogação.

232 Idem. 233 Idem.

Luz reclamou, na Comarca de Nazaré, contra uma suspensão que lhe fora aplicada pela Companhia Hidro-Elétrica Fabril de Nazaré. O motivo da punição teria sido a recusa do reclamante em executar uma tarefa, por considerá-la alheia ao seu contrato de trabalho. Contratado desde 1929, para realizar serviços internos da fábrica de óleos vegetais e sabão da referida empresa, teria recebido ordem do chefe de serviço para acompanhar um carregamento que seguiria de barco com destino à capital. Além de considerar o serviço estranho ao seu contrato de trabalho, o reclamante alegou não dispor de agasalhos para realizar a referida viagem, em tempo de inverno, acrescentando que havia dois empregados contratados especialmente para este fim. Ressaltou ainda, que noutras duas ocasiões, quando as condições do tempo permitiam e lhe era conveniente, havia atendido, porém desta vez teria recusado “para não fazer hábito”. Diante da resistência encontrada, o “superior” fora impelido a mandar outro empregado em seu lugar, aplicando-lhe, porém, uma suspensão “por desobediência”.234

Perante o exposto, algumas questões se sobressaem. Primeiramente, a percepção de que, embora se mostrassem freqüentemente dispostos a cooperarem com seus chefes, os trabalhadores eram capazes de discernir, com precisão, a diferença entre cooperação, costume e obrigação. Sentiam-se, portanto, no direito de definir em tal ou qual circunstância era conveniente ou não cooperar. Depois, a observação de que as punições impostas, arbitrariamente aos trabalhadores, pelos chefes, mediante multas, suspensões e demissão, passavam a ser, freqüentemente, questionadas na Justiça.

Em geral, para os trabalhadores, a ação da Justiça tornava-se um meio legítimo de tentar assegurar direitos sonegados, reaver direitos subtraídos ou resguardar direitos ameaçados. Tal foi a situação observada na ação movida em 1952 pelas charuteiras Bárbara Silva, Luzia Conceição, Leolina Santos Moreira, Lúcia Pascoal Ferreira, Maria Mercês, Etelvina Veloso, Laurentina Silva e Clara Evarista Nunes, na Comarca de Cachoeira, contra a fábrica de charutos Suerdieck. O motivo da queixa teria sido uma tentativa do gerente da empresa de transferi-las da função de charuteiras para o “serviço de banca”, considerado de categoria inferior. Na ocasião, afirmaram que há 16 anos trabalhavam, ininterruptamente, como charuteiras, na referida empresa, sendo surpreendidas, ao retornarem de férias, com a transferência de suas funções para o “serviço de banca”. Este era geralmente exercido por quem não se especializou na manipulação de charutos.

234 Reclamação Trabalhista de Florêncio Anastácio da Luz, contra a Companhia Hidro-Elétrica Fabril de Nazaré S/A, aberta na Comarca de Nazaré, em 9/1/1947. AF N, documento sem catalogação.

Além de pleitearem a reintegração à antiga função, reivindicaram o pagamento de vinte dias de férias, já que haviam gozado apenas oito. Na ocasião, contaram com a assistência do advogado do sindicato da categoria, Fortunato da Costa Dória.235

De acordo com a defesa apresentada pela empresa, a transferência teria ocorrido devido ao grande estoque de charutos existente na fábrica, consoante ao fato de que na seção de “distalação”, para a qual foram transferidas, somente havia operárias novas, com pouca experiência. A medida visaria, ainda, assegurá-las o valor do salário mínimo, já que trabalhavam por produção.236 Os passos seguintes e o desfecho desses dois últimos processos serão abordados adiante, na seção que trata dos conflitos jurídicos envolvendo advogados e magistrados.

Diferentemente de outros casos anteriormente citados, a abertura destes dois processos não foi precedida de nenhuma situação grave, como a troca de agressão física entre chefe e empregado, nem ocorreu em circunstância de demissão. No cerne das duas questões encontra-se a resistência dos reclamantes em face de decisões unilateralmente adotadas pelos chefes, consideradas abusivas e transgressivas ao contrato de trabalho, que teriam implicações, sobretudo, de natureza moral. No segundo caso, por exemplo, não foi observada, nas alegações das operárias, nenhuma referência a redução de salário, em conseqüência da transferência de setor e sim ao fato de tratar-se de “serviço de natureza inferior”. Do ponto de vista jurídico, a medida implicava uma violação das regras trabalhistas, enquadrada como alteração unilateral do contrato de trabalho.

A mesma circunstância motivou, cerca de dois meses mais tarde, outra reclamação contra a Suerdieck. Desta feita, o reclamante Cosme Souza, que contava com mais de quinze anos de serviço prestados à firma, recusou a transferência da função de “capoteiro” para a de “prenseiro”. Segundo alegou, “o capoteiro, além de melhor remunerado, é um mister de categoria mais elevada que o prenseiro”. Assim sendo, iria sentir-se “diminuído perante os seus companheiros de trabalho”.237 Neste caso, a mudança de função refutada pelo reclamante, implicaria tanto perda econômica quanto prejuízos morais. Questões de caráter econômico e de natureza moral quase sempre estiveram lado a lado nos conflitos do trabalho e foram, muitas vezes, conjuntamente questionadas na Justiça.

235 Autos da Reclamação Trabalhista de Bárbara Silva e outras, contra Suerdieck S/A., aberta na Comarca de Cachoeira em 29/8/1952. APMC, pasta de Reclamações Trabalhistas (1947-1959).

236 Idem.

237 Reclamação Trabalhista de Cosme Souza, contra Suerdieck S/A., aberta na Comarca de Cachoeira, em 30/12/1952. APMC, Pasta de Reclamações Trabalhistas (1947-1959)

O fato de tratar-se de uma matéria idêntica à da queixa anterior, contra a mesma empresa e com uma distância de tempo de menos de dois meses, sugere a existência de outras possíveis relações entre os dois processos. Ambos tiveram o acompanhamento do advogado do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Fumo de São Félix e Cachoeira, Dr. Fortunato da Costa Dória; embora apenas no segundo caso exista referência expressa à filiação do reclamante à entidade. Contudo, independente deste aspecto, são indicativos de que a iniciativa de um trabalhador em levar o patrão à justiça e os possíveis êxitos alcançados, poderia iluminar o caminho a ser percorrido por outros colegas.

O descumprimento de uma determinação do chefe de serviço, por considerá-la arbitrária, teria motivado também a demissão do ferreiro Ozório Pimenta Santana, que, em 1954, moveu uma ação contra a firma Artur Costa, na Comarca de Santo Antonio de Jesus. O motivo da punição teria sido a recusa do reclamante a assinar um documento constando um valor diferente