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O conceito de integralidade é primeiramente utilizado pelo Ministério da Saúde no Brasil em 1983, quando começa a ser preparado, a partir de forte protagonismo do movimento feminista, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM). O MS divulga oficialmente o PAISM em 1984, por meio do documento:

Assistência Integral à Saúde da Mulher: bases de ação programática (Brasil,

1984). É interessante notar que fica explicitado nessa política o duplo alcance da integralidade, seja no sentido de orientar um conjunto diversos de atividades e serviços à promoção, à prevenção e à assistência à saúde da mulher (por isso é denominado como um “programa”), seja no que diz respeito ao atendimento à saúde de cada mulher em todos os seus ciclos e necessidades de vida e não

apenas nos aspectos maternos ou reprodutivo (por isso inclui o termo “integral” na denominação do programa).

Também em 1983 é criado na Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo o Programa Estadual de AIDS, o primeiro do Brasil e na América do Sul. O Programa Nacional de AIDS é criado em 1985pelo MS (Kalichman, 1993; Teixeira, 1997; Grangeiro et al., 2009).

A década de 1980 é marcada pela implantação das Ações Integradas de Saúde (AIS) e do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), estratégias que avançam na incorporação da assistência médica individual na rede pública de saúde e no processo de descentralização e fortalecimento da esfera estadual no Sistema de Saúde. Em 1986 ocorre a VIII Conferência Nacional de Saúde, síntese do movimento pela reforma sanitária, a qual antecipa, de certa forma, o que dois anos depois, em 1988, se tornarão as bases do SUS na nova Constituição brasileira (Pinheiro; Mattos, 2001).

Nos anos 1980 e início dos anos 1990, a proposta da Ação Programática em Saúde é formulada a partir das experiências colocadas pelo trabalho assistencial e gerencial desenvolvido no CSESBP pelo DMP-FMUSP. Essa proposta é descrita como “filha” da Programação em Saúde paulista dos anos 1970 e do Movimento da Reforma Sanitária brasileira dos anos 1980 em seus compromissos éticos e políticos– a saúde como um direito de todos e a construção de um sistema que seja instrumento de sua promoção e garantia, e também um processo de emancipação social (Nemes; 2000).

Independente das críticas, contribuições e alternativas que essa proposta suscitou, as quais serão abordadas a seguir de forma breve, os anos 1990 têm como marca importante o estabelecimento da estratégia (ou programa) de Saúde da Família (ESF) como organizadora da atenção primária no SUS. A atenção primária continua sendo vista como porta de entrada do Sistema, mas seu “modelo assistencial e tecnológico” passa a ser orientado pela proposta da ESF.

Mesmo em São Paulo, o modelo de programação em saúde originalmente implantado por Walter Leser em suas duas administrações (1964-67 e 1975-79) começa a ser desmontado e, em 1987, ocorre o fim da carreira de médicos sanitaristas e de sua vinculação com os cargos de direção dos Centros de Saúde. Estes, com o tempo, passam a ser denominados Unidades Básicas de Saúde, e começam a operar em uma lógica assistencial que perde a vinculação programática, sendo caracterizados pela lógica queixa–conduta (Mendes- Goncalves, 1994, Mota; Schraiber, 2011).

A proposta de Ação Programática configura uma estratégia de efetivação da atenção integral, baseada em necessidades de saúde validadas democrática e epidemiologicamente, buscando um “modelo assistencial” socialmente organizado na articulação das ações de intervenção coletivas e assistenciais individuais. Essa proposta começa também a problematizar a própria dimensão técnica das práticas e processos de trabalho em saúde, e a forma como estão organizadas em um “modelo tecnológico”, sua produtividade e sua efetividade na promoção e recuperação da saúde da população. (Schraiber, 1990,1993; Mendes-Goncalves, 1994).

No início dos anos 1990, embora compartilhando os valores e alguns princípios da proposta de ação programática, Campos aponta a limitação do alcance do modelo para outros pontos de atenção da rede além da atenção primária e, mesmo nesta, a baixa cobertura da proposta na e a partir da Rede de Centros de Saúde em SP. Aponta também a pouca problematização das questões gerenciais, de planejamento e organização dos serviços em uma perspectiva alternativa à da administração tradicional. Por fim, questiona se a vinculação da clínica ao saber epidemiológico por si só seria capaz de mudar substancialmente sua efetividade do ponto de vista da articulação das ações programáticas, ou enquanto prática ou tecnologia de cuidado à saúde individual (Mota; Schraiber, 2011).

O desenvolvimento e desdobramentos do trabalho de Campos produzem, a partir de meados dos anos 1990, a proposta de uma “clínica ampliada”, conceito que será retomado posteriormente, assim como o de equipes de referência e novas estratégias de gestão dos serviços de saúde. (Campos, 1991, 1999; Mota e Schraiber, 2011).

Como apontam Mota e Schraiber (2011), também foram feitas críticas à proposta de Ação Programática quanto à sua sustentabilidade, visto que as demandas colocadas pelo seu financiamento inviabilizariam sua expansão para outras localidades do país onde os recursos necessários não estariam disponíveis. (Mehry e Queiroz, 1993).

Texto de Ayres (1995) problematiza as limitações que os enfoques da clínica tradicional e da epidemiologia do risco colocam às pretensões emancipatórias e inclusivas da população/pacientes, e dos trabalhadores da saúde trazidas pela Ação Programática. O autor ressalta “que no trabalho em saúde os objetos são

sujeitos” e questiona: até que ponto a clínica tradicional e o conceito de risco são

capazes de “discriminar e efetivar” (Ayres, 2005 p. 73) a presença e as reais necessidades dos sujeitos nos processos de trabalho em saúde, em geral e na programação em saúde em particular. Ao mesmo tempo em que aponta uma determinada efetividade, tanto da clínica tradicional como da epidemiologia do risco, no campo técnico-científico, o autor ressalta que “Precisaremos incorporar a nossas práticas cotidianas a ideia de risco como construção abstrata de caráter sempre (imediatamente) prescritivo, e o caráter quase-tecnológico da programação” (Ibid., p. 73).

Em trabalho anterior (Kalichman, 1993), realizei uma recuperação histórica dos conceitos e práticas da vigilância epidemiológica da aids. Nesse trabalho fica clara a limitação e mesmo as distorções que o manejo acrítico do conceito de risco pode gerar na compreensão da epidemia e nas propostas de intervenção sobre as pessoas acometidas, tratadas de forma tecnicista – de novo afastada da

perspectiva buscada pelos discursos afins à prspectiva da integralidade (Kalichman, 1993).

À mesma época, preocupações similares são publicadas, no livro A Aids no

Mundo (Mann, 1993), o qual trouxe ao contexto brasileiro o conceito de

vulnerabilidade ao HIV/AIDS. Como será apresentado adiante, a vulnerabilidade veio a se mostrar como conceito com potencial para encaminhar a superação das limitações do paradigma do risco no trabalho com a aids, e na saúde coletiva de forma mais ampla (Ayres, 1997, 2009).

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