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5 O ELITISMO JURÍDICO

5.3 A abertura de novos caminhos e a democratização do direito

A democratização do direito é uma das promessas da modernidade. Tratei das dificuldades/incapacidades que manifesta o paradigma normativista do direito, tributário da modernidade, de apresentar/construir soluções adequadas para déficits estruturais como o que se verifica no Brasil no caráter elitista do acesso à terra. Alicerçado na centralidade da norma, na lógica de acumulação capitalista e no elitismo, esse paradigma atua fixando fronteiras, daí porque representa, ele mesmo,

um déficit da modernidade. A democratização do direito passa pela abertura de novos caminhos. Propus os seguintes caminhos: contra o normativismo, a abertura cognitiva do direito por meio da introdução do mundo dos fatos na análise jurídica do conflito. Essa abertura é viabilizada pelos dois mecanismos referidos: inserção do conflito em sua historicidade e transcendência pela ampliação para complexidade do conflito que impeça sua miniaturização. Contra o individualismo apontei a necessidade de centralidade da apropriação-trabalho, segundo a perspectiva da função social, tal como compreendida por São Tomaz de Aquino, em substituição à exclusividade da propriedade-mercadoria; a natureza pública do conflito e a pertinência subjetiva do Estado, bem como a imprestabilidade da demanda possessória como espaço de discussão acerca do conflito. Contra o elitismo, sustentei a necessidade de superação do dogma da verdade processual (segurança) pela verdade real (justiça). Importa agora tratar de como abrir esses novos caminhos.

Para Santos (2011a, p. 78), todo conhecimento é uma trajetória de um ponto A, designado ignorância, a um ponto B, saber. Ignorância e saber são, portanto, relacionais. Todo saber pressupõe uma ignorância e toda ignorância admite a possibilidade do saber. Na ciência moderna, o conhecimento seguiu(segue) duas formas. A primeira é uma trajetória do caos (ignorância) à ordem (saber) – conhecimento-regulação. Esse é, no paradigma da modernidade, o caminho seguro para o progresso e para o desenvolvimento. Na segunda, o conhecimento é a trajetória do ponto de ignorância, designada colonialismo (negação), a um ponto de saber, a solidariedade (reciprocidade) – conhecimento-emancipação.

O conhecimento-regulação é a forma de conhecimento dominante no direito moderno. Sua preocupação essencial é promover a ordem que se traduz juridicamente sob a forma de segurança jurídica. A ordem, garantida por meio da segurança jurídica, constituiria a condição básica para o desenvolvimento do capitalismo e que significaria o progresso humano, o desenvolvimento. A ordem é a expressão da universalização de interesses e visões de mundo específicos, é expressão do que Bourdieu (2012, p. 237) chama de etnocentrismo dominante. A centralidade do conhecimento-regulação reduziu as energias emancipatórias do próprio direito à regulação com vistas à ordem, reduziu a justiça à segurança jurídica.

A incapacidade de o paradigma normativista do direito apresentar respostas adequadas a conflitos estruturais de elevada complexidade, como é o caso do conflito pela terra, é expressão concreta dessa redução. Essa incapacidade constitui uma promessa da modernidade não cumprida.

O relativo abandono do conhecimento-emancipação levado a cabo pelo paradigma normativista tornou a aplicação do direito fonte viva de colonialismo, de negação do outro, de ignorância. Isso está particularmente evidenciado ao longo desta dissertação na forma como o direito, no paradigma normativista, soluciona o conflito pela terra. Retomo sucintamente alguns desses aspectos. A centralidade da norma na solução do conflito, revela o colonialismo quanto à riqueza e à complexidade da vida. O drama social das famílias ocupantes do imóvel objeto do conflito, reiteradamente suscitadas nos argumentos dos advogados e defensores públicos, é, em geral, ignorado em nome do cumprimento dos requisitos contemplados no art. 927 do Código de Processo Civil e de um título. O conflito é um “objeto” a ser conhecido. Nega-se nele a existência de vidas, de sofrimento, de angústias. Nega-se, e com isso se legitima, uma realidade de desigualdade.

O caráter privado atribuído ao conflito revela também o colonialismo na forma de o paradigma normativista conhecê-lo, já que ignora que mesmo as relações privadas são igualmente marcadas por hierarquia e por desigualdade. Ignora que o Estado tanto concorre para as causas quanto agrava as consequências do conflito e que os estreitos limites da demanda possessória não comportam a complexidade do conflito.

Do mesmo modo, o colonialismo se manifesta na negação de outras forma de acesso aos bens da vida, como a terra, que não seja pela via formal do título. Esse paradigma ignora que, historicamente, para significativa parte da população brasileira, que às vezes sequer tem o registro de nascimento, o título de propriedade jamais constituiu (e talvez nunca constitua) uma promessa cumprida. O mencionado art. 68 do ADCT e, sobretudo, sua inefetividade, são exemplos desse não cumprimento.

Também a conformação do direito com a verdade processual expressa o colonialismo que o caracteriza. O sistema de provas, tal como configurado, ignora que para os brasileiros com renda mensal de até três salários mínimos a assistência jurídica integral e gratuita constitui ainda uma promessa não cumprida. Ignora que, entre os fatos e a prova, o custo do transporte é barreira, muitas vezes e por razões

diversas, mais difícil de ser superada do que a construção de uma tese jurídica. Em todos esses aspectos, discutidos nesta dissertação, o colonialismo constitui uma fronteira. Proponho então para superá-la um des-pensar o direito. A expressão é de Santos (2011a, p. 186-187) e ele a sugere em dois sentidos: um de natureza destrutiva e disciplinar, consistente na identificação do direito perante as demais ciências sociais; outro, de natureza construtiva e interdisciplinar, consistente na construção de uma nova síntese cultural. O primeiro permeia todo este trabalho na forma como dialogo com a história e com a sociologia na busca da reconstrução jurídica do conflito e dos institutos que lhes são correlatos. O segundo é que me detém neste momento. Há, segundo Santos (2011a), três áreas em que esse des- pensar se faz mais urgente. Uma delas assume particular relevância para a presente pesquisa e pode ser definida em utopia jurídica e pragmatismo jurídico. A utopia jurídica, num contexto capitalista, resume-se a um progresso/desenvolvimento de um futuro capitalista. As mudanças são fragmentárias e normais, todas chanceladas pelo direito estatal (padrão da mudança normal). Fragmentárias porque incapazes de subverter a lógica do sistema. Normais, porque não revolucionárias. A utopia tornou-se segurança – segurança jurídica. A segurança jurídica é a perpetuação no presente e no futuro da sociedade burguesa.

Radica exatamente na relação entre direito e revolução um outro padrão de mudança social que transcenda a normalidade regulada pelo direito estatal Santos (2011a, p.182). Embora reconheça o caráter antagônico de ambos – e isso já bem o demonstrou Agamben (2004) –, Santos (2011a, p. 184) sustenta que é por meio da tensão entre direito e revolução que se traduz, juridicamente, a tensão entre regulação e emancipação. Ao fazê-lo, Santos pretende resgatar do direito o seu viés revolucionário, em grande parte esquecido/negligenciado por uma certa tradição marxista, que o identificava como simples mecanismo de manutenção do status quo burguês. O seu caráter revolucionário está assentado no conhecimento- emancipação.

Neste sentido, o des-pensar o direito é localizar conhecimento- emancipação como forma preponderante de conhecimento jurídico (doutrina e aplicação do direito). O que o viabiliza é a solidariedade como forma de saber quanto como meio de prática social emancipatória. É a solidariedade, enquanto reconhecimento do outro, pela reciprocidade, que permite a abertura de novos caminhos, de que constitui um exercício a presente dissertação. É preciso, com

Santos (2009, p. 48), afirmar a necessidade de uma co-presença radical. O paradigma normativista ao negar interesses e direitos que não são os dominantes nega a existência da alteridade. Nega-se também a aprender com ela e a partir dela (CARVALHO, 2009 p.124).