• Nenhum resultado encontrado

2 O CINEMA HOLLYWOODIANO E A ADAPTAÇÃO DE OBRAS

2.2 A adaptação cinematográfica e sua relação com a obra literária

2.2.2 A adaptação cinematográfica e sua relação dialógica

Sabe-se que grande parte das teorias hoje utilizadas no estudo e análise das adaptações cinematográficas não foi desenvolvida especificamente para esse fim. Os estudos da tradução discutidos na seção anterior foram, a priori, pensados para análise de textos literários e suas traduções impressas. Contudo, a proliferação nos meios de comunicação motivada pela revolução tecnológica, sobretudo, nas últimas décadas, permitiu que diversos conceitos, antes restritos ao universo da literatura, fossem estendidos a outros meios semióticos.

Stam (1990; 1992; 2000) oferece preciosa contribuição à área ao aplicar, por exemplo, os conceitos bakhtinianos de linguagem ao campo cinematográfico. Para ele, a adaptação deve ser entendida e estudada sob uma perspectiva fundada no dialogismo bakhtiniano (STAM, 2000, p. 65). O termo dialogismo passou a ser usado por Bakhtin a partir de 1920 para sustentar a ideia de que um texto é o resultado do diálogo entre vozes, discursos anteriores, que são evocados sob a forma de validação ou rejeição, reprodução ou transformação, conforme os objetivos do novo texto. O conceito proposto é bastante amplo e,

embora tenha inicialmente sido aplicado aos estudos literários, o dialogismo de Bakhtin também pode ser usado para abranger relações entre variados tipos de texto, incluindo aqueles que se constroem em meios semióticos diversos.

As adaptações The Killers (1946) e The Snows of Kilimanjaro (1952) são exemplos representativos desse caráter dialógico que foram feitas a partir de contos de mesmo título e dispõem de acréscimos curiosos que apontam para um diálogo mais estreito com o estilo literário do escritor e o conjunto de sua obra do que, propriamente, com os textos que fomentam os títulos de cada filme. Essas produções pertencem a gêneros distintos e foram produzidas por diferentes diretores, entretanto, apresentam em suas narrativas personagens femininas que formam o par antagônico “mulher submissa e femme fatale”, arquétipos femininos recorrentes nas narrativas de Hemingway.

Isso se manifesta por meio da ausência ou da inserção de personagens. No conto “The Killers”, por exemplo, não há personagens femininas desse tipo em sua narrativa. Em “The Snows of Kilimanjaro”, destaca-se somente Helen, a mulher resignada, como figura de certo relevo na trama. Assim, podemos dizer que os diretores buscaram recursos em outras obras do escritor norte-americano para construir suas narrativas. Além do procedimento utilizado em relação à construção das personagens femininas nas adaptações, outras situações podem ser percebidas em vários momentos dos filmes as quais dialogam tanto com outras obras do autor quanto com a imagem pública positiva desfrutada por Hemingway à época.

A tentativa de entender como e por que esse diálogo foi construído, assim como as implicações que isso pode ter aferido a cada narrativa são pontos tratados nesta pesquisa. Por ora, interessa-nos apenas ilustrar de que maneira o dialogismo bakhtiniano pode ser concebido entre meios semióticos diversos.

No intuito de esclarecer o conceito proposto, Bakhtin (1981, p. 282) explica que a linguagem não constitui somente uma estrutura subjetiva, mas também uma construção comum a dois ou mais indivíduos, onde o que cada interlocutor profere é resultado da soma de diversas vozes. Esse desdobramento pode ocorrer entre a voz de um indivíduo e outro alguém, no caso de limitarmos o alcance desse diálogo aos locutores presentes, ou entre diversos “eus” e vários “outros” se estendermos o conteúdo em nível de discurso que resulte de uma interação social, cultural que, por sua vez, une passado e presente.

Quanto a isso, Stam (1992, p. 17) explica que, durante a comunicação, “o que vemos é determinado pelo lugar de onde vemos”. Ao ocuparem espaços físicos distintos, cada

interlocutor tem acesso a informações que o outro não tem, isto é, ninguém consegue ver a própria expressão durante a fala ou vislumbrar o cenário que se encontra às suas costas. Tal informação somente é possível a partir de diferentes pontos de vista.

Se estendermos esses aspectos ao cinema e, de modo específico, ao que é exibido na tela, é plausível pensarmos da seguinte maneira: tudo o que aparece na tela e a forma como está arranjado tem um propósito, isto é, foi arquitetado previamente pela equipe de profissionais que, após considerar todas as especificidades do meio, produziu o filme. Dentro da sala escura e limitados ao espaço de seu assento, todos os espectadores têm acesso às mesmas imagens reproduzidas na tela. Contudo, isto não implica dizer que todos os espectadores entendam o filme da mesma forma ou tenham as mesmas impressões/sentimentos diante da narrativa.

Ainda que o filme tenha sido pensado em termos de determinado público, não há garantias de que alguém fora daquele padrão faça parte da plateia, ou ainda, que as pessoas tenham sido compelidas àquela sessão pelas mesmas razões, o que seria suficiente para gerar sentidos diversos acerca da narrativa. Além disso, cada espectador tende a focar em aspectos distintos durante a narrativa, fato, em parte justificado, por suas experiências passadas e preferências pessoais. Considerados todos esses aspectos, é impossível pensar na multiplicidade de vozes envolvidas, produzidas e capazes de interagir a partir de um único filme.

Em síntese, a noção de diálogo apresentada por Bakhtin (1981, p. 293) é marcada pela interdependência de perspectivas e pela interação de entendimentos e impressões que ocorrem de forma ativa por parte de todos os locutores e receptores envolvidos, cujas funções apresentam-se sob certa dinâmica entre quem fala e quem ouve. Segundo o autor, não há linguagem neutra, sem intenções, sem discurso e, se a linguagem é sempre partidária, o diálogo estabelecido a partir de qualquer forma de linguagem constitui-se um jogo de forças.

Ao aplicar esse conceito de diálogo à literatura, Bakhtin explica que:

Cada enunciação concreta do sujeito do discurso constitui o ponto de aplicação seja das forças centrípetas, como das centrífugas. Os processos de centralização e descentralização, de unificação e de desunificação cruzam- se nesta enunciação, e ela basta não apenas à língua, como sua encarnação discursiva individualizada, mas também ao plurilingüismo, tornando-se seu participante ativo. (BAKHTIN, 1998, p. 82)

Em outras palavras, não há significado literário que fuja ao ato da comunicação social geral. Determinada literatura pode ser reconhecida como uma forma de identidade nacional, porém essa mesma literatura é reflexo das diversas linguagens que coexistem naquele espaço nacional e falam sob o “disfarce” de uma linguagem poética. Ao agir dessa forma, a literatura também refrata as vozes “circundantes de outras esferas ideológicas, e por sua vez incide sobre esses outros discursos. O fenômeno literário, como qualquer outro fenômeno ideológico, determina-se simultaneamente de fora (extrinsecamente) e de dentro (intrinsecamente)” (STAM, 1992, p. 23).

Assim como a linguagem, a literatura não é um fim em si mesmo nem encerra um sentido imune ao que lhe é externo. Antes de tudo, a literatura (e qualquer forma de expressão) é um evento social. Mesmo se considerarmos o aspecto individual de leitura, há uma interação entre o texto e o olhar que o indivíduo lança sobre ele. Essa forma de ver o texto é fruto de um momento histórico, de uma visão ideológica, de referências a outros textos lidos anteriormente e de modulações de leitura. A esse conjunto de elementos que conduzem a comunicação, Bakhtin denomina “tato” (BAKHTIN, 1986, p. 86).

O tato consiste nessa relação entre os interlocutores (e o texto é um agente portador de voz) que envolve desde sua condição social enquanto enunciadores a seu posicionamento ideológico e como essa comunicação entre eles acontece. Para Stam (1992, p. 62), essa ideia de tato é de grande valia para os estudos cinematográficos posto que pode contribuir para uma análise do “diálogo” entre filme e público. O autor considera que o filme é composto de dois tipos de tato: o literal e o metafórico. O tato literal seria constituído dos elementos concretos do filme, ou seja, as imagens, o som, a iluminação, tudo aquilo que aparece na tela. Por outro lado, o tato metafórico se manifestaria na forma como os recursos tecnológicos são utilizados para fazer insinuações, transmitindo uma mensagem implícita na intenção de determinar a relação entre filme e espectador. Alguns desses recursos podem ser, por exemplo, o posicionamento da câmera (se está em ponto objetivo ou subjetivo, em close up ou plano aberto) e a forma de apresentação de determinados tipos (se é naturalizada ou estereotipada, detalhada ou superficial). Um estudo do tato metafórico poderia revelar se o filme estabelece uma relação de proximidade ou de distância em relação ao público, se ele seleciona seu público a partir do gênero ou classe social e como trata esse público imaginado, ou ainda que concepções o filme apresenta em relação aos ideais desses espectadores. Sob o ponto de vista teórico, o tato metafórico oferece a possibilidade de identificar a intenção final do filme para com seu público, o que ele almeja? Intimidar, convencer, corromper, censurar?

De acordo com Stam (1992), o dialogismo de Bakhtin serviu de base para o trabalho de outros teóricos, dentre eles, a semioticista e crítica literária Julia Kristeva, que sugeriu o termo intertextualidade para tratar do diálogo de um texto inserido em determinado contexto com outros contextos, discursos e seus receptores. Para Kristeva (1980), o público também interage com o texto desde que seja consciente do discurso invocado.

Considerando a abrangência com que os termos dialogismo (de Bakhtin) e intertextualidade (de Kristeva) passaram a ser empregados, Genette (2006, p. 8) oferece uma tipologia para as distintas formas de relação entre textos e propõe o termo transtextualidade para abranger a comunicação textual. A transtextualidade seria então dividida em cinco subcategorias: "intertextualidade", que considera a existência de um texto em outro por meio de citação, plágio ou alusão; "paratextualidade", que relaciona o texto aos seus "paratextos", ou seja, a periferia do texto (títulos, prefácios, posfácios, ilustrações, epígrafes etc.); "metatextualidade", que diz respeito à relação crítica entre textos, se o texto comentado é implícita ou explicitamente citado; "arquitextualidade", que está ligada aos padrões gerais que definem a peculiaridade de um texto, tem a ver com o desejo ou não do autor em caracterizar um texto por meio do seu título, por exemplo; e "hipertextualidade", que se reporta à relação do texto atual com o anterior por meio de fenômenos como a paródia e o pastiche.

Uma ilustração da subcategoria “intertextualidade” por ser identificada no filme The Snows of Kilimanjaro. Nessa adaptação, entendemos a inserção da personagem Cynthia Green (Ava Gardner), bem como algumas situações que a envolvem na narrativa fílmica, como um plágio a A Farewell to Arms (1929). Esse romance de Hemingway, que se passa na Itália durante a Primeira Guerra Mundial, conta a história de Henry e Catherine; ele, após ser ferido na perna durante um confronto, é tratado pela jovem enfermeira e se apaixonam. Ela engravida, mas o bebê nasce morto e ela morre logo em seguida por complicações do parto. Considerando que, no conto, não há qualquer referência a Cynthia e a sua gravidez, parece- nos razoável crer que o diretor Henry King tenha buscado recursos em outras obras de Hemingway para construir sua narrativa. Outros exemplos são, ainda, abordados neste trabalho.

Ao propor tal classificação, Genette tratou da relação entre textos literários especificamente. Entretanto, Stam (2000) sugere que essas subcategorias possam ser usadas também na comparação de obras literárias e cinematográficas. Para ele, esses termos podem

servir como um instrumental mais concreto e auxiliar na identificação das diversas referências e transformações que resultam em um texto atual ou, considerando o objeto de análise desta pesquisa, em adaptações fílmicas.

De acordo com Stam (2000, p.65), um filme seria o resultado da existência de dois (ou mais) textos, um literário e outro cinematográfico, onde a obra literária aparece sob a forma de citação, plágio ou alusão. A adaptação fílmica dialoga, implícita ou explicitamente, com textos anteriores sem o compromisso de respaldá-los ou reproduzi-los; ela pode assumir uma posição de crítica, resposta ou negação dos mesmos.

As teorias da literatura comparada, tradução e cinema discutidas até o momento, aproximam obra literária e produção cinematográfica na perspectiva de uma diálogo existente entre esses textos. Considerando esses aportes teóricos, analisaremos, no capítulo seguinte, aspectos relevantes da escrita de Hemingway, sobretudo o uso do princípio do Iceberg, tentando compreender como esses elementos aparecem nos contos “The Killers” e “The Snows of Kilimanjaro”.

3 HEMINGWAY E SUA TRAJETÓRIA DE ESCRITA NO SISTEMA LITERÁRIO