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Ernest Hemingway não apenas possui uma vasta produção literária como, também, conta com uma variada fortuna crítica. Embora seja um escritor que tenha começado a carreira no início do século passado, suas obras ainda trazem inquietação e curiosidade tanto a leitores quanto pesquisadores e críticos.

Sua estética da economia de palavras, fundamentada no princípio do Iceberg, coloca o leitor diante de um desafio, cuja solução jamais encontrará uma única resposta. O texto, cuidadosamente trabalhado por Hemingway, tem a peculiaridade de ser único a cada leitor, conforme suas experiências e objetivos. Assim, embora parte da crítica insista em direcionar o estudo das obras em determinado sentido, os resultados advindos dessas leituras podem ser os mais variados, dependendo da perspectiva de análise.

Nesta pesquisa, nosso interesse foi examinar como o princípio do Iceberg, trabalhado por Hemingway nos contos “The Killers” e “The Snows of Kilimanjaro”, foi adaptado pelos diretores Robert Siodmak e Henry King em suas produções The Killers e The Snows of Kilimanajro, respectivamente. Partimos da hipótese de que o vocabulário restrito, porém cuidadoso, utilizado pelo escritor força o leitor a procurar informações adicionais em outros elementos fundamentais de sua narrativa. Nesse sentido, nossa pesquisa foi composta de duas etapas: primeira, verificar se (e como) os escassos detalhes acerca das personagens poderiam ser complementados pelos itens espaciais organizados por Hemingway nos contos escolhidos para análise; e, segunda, analisar como os diretores trataram a estética do escritor nas adaptações desses contos, levando em consideração a construção da personagem e do espaço em cada uma das narrativas fílmicas.

Inicialmente, foi necessária uma discussão teórica acerca do cinema e suas relações com os conceitos de arte e de cultura de massa (JAMESON, 1992; VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 19994; STAM, 2009; COMPAGNON, 2012; dente outros), do cinema clássico hollywoodiano e os gêneros film noir e melodrama com seus apelos sócio-culturais (AUMONT et al, 1995; SINGER, 2001; XAVIER, 2003; BORDWELL, 2005; NAREMORE, 2008; dentre outros), também acerca do cinema e sua relação com a literatura, enquanto sistemas relacionados. A ligação entre o cinema e a literatura foi estabelecida por meio da Teoria da Tradução, notadamente, dos Estudos Descritivos e a Teoria dos Polissistemas (EVEN-ZOHAR, 1990; TOURY, 1995; CATTRYSSE, 2014; COUTINHO, 2011; dentre outros).

Após compreendermos os fundamentos do cinema hollywoodiano e sua relação com a literatura, fizemos, ainda, uma revisão bibliográfica a respeito do escritor, da sua relação com suas obras e com o público crítico e leitor de sua época. Nosso objetivo foi tentar compreender como autor, indivíduo e obra conseguiram exercer um forte impacto sociocultural no período entre e pós-guerras mundiais (BAKER, 1971; MEYERS, 1999; WILSON, 2005; PRIETO, 2011; GRISSOM, 2012; dentre outros). Após essa discussão, analisamos os contos escolhidos para corpus desta pesquisa.

A análise dos contos “The Killers” e “The Snows of Kilimanajaro” mostrou que ambos obedecem aos critérios formais do princípio do Iceberg e que um estudo mais criterioso de cada texto pode revelar informações antes ocultas pela camada mais superficial do texto. Além disso, identificamos que os heróis, nos contos, seguem o código de honra estabelecido por Hemingway e que os elementos da composição do espaço, habilidosamente organizado pelo escritor, também são importantes na construção das personagens hemingwaynianas.

Com base nas fontes pesquisadas, sugerimos uma ligação existente entre a vida pessoal de Hemingway e suas obras. Conforme mostrado anteriormente, Hemingway não costumava estabelecer limites entre as áreas de sua vida. Isso levava a uma fusão entre vida pública e privada, entre fatos reais e ficcionais, entre obra e vida real. Tudo era parte do mundo de escritor. Graças a essa falta de limites, Hemingway alcançou um prestígio social que tem atravessado décadas. Os contos publicados, logo após a Primeira Guerra Mundial, inspiraram toda uma geração de jovens que adotou o estilo de vida de Hemingway e seus heróis. As informações obtidas a partir da análise dos contos conduziram-nos à última etapa desta pesquisa, ou seja, o estudo das suas respectivas adaptações fílmicas.

Nesse ponto, não podemos deixar de destacar a inestimável contribuição que os trabalhos de Greco (1999), Prieto (2011), Grissom (2012) e Germain (2014) trouxeram para esta pesquisa. Estes são exemplos de autores que se lançaram ao estudo criterioso de aspectos diversos das obras envolvendo Hemingway, sejam literárias e/ou cinematográficas. Graças a esses, e outros autores, foi possível construir uma base teórica consistente para a análise dos objetos escolhidos para compor o corpus desta pesquisa.

As adaptações fílmicas The Killers e The Snows of Kilimanjaro, dirigidas por Robert Siodmak e Henry King, respectivamente, lidaram com os contos de forma distinta. É

possível dizer, em princípio, que a diferença de gênero entre essas produções provocou alguma variação, sobretudo na maneira de trabalhar o princípio do Iceberg.

Em The Killers, Siodmak oferece uma leitura que possa justificar a morte violenta de Anderson no início da narrativa. O fato, que fica apenas subentendido no conto, é fruto de uma conspiração que envolve crime, mentira e sedução. Por se tratar de um filme noir, cujo objetivo central é a solução de um mistério, acreditamos que o diretor tenha conseguido propor um princípio do Iceberg próprio para a produção. As pistas deixadas, propositalmente, nas cenas não somente fornecem informações acerca das personagens, como estimulam o espectador a tentar solucionar o caso em parceria com o investigador. Além disso, consideramos que alguns procedimentos utilizados na narrativa de Siodmak tenham sido utilizados com base em aspectos comuns nas obras de Hemingway, como é o caso da ferida do protagonista, Ole Anderson, e o par antagônico feminino, Lilly e Kitty, presente na narrativa fílmica.

A análise de The Snows of Kilimanjaro mostrou que conto e filme tratam o herói trágico de forma distinta. Não apenas por fazerem parte de sistemas semióticos distintos, o que justifica pontos divergentes entre eles, mas também por apresentarem propostas narrativas diferenciadas para atender a um público específico.

No que concerne especificamente ao filme, observamos que a narrativa altera o fim trágico da personagem para atender aos padrões de produção e de público, afeito à estrutura narrativa hollywoodiana que, normalmente, sugere uma solução para todos os conflitos com final “palatável” para o espectador. No que diz respeito a uma releitura do princípio do Iceberg, percebemos que King preferiu uma narrativa mais detalhada que facilitasse a leitura linear para o espectador. Grande parte da trama é explicada pelo próprio protagonista, que responde a todos os questionamentos do público.

Outro procedimento relevante utilizado na adaptação produzida por King foi a tentativa de aproximar o protagonista, Harry, à figura pública de Hemingway. Conforme comentamos na análise, pode-se conjecturar que a escolha do ator Gregory Peck tenha sido proposital e que a constituição de seu figurino tenha tentado aproximar sua aparência daquela exibida por Hemingway nos vários safáris que realizou na África. Além disso, a clara referência do título do livro lançado por Harry em Paris ao grupo conhecido como the lost generation, aproxima personagem e escritor em uma possível identidade ficcional de Hemingway.