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A adaptação do primogênito no processo de tornar-se um irmão: indicadores

O processo de adaptação do primogênito está intimamente relacionado às interações e relações familiares anteriores (Kendrick & Dunn, 1982). Se estas já se mostram inadequadas antes do nascimento do irmão, o processo pode gerar distúrbios de comportamento no primogênito, bem como efeitos prejudiciais para as interações familiares e para o relacionamento posterior entre os irmãos.

Ao investigarem, através de entrevistas, famílias de primogênitos em idade pré-escolar, desde a gestação até após o nascimento do bebê, Legg e colegas (1974) verificaram que parece não existir um modo de evitar o estresse na vida de uma criança quando da chegada de um irmão. No entanto, o envolvimento nas

atividades de preparação para a chegada do bebê já durante a gestação e para a hospitalização materna, bem como a participação nas tarefas de cuidado após o nascimento do bebê e a preservação das rotinas diárias do primogênito (como arranjos do sono, hábitos de alimentação, entre outros) e da família (Brazelton, 2002; Kramer & Ramsburg, 2002) facilitam o ajustamento e podem minimizar as diferentes reações emocionais do primogênito (Gottlieb & Mendelson, 1990; Legg et al., 1974). A preparação consiste em conversas sobre o crescimento do bebê já durante a gestação, levar a criança a visitas durante a hospitalização, leitura de livros sobre bebê, aproximação do pai nas atividades da criança (Dunn & Kendrick, 1980; Legg et al., 1974). Para esses autores, as crianças tendem a responder mais “negativamente” à chegada de um irmão quando há ausência de explicações sobre as alterações do ambiente familiar. Tornar-se um membro na família não envolve apenas o desenvolvimento de relações com os diferentes indivíduos desta, mas também o entendimento das mudanças das relações afetivas, da compreensão das mudanças de rotinas, de expectativas, de proibições, de papéis familiares, dentre outros aspectos (Dunn & Munn, 1985).

O emprego da fantasia também tem sido relatado como uma possibilidade de o primogênito administrar e elaborar o estresse proveniente do processo de tornar-se irmão (Field & Reite, 1984; Kramer & Gottman, 1992; Kramer & Schaefer-Hernan, 1994; Legg et al., 1974). Durante esse período, o nível de ansiedade pode aumentar e, simultaneamente, a fantasia também aumenta. Assim, o seu uso repetido permite que a criança libere de maneira segura sentimentos inaceitáveis sobre o irmão (Legg et al., 1974). De acordo com Field e Reite (1984), crianças que se tornam irmãos têm mostrado um aumento nos níveis de espontaneidade na brincadeira fantasiosa quando interagem com seus pais.

Por outro lado, Kramer e Schaefer-Hernan (1994), ao investigarem 30 primogênitos, longitudinalmente, desde o terceiro trimestre de gestação do primeiro irmão até os 14 meses de vida deste, verificaram que crianças muito preocupadas com as mudanças nas relações familiares pareceram ser mais suscetíveis a suspender o uso da fantasia e a ter um emprego mais limitado e restrito desta. Ainda assim, para os autores, o declínio da fantasia não é necessariamente algo disfuncional, uma vez que o seu baixo nível não foi preditor “negativo” para a aceitabilidade do irmão. Tal fato contrariou estudo anterior, que investigou 30 famílias com primogênitos em idade pré-escolar e seu melhor amigo da mesma faixa etária, antes e depois do nascimento do irmão (Kramer &

Gottman, 1002). Esse estudo teve como objetivo avaliar a qualidade da brincadeira entre pares, o engajamento na brincadeira fantasiosa, a administração de conflito e a reciprocidade na escolha do melhor amigo. Através de entrevistas com a mãe, os dados revelaram a importância e o benefício das relações de amizade do primogênito. Isso porque estas relações favorecem a adaptação ao processo de tornar-se irmão, a interação “positiva” com o bebê, o aumento da auto-estima, a segurança emocional, da intimidade, bem como a afeição na relação com a mãe e com o melhor amigo.

Como pôde ser visto, não somente o nascimento de uma segunda criança exige redefinições de papéis na família, mas também o curso do próprio desenvolvimento infantil possui impacto sobre os demais membros do sistema familiar (Kreppner et al., 1982). A chegada de uma segunda criança pode ser também fonte potencial de benefícios tanto para as relações familiares, que passam de uma organização triádica para poliádica, como para as mudanças de desenvolvimento cognitivo e socioemocional do primogênito (Dessen, 1997). Os aspectos favoráveis do processo de adaptação familiar estão intimamente relacionados ao próprio ritmo de desenvolvimento rumo à independência da criança e ao modo como as famílias se organizam para a chegada de um novo membro. Além disso, as crenças, as expectativas e as percepções a respeito das consequências para o sistema familiar como um todo, especialmente para o filho mais velho, também estão associados à nova organização familiar. Na tentativa de adaptação ao longo do processo de transição de uma família de filho único para uma família de dois filhos, as modificações já aparecem durante o período gestacional.

No que se refere às relações familiares, há consenso na literatura científica de que ocorrem mudanças e alterações em diferentes subsistemas e em vários aspectos das relações, na relação pai-mãe-filho mais velho, na relação conjugal, na relação mãe-primogênito, pai-primogênito, entre outros. De modo geral, os estudos apontam alterações expressivas de comportamento, tanto da mãe quanto do primogênito, e particularidades em sua relação, quando da chegada de uma nova criança, enfatizando, especialmente, as dificuldades no cuidado com o primogênito. É fato que há alterações importantes nessa relação, contudo qualificá-las como “negativas” não considerando essas alterações em termos de um processo evolutivo tanto da mãe quanto do primogênito parece não ser consistente. Além disso, na grande maioria das vezes, também não consideram de

modo expressivo o ponto de vista paterno como importante nesse contexto. Os achados das pesquisas também são contraditórios, sobretudo no que diz respeito à regressão e ao crescimento do primogênito. Percebe-se uma tendência nos estudos que referem alterações de comportamento do primogênito a qualificá- las como “positivas” ou “negativas”. A literatura considera a independência como sinal de crescimento e de mudanças “positivas”, desqualificando comportamentos mais regressivos, de dependência. Questiona-se, assim, o ponto de vista dos autores que consideram tanto a regressão e a dependência como algo “negativo” ou que reflita “níveis de ajustamento prejudicado” do primogênito, quanto ao crescimento e à independência como “positivo” que indique “sinais de maturidade”.

Para tanto, no presente trabalho, será entendida como regressão toda e qualquer possibilidade de retornar a algum ponto do desenvolvimento que já foi conquistado (Winnicott, 1979/1983). Do ponto de vista emocional, as regressões são inteiramente saudáveis, transitórias e reversíveis, e constituem respostas úteis à tensão de um determinado momento (Spitz, 2000). Especificamente no processo de tornar-se irmão, a regressão do primogênito pode constituir-se em uma necessidade ou a própria busca por um desenvolvimento emocional rumo à independência, sugerindo sensibilidade às mudanças no contexto familiar, sobretudo na relação com seus cuidadores, podendo não ser uma resposta negativa.

Assim, por ser ainda muito dependente das figuras parentais e vulnerável aos conflitos, a regressão em primogênitos em idade pré-escolar pode revelar intensa mobilização afetiva. Em decorrência da confiança e da segurança do ambiente familiar, provavelmente, abaladas pelo processo de tornar-se irmão, as fantasias de abandono e de ameaça da confiabilidade do ambiente familiar tornam-se visíveis. Para Trause e Irvin (1992), frente a qualquer evento estressor, como o nascimento de um irmão, a segurança de qualquer criança pode vacilar, tornando fundamental o apoio e o cuidado parental. Nesse mesmo sentido, Kramer e Ramsburg (2002) apontam que é esperado algum comportamento regressivo ou dependente do primogênito quando da chegada de um irmão. Ao realizarem uma revisão da literatura popular e de artigos científicos publicados entre o período de 1975 e 2000, os autores apontaram que estes comportamentos podem ocorrer dado que são vistos pela criança como lembrança de cuidados

fornecidos pelos genitores, sendo utilizados como estratégia para resgatar suas atenções.

A capacidade de ir e vir e de regredir a qualquer momento em que o processo de amadurecimento ou rumo à independência exigir faz parte da conquista do desenvolvimento (Dias, 2003; Lopes et al., 2009; Ribas et al., 2008; Winnicott, 1960/1986; Winnicott, 1965/1977). As oscilações entre regressão e crescimento são dois movimentos possíveis da criança e são constitutivos do processo de amadurecimento sendo, portanto inteiramente saudáveis, caracterizando-se como uma conquista do desenvolvimento, a qual só pode ser alcançada uma após a outra (Dias, 2003). Através dessas conquistas de desenvolvimento, frente a situações ansiogênicas, há a possibilidade de encontrar soluções em um melhor nível de amadurecimento (Cunha & Nunes, 1993). No contexto de chegada de um irmão, o crescimento pode revelar então uma pseudomaturidade, como forma de defesa frente às situações estressantes e alterações em suas relações afetivas, provavelmente estimulados pelos genitores como tentativa de administrar e se adaptar às novas demandas. Mas também pode indicar uma conquista do amadurecimento, no processo de ir e vir saudável (Dias, 2003).

A possibilidade de regredir em algum momento precisa ser acolhida, de tal modo que a criança possa usufruir dessa oscilação (Dias, 2003; Winnicott, 1965/1977). No presente estudo, há acolhimento materno e/ou paterno quando houver compreensão e tolerância à regressão e/ou ao crescimento do primogênito. Os genitores, nesse caso, devem reconhecer e atender às demandas regressivas e/ou de crescimento do filho, bem como devem apresentar ajuda, auxilio e/ou respeito aos comportamentos do filho, ou ainda podem se identificar com eles. O acolhimento do pai e da mãe tanto à regressão quanto ao crescimento constitui um dos grandes desafios. A possibilidade de tornar-se disponível emocionalmente estaria associada à capacidade de os pais não se sentirem esvaziados em sua vida pessoal no momento em que se dedicam à tarefa de cuidar de dois filhos.

Caso contrário, se não houver acolhimento materno e/ou paterno do ir e vir do filho, o retraimento pode se instalar (Dias, 2003; Winnicott, 1965/1977). O não acolhimento é considerado quando não houver tolerância, compreensão e respeito parental à regressão e ao crescimento do filho.

Por outro lado, a capacidade de ir e vir é uma conquista do amadurecimento e também depende de uma facilitação do ambiente (Dias, 2003).

O desafio imposto pelas mudanças decorrentes de períodos de transição, como o nascimento de uma segunda criança, pode servir também de impulso para mudanças e para o amadurecimento emocional de cada um de seus membros familiares (Dessen, 1994; Kowaleski-Jones & Dunifon, 2004). No presente estudo, será considerada intervenção materna e/ou paterna quando houver algum estímulo ou incentivo para a mudança ou manutenção de qualquer dos indicadores de regressão e/ou de crescimento do primogênito. As reações parentais de imposição, de repreensão ou ainda de não negociação também serão consideradas sob esse ponto de vista.

Ainda que uma variedade de estudos e temáticas tenha sido realizada no campo científico, observa-se que não se esgotou o assunto. São necessárias novas pesquisas que possam contribuir para o entendimento das repercussões do nascimento do segundo filho para a família como um todo, para os diferentes subsistemas familiares e para cada um de seus membros. Observou-se que os estudos contemplam, de modo geral, as percepções parentais sobre o impacto do nascimento do segundo filho para o primogênito, e poucos abarcam a perspectiva da criança. Tal fato pode indicar um viés nos resultados, uma vez que a descrição dos comportamentos do primogênito é feita, em grande parte das pesquisas, somente pelas mães (Dunn et al., 1981). As expectativas parentais sobre o primogênito tendem a ser mais negativas do que realmente é observado após o nascimento do bebê (Gullicks & Crase, 1992). Assim, conhecer também o ponto de vista materno e paterno sobre as implicações e os mecanismos responsáveis pelas mudanças psicológicas do primogênito pode contribuir para uma maior compreensão desse contexto de chegada de uma segunda criança na família e suas implicações para o desenvolvimento emocional do primogênito.

Nesse sentido, o presente trabalho buscou examinar os indicadores de regressão e de crescimento do primogênito ao longo do processo de tornar-se irmão. Para tanto, foram investigados tanto o ponto de vista do primogênito quanto da mãe e do pai, longitudinalmente, da gestação até os dois anos de vida do segundo filho.