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2 A TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA

2.2 A ADAPTAÇÃO PARA O CINEMA DE O QUATRILHO

A criação de roteiros adaptados, conforme afirmado, é facilitada pela própria característica de alguns romances que servem como hipotexto. Os romances que se tornam mais aptos a serem adaptados são aqueles que trazem características que podem ser traduzidas com mais facilidade para a ação narrativa fílmica, expressas de outro modo. Segundo Campos (2007), a narrativa dramática tem alguns elementos que a caracterizam. O principal deles é a incidência de um problema, o que os norte-americanos chamarão de um “ponto de ataque”: “o ponto, o momento em que a ação dramática principal é deflagrada e, com ela, a narrativa dramática. Por isso, alguns roteiristas chamam problema dramático de ‘incidente dramático’” (CAMPOS, 2007, p. 118).

Quando se pensa a adaptação para o cinema de O Quatrilho, por exemplo, o ponto de ataque é a fuga de Mássimo com Teresa. Porém, para além desse elemento da narrativa que facilita a adaptação, há ainda outros elementos. Um deles é a presença de marcações visuais no romance que puderam ser reproduzidas no roteiro adaptado, conforme citado no depoimento do autor José Clemente Pozenato, na 12ª edição do romance, publicada em comemoração ao lançamento do filme homônimo (nessa edição, há comentários dos atores, diretor, produtores do filme e o autor do livro, os quais são citados nas primeiras páginas da obra):

[...] ao escrever o romance eu elaborei algumas sequências imaginando as cenas de um ponto de vista cinematográfico, com um ângulo cinematográfico, uma tomada de câmera por trás, enfim, todos esses movimentos de câmera estão latentes na maneira de estruturar a narrativa (POZENATO, 1996, p. 6).

Na entrevista35, realizada para esta tese, Pozenato afirmou que, em sua juventude, havia o hábito de frequentar cineclubes, nos quais se discutiam diferentes aspectos da composição fílmica. Por isso, segundo ele, a linguagem cinematográfica lhe é próxima; influência que aparece retratada em sua escrita. O impacto do cinema, enquanto linguagem sobre a escrita de romancistas do século XX e XXI, conforme já pesquisado, não é exclusividade desse autor e será percebida com ainda mais força em autores que têm suas obras frequentemente adaptadas ao cinema e à televisão, tais como o brasileiro Luiz Fernando Veríssimo36, o norte-americano Stephen King e o inglês George R. R. Martin.

A fala de Pozenato parece confirmar o ponto de vista apresentado por Vieira (2007b) no que tange ao impacto que as mídias têm sobre os autores da atualidade. “Ao analisarmos em profundidade a moderna produção literária contemporânea, verificamos o emprego cada vez maior de novas formas de visualidade, advindas, sobretudo, do papel preponderante que a imagem assume em nossa cultura” (p. 19). Não se trata somente de cinema. Pode-se pensar o quão intensa é a interação diária de cada pessoa em um ambiente urbano em que muitas informações chegam por meio de imagens “artificiais”: televisão, outdoors, mídias sociais, revistas e jornais cada vez mais fotográficos do que textuais. Viagens turísticas geram álbuns de fotografias instantâneos, compartilhados com o mundo por meio das mídias sociais. Não há mais a distância de interação ou qualquer dificuldade em ter sua imagem publicada. “No âmbito artístico, torna-se hoje inviável pensarmos a obra literária fora das relações que ela estabelece com as linguagens da mídia, em especial a cinematográfica” (VIEIRA, 2007b, p. 19).

Para o autor, a comunicação pela mídia está em tudo, é uma “(oni)presença” (VIEIRA, 2007b, p. 19), o cotidiano vira signo midiático: “a percepção do mundo, bem como suas representações, vêm sendo alteradas com base em uma lógica cultural urbana que enfatiza os processos comunicacionais como mediação entre o olhar do homem e a realidade” (p. 19). A realidade do indivíduo é, atualmente, tão permeada por imagens que, por vezes, esse se preocupa mais em retratar o momento que vive do que em viver esse instante em si; vide o sucesso das chamadas fotos selfies ao redor do mundo. Parte de um contexto social, o escritor é também integrante de tal realidade. Convive com a confusão que se dá na vida cotidiana entre

35 A primeira entrevista realizada pela autora com José Clemente Pozenato deu-se em setembro de 2014, em Caxias

do Sul (RS). A segunda entrevista foi realizada em agosto de 2016.

36 De Luiz Fernando Veríssimo, foi adaptado para televisão, entre outras, a obra Comédias da vida privada. De

Stephen King, tornaram-se filmes obras como Shining (O iluminado), Shawshank Redemption (Um sonho de

o virtual e o real. Por vezes, o indivíduo afirma conhecer uma realidade ou um local, apenas porque a visualizou nas mídias, mas sem nunca ter estado em tal lugar.

A linguagem cinematográfica influenciou José Clemente Pozenato quando escreveu O

Quatrilho, porque também o autor teve a intenção de realizar um romance que fosse uma opção

de interesse do leitor da atualidade. Ele não escreveu o romance influenciado pela linguagem cinematográfica, por pensar que a obra poderia se tornar um filme, mas, sim, porque procurava uma linguagem que aproximasse a obra do público dos dias atuais. “É uma maneira de capturar o leitor para ele continuar na narrativa. Tem cenas que eu estava escrevendo e estava imaginando uma cena cinematográfica” (POZENATO, 2014). Em sua fala, o autor demonstra ainda concordar com a influência da linguagem cinematográfica nos romances da atualidade de um modo geral: “o cinema modificou a estrutura narrativa do romance” (POZENATO, 2014). Por vezes, o romance O Quatrilho traz passagens que se assemelham à montagem de uma narrativa cinematográfica. Pozenato (2014) explica, por exemplo, que, em seu processo criativo, identificou cada um dos protagonistas da trama com um elemento visual. Tais elementos estão presentes nas cenas em que os personagens passam por momentos muito marcantes. Para Ângelo Gardone, por exemplo, a referência para celebrar situações de sucesso é a imagem do charuto. Ele fuma ou ganha charutos nos momentos mais importantes de sua trajetória. Segundo Pozenato, essa personagem percebe, nos charutos, um símbolo de sucesso. O primeiro charuto vem do dono da mercearia, chamado Stchopa, quando esses se tornam sócios. Depois, ele ganhará também um charuto do negociante Batiston, de quem emprestará o dinheiro que lhe permite iniciar os negócios do moinho. Os charutos são guardados por Ângelo como objetos que devem ser consumidos em momentos especiais, quando nota que realizou uma passagem de sucesso. O roteiro adaptado mantém essa imagem bem presente, mostrando Ângelo recebendo um charuto de Stchopa, ao fechar o seu primeiro negócio de sucesso, e também quando vê Batiston fumar charutos, oferecendo-lhe um no momento em que liquida, integralmente e antes do prazo, o empréstimo que fizera para comprar as terras em que constrói o moinho.

Já a personagem de Teresa tem como imagem forte, para Pozenato, o elemento da água. Assim, ela estará sempre perto da água, quando acontecem fatos que o autor considerou os mais marcantes para sua trajetória. No romance, Teresa está perto da água no primeiro dia de seu casamento com Ângelo, quando sai para passear com o marido após a noite de núpcias, e quando começa a perceber que ambos são bastante discordantes, quanto ao modo de enfrentar a vida. A água está também presente no passeio ao rio, quando ela e Mássimo conseguem ficar sozinhos, pela primeira vez, como amantes, logo após o almoço de Natal na casa dos dois casais.

Para se refrescarem, organizam um passeio até o veio de água mais próximo. Ali, os dois ficam juntos pela primeira vez, e esse é um momento determinante da narrativa, pois desencadeia a sequência de ações que vai levar à fuga de Mássimo e Teresa. No roteiro adaptado, essas duas cenas são aproveitadas e, ambas, trazem no texto didascálico, na indicação de cenário, a necessidade de que houvesse um rio.

Interessante notar que a utilização dessas imagens, escolhidas intencionalmente pelo autor do romance, para marcar a característica de cada uma das personagens, será também aproveitada no roteiro adaptado. Outros elementos que foram quase absolutamente mantidos entre o romance e o roteiro adaptado é o pano de fundo histórico que será abordado no próximo capítulo.

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