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1 O ROTEIRO COMO LITERATURA

1.1 PARTICULARIDADES DO TEXTO CINEMATOGRÁFICO

Para Zanjani (2006), enquanto texto escrito, o argumento cinematográfico é caracterizado pela descrição e demonstração indireta: “ele apresenta o seu conteúdo por referências simbólicas, mais precisamente, por palavras; se está frio ou quente, se os pássaros estão cantando ou os cães estão latindo, é pelas palavras que nós os conhecemos” (2006, p. 114, tradução nossa15). Segundo Zanjani (2006), romances contam histórias por meio de palavras e

15 It presents its contents through symbolic references, more precisely through words; if it is cold or warm, if the

os roteiros de cinema são histórias contadas em imagens. Porém, tal ideia, de que o roteiro cinematográfico traga mais imagens no leitor do que o texto de romance, possui contrapontos, conforme já citado. Pode-se argumentar, por exemplo, que despertar imagens no leitor seria um processo, e contar por meio de imagens seria outro processo, uma técnica com a qual alguns autores são mais aptos.

Umberto Eco (2016) compreende que o cinema e a literatura aproximam-se por serem artes da ação. O autor observa a ação como sendo aquela forma colocada por Aristóteles na obra Poética: “uma relação estabelecida entre uma série de eventos, um desenvolvimento de acontecimentos reduzido à estrutura de base” (p. 190-191). Assim sendo, o texto do roteiro terá influência desse elemento de aproximação dos dois gêneros artísticos. “O fato que no romance essa ação seja ‘contada’ e no cinema seja ‘representada’ [...] não elimina o fato de que, em ambos os casos, uma ação é estruturada (ainda que com meios diferentes)” (p. 191). De fato, o roteiro de cinema obedece aos mesmos elementos da literatura para estruturação de uma história – personagens, cenário, narrador, foco narrativo, todos são elementos necessários para a criação de um roteiro, assim como para a criação de um romance. No entanto, o roteiro, ao ser escrito, terá sempre presente a alteridade de um dia tornar-se filme e, por isso, levará em conta as particularidades técnicas desse outro gênero artístico, o cinema.

Segundo Vieira (2007a), o texto do romance, assim como o do roteiro cinematográfico, apresenta estrutura de diálogos e passagens de narração. Enquanto o romance traz parágrafos, o roteiro mostra cada unidade textual identificada por um número ou por um título em negrito. O diálogo é um dos elementos que ganha maior destaque no roteiro de cinema. “[...] normalmente utilizando o discurso direto e, esporadicamente, o discurso relatado ou resumido. As personagens, como no teatro, são autônomas. O discurso do narrador é normalmente introduzido sob forma de passagens de narração/descrição” (VIEIRA, 2007a, p. 58). Nessas descrições dos roteiros estão presentes, normalmente, a apresentação de cenários, ação, objetivos, bem como indicações de movimentos de câmera.

Nota-se que o texto do roteiro é marcado pela presença de duas camadas textuais, sendo essas as didascálias e os diálogos. As primeiras são compreendidas pelas indicações cênicas, instruções dadas pelo autor aos atores, nomes de lugares, personagens, informações sobre plano de câmera, etc. O texto do diálogo, por sua vez, traz o que são as intervenções sonoras do filme, os diálogos, as vozes em off, a música. Conforme Vieira (2007a), alguns roteiros chegam a dividir o texto didascálico dos diálogos em duas colunas. Esse não é o caso dos roteiros estudados da obra O Quatrilho. Nos dois roteiros a que se teve acesso, o texto didascálico e o texto dos diálogos são intercalados em uma escrita de folha inteira (Figura 1).

Figura 1 - Comparação entre as páginas da mesma cena, escritas no roteiro de Antonio Calmon (1a) e no roteiro de Leopoldo Serran (1b) para O Quatrilho.

1a - Roteiro de Antonio Calmon datilografado com anotações feitas a mão por José Clemente Pozenato. Nesta página, cena do Natal na casa das famílias Gardone e Boschini (sequência 75).

1b - Roteiro de Leopoldo Serran datilografado com anotações feitas a mão por José Clemente Pozenato. Nesta página, cena do Natal na casa das famílias Gardone e Boschini (sequência 75).

Nos roteiros de O Quatrilho, o leitor encontrará o narrador em presença bem mais discreta do que no romance (Quadro 1). Vieira (2007a) confere uma descrição que parece ser adequada à leitura do texto didascálico dos roteiros de O Quatrilho. O narrador, nesses textos, convida o leitor a participar da cena descrita:

“[...] reduzindo-se a distância entre as duas instâncias com a presença ativa do leitor no processo de enunciação/produção da diegese textual. Sem a presença explícita e confortante de um narrador onipresente que, pela mão, guia o leitor através dos meandros da narrativa, cria-se uma nova forma de escritura que joga o leitor diretamente na corrente dos fatos” (p. 61).

A comparação entre a sensação de se ler uma passagem de romance, com a figura onipresente do narrador, com a da leitura de uma cena, em formato de roteiro de cinema, pode ser visualizada com mais facilidade quando se observa a mesma cena descrita em um romance e em um roteiro adaptado a partir deste. No Quadro 1, faz-se a comparação entre o romance O

Quatrilho e o roteiro de Antonio Calmon para a cena da montagem da Festa de Natal das

famílias Gardone e Boschini, na propriedade que os dois casais dividiam antes da fuga de Mássimo e Teresa.

Quadro 1 - Comparação entre o romance e o roteiro adaptado por Antonio Calmon no almoço de Natal dos casais. (continua)

POZENATO, 2008, p. 176 CALMON, [199-], sequência 73 A sesta fora prolongada. Tomavam, agora,

o café da tarde, com doces e torta, que era como se devia fazer no Natal. Comiam sem vontade, porque o leitão assado da Pierina não deixava ainda ninguém sentir fome. Além do mais, a tarde estava abafada, insuportável. Assim mesmo, Mássimo sentia-se de bom humor. Não tinha ido, também ele, para a reza do terço, na capela, de manhã? E não era a festa que o fazia assim. Há dois ou três dias, já, nada conseguia aborrecer. Nem mesmo a mania de negócios do Ângelo. Foi nesse estado de ânimo que falou.

- No rio deve estar bem mais fresco. A gente podia ir molhar os pés. Tenho ainda que ver um negócio, hoje de tarde – esquivou-se. Ângelo, sem deixar de mastigar.

Mássimo teve certeza do que todos pensaram: “Até no dia do Natal?” Como teve certeza, também, de que ninguém diria nada

O leitão já destrinchado e meio consumido sobre a mesa. Pierina, Ângelo, Mássimo e Teresa, com suas melhores roupas, estão comendo o almoço de Natal. As crianças, também arrumadas e imaculadas, comem em silêncio. Ângelo, num arroubo, pega seu copo e o levanta no ar.

ÂNGELO

Vocês sabem que eu nunca bebo. Mas esse é o primeiro Natal que passamos aqui em San Giusepe. E graças a Deus podemos festejar. Temos com quê. E principalmente temos bons motivos para uma festa como essa. Saúde! PIERINA

(SORRI SATISFEITA E CORRESPONDE AO BRINDE) Saúde!

TERESA

(NÃO DIZ NADA, MAS SORRI E LEVANTA SEU COPO)

Quadro 1 - Comparação entre o romance e o roteiro adaptado por Antonio Calmon no almoço de Natal dos casais.

(continuação) POZENATO, 2008, p. 176 CALMON, [199-], sequência 73

em protesto. Era assim que se mantinha a paz da casa. Pierina aproveitou para dizer que também não ia, não queria levar o bebê para o meio do mato.

- Muito bem – conformou-se Mássimo. – Terminou o passeio.

- Mas a Teresa pode ir – disse a Pierina. – Deixa as crianças comigo. Ficaste com elas ontem.

O espírito generoso do Natal estava realmente solto, constatou Mássimo, sentindo- se excitado com a situação que se criava. Teresa é que permanecia muda, na certa perturbada. Foi preciso que Pierina insistisse: - Tu não queres ir?

- Está bom – concedeu ela. – Faço companhia.

ÂNGELO

(OLHANDO MÁSSIMO, QUE NÃO SE MOVEU) E você, Mássimo?

MÁSSIMO

(ESTAVA PERDIDO EM SEUS

PENSAMENTOS) Eu? (PERCEBE) Ah, saúde!

(E BEBE COM OS OUTROS)

ÂNGELO

(ESGOTADO SEU ARROUBO, VOLTA A COMER EM SILÊNCIO)

PIERINA

(LEVANTA-SE PARA IR BUSCAR O CAFÉ)

MÁSSIMO

(JÁ PAROU DE COMER. OLHA TERESA, QUE TAMBÉM COME). Como faz calor!

TERESA

(OLHA PARA ELE E SORRI) É verdade. MÁSSIMO

No rio deve estar bem mais fresco. Depois da sesta a gente podia ir molhar os pés. Que tal, Ângelo?

Quadro 1- Comparação entre o romance e o roteiro adaptado por Antonio Calmon no almoço de Natal dos casais.

(continuação) POZENATO, 2008, p. 176 CALMON, [199-], sequência 73

ÂNGELO

(SEM DEIXAR DE MASTIGAR) Tenho ainda que ver um negócio, hoje de tarde.

TERESA

(NÃO SE CONTÉM) Até no dia do Natal?

ÂNGELO

(DÁ DE OMBROS E NÃO RESPONDE) PIERINA

(VOLTA COM O CAFÉ) Eu também não vou. Não quero levar o bebê para o meio do mato.

MÁSSIMO

(COM UM GESTO DE QUEM SE CONFORMA) Muito bem. Terminou o passeio.

PIERINA

(FICA UM SILÊNCIO. ELA PERCEBE A FRUSTRAÇÃO DO MARIDO) Mas a Teresa pode ir. (PARA TERESA) Deixa as crianças comigo. Ficaste com elas o dia todo.

TERESA

Quadro 1- Comparação entre o romance e o roteiro adaptado por Antonio Calmon no almoço de Natal dos casais.

(continuação)

Fonte: Miranda (2018).

A comparação demonstrada no Quadro 1 permite exemplificar alguns pontos já citados até o presente momento. O narrador no romance é onipresente e guia o leitor por meio das ações desenvolvidas pelos quatro protagonistas durante os momentos do almoço de Natal. O diálogo se coloca de modo complementar àquelas ações já relatadas pelo narrador. No roteiro cinematográfico, a mesma cena dá ao leitor uma percepção bastante diferente da ação. A narrativa impessoal do roteiro fala, de certo modo, com um destinatário heterodiegético16. O leitor é jogado diretamente na corrente dos fatos, observando a ação que se constrói por meio dos diálogos entre as personagens. A intenção das personagens aparece de modo mais explícito, uma vez que, na ausência de um narrador que conte os pensamentos desses protagonistas, tem- se as falas deles intencionando os momentos que virão a seguir na trama. O texto didascálico aparece no roteiro de O Quatrilho em letras maiúsculas que indicam a personagem a qual pertence cada fala, mas também a ação que aquela personagem realiza naquele momento. Usando caixa alta e caixa baixa, a sequência é iniciada por uma descrição do ambiente em que esses personagens se encontram e do estado de espírito do mais importante deles para essa cena, a personagem Mássimo. Por meio do ponto de vista dele, a situação é contada.

Mesmo com as diferenças presentes no texto do roteiro, as referências simbólicas presentes no roteiro são aparatos técnicos e, não necessariamente, tornam esse tipo de texto mais alusivo a imagens do que os romances. Aprofundando esse argumento, já mencionado anteriormente, Vieira (2005) explica que a forma de escrita do roteiro não é propriamente a de um texto que remete a imagens:

16 Conforme Reis e Lopes (1988), a diegese pode ser entendida como o universo espaço-temporal no qual se desenrola a história. O “narrador heterodiegético” designa aquele que relata uma história à qual é estranho sem integrar coma personagem aquela diegese.

POZENATO, 2008, p. 176 CALMON, [199-], sequência 73 PIERINA

(INSISTINDO) Tu não queres ir?

TERESA

Ao contrário do que hodiernamente se afirma, um roteiro, no entanto, não é apenas um texto escrito em imagens, nem tampouco é visual sua escritura. Trata-se, antes, de um texto que sugere, descreve e prevê o efeito antecipado, valendo-se, para tanto, de elementos de narrativa, estética, funcional e dramática, sem que isso, no entanto, faça dele um ‘texto visual’ [...] É justamente através da noção de narrativa que podemos aproximar filme, roteiro e romance no emaranhado e espinhoso contexto das relações entre palavra e imagem (2005, p. 33).

Não seria, então, na evocação de imagens, mas, sim, no fundamento da narrativa ou no da ação (ECO, 2016) das personagens, que estaria a aproximação entre roteiro e romance. A diferença entre eles também não é o fato de o roteiro ser um texto mais pleno de imagens. A diferença está na forma narrativa, na presença de elementos, como os textos didascálicos, suscitando peculiaridades do texto cinematográfico. Enquanto, no romance, a ansiedade da personagem Teresa, em relação ao seu encontro amoroso, será contada pela voz do narrador: “Teresa é que permanecia muda, na certa perturbada” (POZENATO, 2008, p. 176); no roteiro de Antonio Calmon ([199-]), basta um trecho didascálico discreto utilizado pelo autor: “TERESA (NÃO SE ATREVE A RESPONDER)” (CALMON, [199-], sequência 73). Em ambos os trechos, , é o sentimento de Teresa que está exposto, e não há um trecho mais visual do que outro. A ação narrada é a mesma, o modo como será outorgada ao leitor a possibilidade de interagir com essa ação é que é diferenciado.

A questão da visualidade do argumento cinematográfico seria, portanto, uma espécie de “clichê” atribuído a essa modalidade de texto e suscetível a discussões. Viswanathan (1986) observa que, apesar de muitos dos autores de manuais de roteiros defenderem que esses são textos “visuais” e que deveriam evocar imagens com mais facilidade do que outros tipos de textos, uma análise sobre os roteiros cinematográficos mostra que esse tipo de afirmação não condiz com a realidade. Os roteiros de cinema seriam textos com particularidades, mas não textos com maior visualidade. Nem por isso, deixam de ser textos com interesse para o leitor comum, que não trata do leitor técnico, o qual deve transformar tal texto em filme. É um texto acessível para o leitor comum: “[...] certos roteiros estão longe de serem desprovidos de interesse além da função prática que eles propõem, mais que uma descrição precisa, detalhada e evocativa, uma leitura do significado essencial da imagem para o espectador” (VISWANATHAN, 1986, p. 72, tradução nossa17). Entre as características particulares do argumento cinematográfico estaria aquela, segundo também destaca Viswanathan (1986), o de ser um texto pleno de indicativos para o filme. Não substitui o filme, mas é dele um antecessor e um texto com atrativos próprios.

17 [...] certains scénarios sont loin d'être dépourvus d'intérêt au-delà de leur fonction pratique car ils proposent,

plutôt qu'une description précise, détaillée et évocatrice, une lecture de la signification essentielle de l'image pour le spectateur.

O roteiro apresenta a ação de modo organizado. Em função da sua tensão em tornar-se filme, são feitas as divisões do texto em sequências e planos indicados por números, incluindo a lista de personagens de cada cena, assim como é feito nos textos de peças teatrais. Também fazem parte do hall dos textos didascálicos as diretivas para as filmagens, indicando movimentos de câmera, descrevendo cenários, orientando os técnicos. “Desse ponto de vista, nós podemos compará-lo com outros textos práticos como as receitas de culinária” (VISWANATHAN, 1986, p. 73, tradução nossa18). A linguagem utilizada terá peculiaridades características da prática do roteiro, tais como o uso frequente do infinitivo, um estilo neutro de escrita, a escassez de metáforas. Não é verdade, no entanto, que um roteiro de cinema não possa trazer os aspectos profundos das personagens, suas nuances psicológicas e impressões de mundo. Analisando o trabalho do diretor cinematográfico e roteirista Michelangelo Antonioni, Viswanathan (1986) explicita, no roteirista, a capacidade de criar textos com qualidades literárias fortes:

Como o romancista, o roteirista tem o poder de investigar as mentes de seus personagens. Para os filmes psicológicos, como aqueles de Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman, o roteiro fornece uma análise bastante rica da interioridade dos protagonistas, por meio de técnicas narrativas que são as mesmas daquelas do romance (p. 75, tradução nossa19).

Viswanathan (1986) expõe que o roteiro do filme não é um equivalente do filme em si. O primeiro traz a significante desejada pelo autor do roteiro. O segundo, uma decodificação desta por meio de outro artista, o diretor, o qual terá sua visão acerca do que está descrito no argumento cinematográfico. “Quem lê a descrição do roteiro muito dificilmente poderá visualizar o plano ou a sequência da qual ele trata [...] se ele não viu o filme” (p. 81, tradução nossa20). Lembra-se, dessa forma, que a criação do filme passará sempre por uma interpretação do que o roteiro apresenta, implicando um novo processo criativo e, portanto, um texto autônomo. A propensão não determina que o roteiro é, de fato, um equivalente ou uma forma de espelho do filme. O roteiro é uma obra em si, pois emana também as qualidades próprias de sua composição, enquanto o filme contará com outros recursos.

Os profissionais do campo explicam como os roteiros publicados pelo mercado editorial são, normalmente, limpos de alguns dos termos técnicos utilizados pela equipe de filmagem e

18 De ce point de vue, on peut les comparer avec d'autres textes pratiques comme les recettes de cuisine.

19 Comme le romancier, le scénariste a le pouvoir de sonder les âmes de ses personnages. Pour les films

"psychologiques" comme ceux de MichelÂngelo Antonioni ou Ingmar Bergman, le scénario fournit une analyse assez riche de la vie intérieure des protagonistes, par des techniques narratives qui sont le mêmes que celles du roman.

20 Qui lit un descriptif de scénario pourra bien difficilement visualiser le plan ou la séquence dont il s'agit s'il n'a

das indicações mais cabíveis à equipe da produção cinematográfica, mas, mesmo assim, mantêm a estrutura em comum com aquele texto usado pela equipe técnica. Segundo Viswanathan (1993), essa “metalinguagem técnica” seria o foco do roteiro cinematográfico:

O roteiro torna-se, então, eminentemente legível e, por consequência, mais próximo da construção de outros textos de ficção, como o romance. Mas, sobretudo, para convocar os patrocinadores, ele evoca o efeito do filme sobre um espectador fictício que compreende tudo e reage de acordo com as intenções que o autor, o produtor ou a produtora querem, na verdade, mirar sobre as reações do público (1993, p. 16, tradução nossa21).

É possível que o autor de um argumento não atinja todos os resultados desejados, segundo Viswanathan (1993), porém, o objetivo de alcançá-los marcará o trabalho desse autor e será presente para o leitor. O roteiro cinematográfico será sempre um momento anterior ao filme, e o texto ali presente será traduzido novamente quando se tornar filme. Caso seja um roteiro adaptado, por exemplo, o leitor organizará sua percepção acerca do dele a partir de seu contato ou não com o romance que originou a adaptação. Caso o roteiro cinematográfico seja o primeiro contato desse leitor com a história, será lido de outro modo.

Pasolini (1982), ao explicitar a especificidade do texto do argumento cinematográfico, oferece dois caminhos para o leitor percorrer, ao mesmo tempo, na leitura de um texto com essa especificidade:

[...] aludir ao significado por duas vias diferentes concomitantes e convergentes. Ou seja: o signo do argumento alude ao significado segundo a via normal de todas as línguas escritas e especificamente das gírias literárias, mas, ao mesmo tempo, alude ao mesmo significado, remetendo o destinatário para um outro significado, ao significado do filme a fazer. O nosso cérebro, diante de um signo de argumento, percorre sempre ao mesmo tempo, estes dois caminhos – um deles rápido e normal, o outro longo e particular – na sua apreensão do significado (p. 154).

É preciso que o leitor faça um esforço no sentido de “emprestar ao texto um acabamento ‘visual’ que ele não possui, mas ao qual alude” (PASOLINI, 1982, p. 154). Nesse sentido, não se daria de fato a ideia de que textos de roteiro proporcionam mais imagens aos leitores do que textos de romance, mas sim que os argumentos cinematográficos têm uma técnica própria, remetendo o leitor a ideia de que virão a se tornar filme, em um acordo tácito no qual se entende o contexto em que tal obra foi criada.

21 Le scénario devient alors éminemment lisible et, par conséquent, plus proche dans sa facture d’autres textes de

fiction, comme le roman. Mais surtout, pour convaincre les commanditaires, il evoque l'effet du film sur un spectateur fictif qui comprend tout et réagit conformément aux intentions de l’auteur; le producter ou la produtrice veut en effect miser sur les réactions du public.

O ponto em comum que permite a análise literária do roteiro de cinema são as ações apresentadas pelo texto e significa encontrar a narrativa como uma intersecção entre os roteiros cinematográficos e os romances. Para Vieira (2007b), a fonte das narrativas, em geral, está nas histórias passadas de pessoa para pessoa. “A relação entre ouvinte e narrador fundamenta-se no interesse em conservar a matéria narrada, garantindo-se a possibilidade de reprodução assegurada pela memória” (p. 90). Tanto a leitura de um romance quanto a leitura de um roteiro cinematográfico terão a característica de se constituírem em histórias passadas de pessoas para pessoas. Conforme indicado por Vieira e Viswanathan, as histórias são, de fato, um ponto em comum, um local de encontro. Vieira (2007b) acrescenta que, além dos roteiros, outros textos

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