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A afirmação do Estado português e a expansão das fronteiras meridionais na

CAPÍTULO I – BREVE SÍNTESE DA FORMAÇÃO POLÍTICO-

1.4. A afirmação do Estado português e a expansão das fronteiras meridionais na

sul luso-brasileiro e Colônia do Sacramento

Com a expulsão dos holandeses, a reincorporação dos territórios tomados pela Holanda, a reorganização do comércio transatlântico de escravos e a consolidação de sua independência, Portugal estava em melhores condições de embarcar em uma política expansionista no Rio da Prata para retomar o controle do contrabando de prata de que o país e suas colônias tanto necessitavam. Em vista dos prejuízos causados pela referida perda, que por sua vez geraram fortes pressões dos comerciantes, a Coroa portuguesa decidiu avançar rumo ao Prata e povoar as áreas ao sul de Paranaguá, onde algum ouro havia sido encontrado60.

É o início de um lento processo de fortalecimento do Estado português, marcado, entre outros aspectos, pela substituição do poder privado pelo poder estatal como principal motor da expansão territorial luso-brasileira61. Se o processo de expansão e ocupação ocorrido até então era capitaneado principalmente pelo particular, com a notória predominância das bandeiras, a gradual afirmação do Estado Nacional português

58 GOES FILHO, 2013, p.91.

59 Aproximadamente a porção sul do atual estado de Mato Grosso do Sul.

60 CALÓGERAS, João Pandiá. Formação histórica do Brasil, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre:

Companhia Editora Nacional, 1938, p.49.

61 IGLESIAS, Francisco. Trajetória política do Brasil: 1500-1964. São Paulo: Companhia das Letras, 1993,

levaria a um predomínio do poder público como principal formulador e executor de um projeto expansionista62.

Com a descoberta de ouro no atual litoral paranaense, a necessidade de recuperar o comércio da prata peruana e a afirmação do Estado português, estavam dadas, pois, as condições e razões para que a Coroa se lançasse em uma onda povoadora naqueles territórios formalmente pertencentes à Espanha. Fundaram-se, à revelia de Madri, São Francisco do Sul (1660), Nossa Senhora do Desterro (1662), Curitiba (1668) e Laguna (1676), esta, servindo como último porto antes do rio da Prata para os navios vindos dos demais portos brasileiros ou de Lisboa. Posto de outra forma, esse avanço para além dos limites meridionais representou uma ousada iniciativa da Coroa portuguesa de povoar a extensa área ao sul de Paranaguá antes que os espanhóis de Assunção ou de Buenos Aires o fizessem, constituindo

O desdobramento, em nível oficial, dos esforços que os luso-brasileiros, por meio das bandeiras, empreenderam, desde pelo menos 1636 e intensificaram, sobretudo a partir da rebelião contra a Espanha, para efetivarem sua presença na Bacia do Prata e prosseguirem o avanço sobre o resto da região63.

Após a fundação de Laguna, a geografia impôs-se como barreira quase intransponível para o projeto expansionista luso-brasileiro. O retilíneo litoral do que viria a ser o Rio Grande do Sul já havia afastado exploradores e colonizadores ainda no século XVI, incluindo o próprio Martim Afonso de Souza, fundador de São Vicente, que navegou ao longo da costa em sua viagem ao Prata em 1531. Assim, fundada Laguna, ‘las dificultades físicas del tramo siguiente del litoral explican el salto dado em 1680 con

la fundación de Colonia frente a Buenos Aires, en tierra indudablemente española’64. Por instrução e ordem da Coroa, o governador do Rio de Janeiro Manuel Lobo fundou Colônia do Sacramento, um enclave luso-brasileiro na margem setentrional do rio da Prata, a apenas dez léguas de Buenos Aires, tendo como objetivo não apenas a ocupação de uma das margens do rio da Prata para o controle do fluxo ilegal de prata, mas também possível

62 Caio Prado Júnior divide a História Colonial em dois períodos: o primeiro vai do ‘descobrimento’ até a

expulsão dos holandeses, enquanto o segundo se estende até a chegada da Corte ao Rio de Janeiro. Do ponto de vista político, a diferença fundamental entre os dois períodos esteve na extensão dos poderes e as formas de atuação do Estado, cuja ação nos dois primeiros séculos é mais tímida, embora longe de ser irrelevante, adquirindo protagonismo gradualmente após a reconquista do que viria a ser a região Nordeste. Ver Evolução política do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

63 BANDEIRA, p.63

64 ARTEAGA, Juan José. Uruguay: breve historia contenporánea. Cidade do México: Fondo de Cultura

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posterior invasão e conquista daquele porto65 que já havia sido alvo dos planos de Salvador Correia de Sá e Benevides e de Maurício de Nassau.

Apesar do recuo da presença portuguesa no Prata desde a expulsão de portugueses de Buenos Aires, a fundação de Colônia quarenta anos mais tarde reacendeu e potencializou as inquietações espanholas frente às ambições de seu arquirrival na região. Uma parcela significativa de lusitanos e de seus descendentes permanecera em Buenos Aires66 e os interesses comerciais da cidade continuavam, a despeito do fim da União Ibérica, que pouco alterou a realidade concreta e o quadro de necessidades econômicas e comerciais bonaerenses, intimamente ligados a Portugal e à América portuguesa. O monopólio aduaneiro do porto de Lima continuava em vigor em todo o Vice-Reino do Peru, o que concorria para manter Buenos Aires dependente do comércio com os portos do Império português no Atlântico. Cientes da ameaça que Colônia, praça-forte lusa no Prata, representava, o governador do Rio da Prata José de Garro organizou uma expedição que terminou com a ocupação do enclave apenas poucos meses após sua fundação67.

A ocupação de Colônia por forças de Buenos Aires marcou o início do que Fernando Cacciatore de Garcia chamou de ‘Guerra dos cem anos’ pela margem setentrional do Prata, período este que vai de 1680 a 1777 e durante o qual o controle do enclave alternou-se entre Portugal e Espanha diversas vezes. Não é, e nem poderia ser, objetivo desta pesquisa discutir a ‘Questão de Colônia’ e os acontecimentos políticos, diplomáticos e militares que se desenvolveram em torno dela, inclusive com desdobramentos no xadrez dinástico-diplomático europeu, a não ser na medida em que sejam imprescindíveis para os objetivos deste capítulo68.

Nesse sentido, por ora, é suficiente anotar que a fundação de Colônia não se deu de forma isolada, mas representou o primeiro de três estágios da estratégia de ocupação da margem setentrional do rio da Prata pela Coroa portuguesa, inaugurando a ocupação efetiva do sul da Banda Oriental ou do que viria a ser o Uruguai. Pretendiam os portugueses fundar outros dois povoados no que é hoje a costa sul uruguaia, um na

65 BANDEIRA, 2012, p.63.

66 SANTOS, Corcino Medeiros dos. A produção das minas do Alto Peru e a evasão de prata para o Brasil.

Brasília: Editora Thesaurus, 1998, p.166

67 ARTEAGA, p.17.

68 Para uma leitura detalhada sobre a disputa luso-espanhola por Colônia, ver PRADO, Fabrício. Colônia

Baía de Montevidéu e outro onde está localizada a atual cidade de Maldonado, de modo a estabelecer linhas de comunicação entre Laguna e Colônia69.

Em 1723, por ordem régia, uma expedição de Colônia liderada por Manuel de Freitas Fonseca chegou a construir o Forte de Montevidéu como primeiro passo para a fundação de um povoado no local70, sendo, no entanto, descoberta em pouco tempo pelo governo de Buenos Aires. O governador bonaerense Bruno de Zabala respondeu enviando um protesto ao governador de Colônia e organizando sua própria expedição para expulsar os portugueses de Montevidéu, que, sem reforços, abandonaram o lugar já em janeiro de 1724. A constante pressão militar hispano-platense desde Buenos Aires acabou colocando os colonenses na defensiva permanentemente, não só tornando inviável uma futura invasão a Buenos Aires, mas também ameaçando a própria posse portuguesa da vila.

Outro ponto a se destacar é a importância de Colônia para a formação política e territorial do Rio Grande do Sul português, uma vez que os diferentes esforços empreendidos por particulares e pela Coroa lusitana de ocupar e defender essa área ao sul de Laguna estiveram ligados, em maior ou menor grau, aos imperativos de manter as comunicações e defender esse posto avançado português no Prata. Ou seja, ‘a conquista

e povoamento do Rio Grande do Sul são capítulos complementares desse recuado acontecimento’71. Após a fracassada tentativa de povoar Montevidéu – que terminou incentivando os espanhóis a ocupar a área em definitivo –, o Conselho Ultramarino recomendou ao rei a povoação de todo o território localizado entre Santa Catarina e a Lagoa dos Patos72. Diante do isolamento geográfico, do permanente assédio espanhol desde Buenos Aires e da inviabilidade do plano de ocupação e povoamento da costa sul da Banda Oriental ao longo do rio da Prata, fazia-se necessário povoar o vasto ‘corredor’ entre Laguna e Colônia do Sacramento73.

Como as próprias datas de fundação dos primeiros povoados portugueses na área do atual Rio Grande do Sul sugerem, a ocupação efetiva do território teve início apenas a partir de 1725, quando D. João IV solicitou às autoridades de Laguna que estabelecessem um posto militar na barra do Rio Grande74, ao passo que a primeira onda

69 PRADO, Ibid., p.41-43.

70 POSSAMAI, Paulo. ‘Montevideo fortificado es outro Gibraltar’: as tentativas dos portugueses em ocupar

Montevidéu no século XVIII, Estudios Historicos, Nº3, dezembro, 2009, p.9.

71 VELINHO, Moysés. VELINHO, Moysés. Capitania d’El Rei: aspectos polêmicos da formação rio-

grandense. Porto Alegre: Editora Globo, 1970, p.22.

72 Ibid.

73 ABREU, p.187. 74 GARCIA, 2012, p.109.

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de povoamento se iniciou a partir da mesma vila, em 1727. Em comparação, Laguna e Colônia foram fundadas ainda no último quartel do século XVII, ou seja, mais de quarenta anos antes da criação da primeira vila rio-grandense, Rio Grande, em 1737; esse fato pode ser explicado justamente pela condição de ‘corredor de passagem’ que esse território adquirira para os lusitanos na medida em que era por ele que o extremo sul do Império português, até então nas imediações meridionais de Laguna, se conectava ao posto avançado de Colônia, isolado geograficamente em terras espanholas e defronte a Buenos Aires.

Além disso, ‘tratava-se de criar uma retaguarda militar para a defesa de Colônia

do Sacramento e, ao mesmo tempo, consolidar a posse da região meridional na eventualidade da perda daquele posto avançado para o inimigo espanhol’75, o que concorre para demonstrar a dimensão da importância que o enclave luso às margens do Prata teve para a formação do Rio Grande do Sul português. Esse movimento de povoamento das terras ao sul de Laguna, no entanto, não foi conduzido exclusivamente pelo Estado, mas constituiu uma política oficial que era complementada por ações de particulares.

Se bem é verdade que a expansão luso-brasileira em direção ao Prata a partir dos anos 1670 representou principalmente uma iniciativa da Coroa, como se assinalou, essa frente expansionista se desenvolveu paralelamente a outra menor conduzida sobretudo por paulistas, que retomaram a marcha ao sul não mais em busca de escravos, mas de gado bovino e cavalar76. A organização da economia da mineração no centro da América portuguesa criava, assim, um fator adicional de incentivo à ocupação das terras localizadas ao sul de Laguna, levando à formação de uma frente essencialmente privada que complementava e se articulava com as ações da Coroa que terminaram por ‘lusitanizar’ o território que se viria a formar o Rio Grande do Sul.

75 COSTA, Wilma Peres, 1996, apud FERREIRA, Gabriela Nunes. O Rio da Prata e a consolidação do Estado

Imperial. São Paulo: Editora Hucitec, 2006, p.71.

1.5. A criação da Capitania de Rio Grande de São Pedro e a configuração