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CAPÍTULO IV – A REPÚBLICA RIO-GRANDENSE E A GUERRA GRANDE

4.2. Entrelaçamentos da Farroupilha com a Guerra Grande durante o segundo

4.2.2. A dissidência de Corrientes

Apesar de as causas imediatas da Guerra Grande poderem ser encontradas na própria disputa entre dois blocos antagônicos que polarizavam a política oriental antes mesmo da criação jurídica do Uruguai, ou seja, em questões essencialmente locais, o conflito se inscreveu em um processo bastante mais amplo de formação dos Estados e das nações no subsistema platino, tendo como uma de suas características um alto grau de internacionalização devido à complexa e volátil teia de relações e conjuntos de interesses existentes na região.

A própria declaração de guerra de Rivera a Rosas, quando já se tinha vencido o inimigo interno representado pelos blancos de Manuel Oribe, demonstra que, longe de se inserir exclusivamente dentro dos limites do Uruguai, a disputa entre os dois principais grupos políticos orientais extrapolava as ainda indefinidas fronteiras de um Estado que se encontrava em vias de construção. Nas palavras do historiador Pivel Devoto, um dos principais pesquisadores do tema no Uruguai,

La Guerra Grande se nos presenta, así, como un gran drama íntimamente ligado a la configuración de las nacionalidades de la cuenca del Río de la Plata, drama en cuyo planteamiento y desarrollo se discutirán las fronteras de esos países, la navegación de sus ríos, la defensa de la soberanía aún no prestigiadas y amenazadas por la política de los Estados europeos que anhelaban abrir rutas a su comercio. […] La vida de nuestro país – por circunstancias especiales – estuvo siempre muy vinculada a la de sus vecinos, pero nunca como en este período de su historia377.

376 LANDI, Julián Otal. Rosas y la rebelión de los farrapos. Buenos Aires, 2015.

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Na Confederação Argentina, a velha animosidade existente entre Corrientes e Buenos Aires, dado o controle desta sobre a aduana e a navegação dos rios interiores, fazia daquela uma das províncias mais hostis ao centralismo imposto pelo governo bonaerense378. Juntamente com sua posição geográfica, essa realidade criava um oportuno ponto de convergência na perspectiva dos farroupilhas após o distanciamento definitivo destes de Oribe e de Rosas, assim como fornecia uma oportunidade aos colorados de Rivera para encadear uma frente contra Buenos Aires dentro da Confederação. Não à toa, após a caída do governo Oribe e a fuga do caudilho blanco para a capital portenha, Rivera firmou um tratado militar com o governador correntino Genaro Berón de Astrada especificamente ‘contra Don Juan Manuel de Rosas’, em dezembro de 1839, comprometendo-se a levantar uma força de dois mil homens para esse fim379. Buscava, assim, tirar proveito da oposição anti-rosista para articular um bloco mais amplo contra o ditador argentino durante o período que transcorreu entre a queda do governo Oribe e a declaração de guerra a Rosas, divulgada em março de 1839.

Embora houvesse assinado a declaração de guerra, Rivera esperava que sua publicação se desse quando os preparativos estivessem concluídos, como, aliás, fora acordado com os agentes franceses380. Não obstante, em face da derrota decisiva da

Confederação Peru-Boliviana para o Chile na batalha de Yungay381, os agentes franceses em Montevidéu, que apoiavam aquela, se precipitaram e publicaram a declaração de guerra de Rivera a Rosas em uma reação precipitada a mais um triunfo do ditador argentino, mesmo que os preparativos para a campanha não estivessem concluídos nem do lado oriental nem do correntino382.

Precipitou-se o início do conflito, o que deu a Rosas tempo para agir primeiro e ordenar a invasão de Corrientes pelas tropas entrerrianas comandadas por Pascual Echagüe, infringindo dura derrota ao Primer Ejército Correntino contra Rosas na batalha de Pago Largo, em 31 de março de 1839. Astrada, apesar de conseguir reunir cerca de

378 Entre 1839 e 1851, Corrientes levantou-se cinco vezes contra o governo de Rosas. 379 ROSA, p.379.

380 Ibid.

381 A República do Chile e a Confederação Peru-Boliviana se enfrentaram militarmente entre 1836 e 1839,

tendo recebido apoio da Confederação Argentina e da França, respectivamente. Forças rosistas argentinas participam diretamente do conflito a partir de 1837, mas são derrotadas em definitivo no ano seguinte e se retiram do conflito, passando a apoiar o Chile indiretamente enquanto a potência francesa mantinha seu apoio à Confederação Peru-Boliviana. Para uma leitura detalhada sobre o conflito, ver MORALEDA, Ernesto Muñoz. La guerra contra la Confederación Peruano-Boliviana, 1834-1839. San Miguel de Tucumán: Universidad Nacional de Tucumán, 1983.

seis mil homens, terminou derrotado e morto sem receber o auxílio prometido por Rivera383. Vitorioso, Echagüe, secundado pelos generais Justo Urquiza, Lavalleja e Servando Gómez, cruzou o rio Uruguai e invadiu o território oriental com suas tropas com o objetivo de tomar Montevidéu e colocar um fim à guerra rapidamente. Entretanto, as forças rosistas terminaram derrotadas pelas tropas comandadas por Rivera na batalha de Cagancha, a cerca de 30km da capital, o que obrigou os invasores a retornarem a Entre Rios em dezembro de 1839. O Uruguai colorado recuperava a ofensiva, mitigando os efeitos da derrota do Primer Ejército Correntino.

Por sua vez, o governo farroupilha negociara, ainda em 1838, um tratado com Rivera no âmbito das tratativas que selaram o apoio farroupilha ao caudilho durante a campanha contra o governo de Oribe. Na ocasião, o ministro das Relações Exteriores farroupilha, Mariano de Mattos e o representante de Rivera, Martiniano Chilavert, assinaram o já citado Tratado de Cangüe384, nas cercanias de Paysandú, segundo o qual o

caudilho colorado se obrigava a ‘no descender jamás de la silla de Presidente sin pasar

a ocupar inmediatamente el cargo de Comandante general de campaña, a fin de que pueda suceder a su turno a su proprio sucesor’, demonstrando a intenção de Rivera de

permanecer no poder por tempo indeterminado, e estabelecia que:

El Presidente riograndense se obliga en nombre, por, y de parte de su República, a mantener con todas sus fuerzas y recursos aun cinco años después de conquistada y reconocida la Independencia del Rio Grande por el Gobierno Imperial, la influencia y la preponderancia política en el Estado Oriental del General en Jefe Defensor de la Constitución, siempre que esta preponderancia e influencia fueren despertadas de cualquier modo que sea por un partido facción o potencia extranjera385.

Na prática, o tratado fazia de Fructuoso Rivera a única autoridade oriental reconhecida pelo Estado Rio-Grandense, ao passo que definia o reconhecimento da independência deste por parte do Uruguai após o retorno do caudilho à Presidência do país. Com isso, os farrapos pareciam atingir um objetivo que nunca haviam conseguido alcançar durante o mandato de Oribe, passo fundamental na luta pela consolidação da independência rio-grandense, ainda que não houvesse garantias de que o ardiloso Rivera cumpriria o acordo. A desconfiança era compartilhada até mesmo por Bento Manoel

383 CISNEROS, ESCUDÉ (Org.), 1998. 384 ROSA, p.280.

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Ribeiro, antigo amigo e aliado de Fructo, manifestado certo grau de ceticismo quanto ao cumprimento do tratado386.

Consequentemente, os farroupilhas achavam-se ligados diplomaticamente a Rivera quando da eclosão da Guerra Grande em março de 1839, além de continuarem dependendo da praça e do porto de Montevidéu para a comercialização e o escoamento de seus produtos. Após uma última série de tentativas de reaproximação ao núcleo rosista da Confederação ao longo do ano, em parte motivada pela desconfiança que Rivera despertava, a cúpula farroupilha desistiu de buscar o apoio militar de Rosas para articular uma aliança com sua vizinha Corrientes. Após a derrota de Pago Largo e um breve período de controle rosista, a província voltava-se pela segunda vez contra o centralismo bonaerense encarnado na figura do ditador argentino.

Aqui, cabe registrar que Corrientes esteve longe de ser a única província que se opôs à política centralizadora de Rosas, uma vez que outras que compunham a Confederação também o fizeram, inclusive mantendo relações mais próximas com governos de outros países do que com Buenos Aires, como as províncias cuyanas, entre outras. Em geral, o embate com Rosas representava uma oposição à hipertrofia da mais poderosa província argentina que monopolizava as rendas aduaneiras e controlava a navegação dos rios. Os efeitos dessa política – ironicamente, tributária do centralismo portenho encampado pelos ‘proto-unitários’ dos anos 1810 – asfixiavam economicamente as províncias e foi uma das causas das guerras civis argentinas do período387.

A posição geográfica de Corrientes, localizada entre os rios Uruguai e Paraná e fazendo fronteira com o Império (Rio Grande do Sul), o Estado Oriental e o Paraguai, contudo, conferia-lhe um alto valor estratégico e a tornava particularmente sensível ao controle da navegação dos rios que Rosas detinha. Assim, os dirigentes da província tendiam a contemplar a cooperação com outros países e províncias da região com base em possíveis interesses comuns e antagônicos aos de Buenos Aires.

Afora os fatores geográficos, há que se anotar que Corrientes era uma das províncias mais entusiastas do federalismo e zelosas de sua autonomia no âmbito da Confederação, o que já se fazia claro nas tratativas que haviam culminado na assinatura do Pacto Federal388, em 1831, do qual os correntinos ficaram de fora em um primeiro

386 GUAZZELLI, 2012, p.166-167.

387 PAYRÓ, Roberto P. Historia del Río de la Plata, Tomo II: peripecias de la organización nacional en los

países del Río de la Plata y sus vecinos, 1810-1852. Madri-Buenos Aires: Alianza, 2008.

388 Documento incialmente assinado pelas províncias de Buenos Aires, Entre Rios e Santa Fé, em 4 janeiro

momento justamente pelos seus desígnios autonomistas. À época, José María Roxas y Patron e Pedro Ferré, delegados de Buenos Aires e de Corrientes, respectivamente, foram encarregados de redigir um projeto de texto do Pacto Federal, travando discussões que terminaram por explicitar as profundas divergências existentes entre as duas províncias no tocante à organização nacional.

Particularmente, três condições apresentadas por Ferré foram rechaçadas por Roxas y Patron: a) a manutenção da representação das províncias até que a nação argentina fosse organizada; b) a exigência legal para essa organização ‘hacer el

imposible’ na busca pela organização nacional; c) e a garantia da livre navegação dos rios

Uruguai e Paraná389. Alegando não poder avançar nesses pontos por se tratarem de assuntos de interesse do conjunto das províncias argentinas, o representante bonaerense resistiu às exigências de Ferré, cedendo apenas quando o próprio Juan Manuel de Rosas concordou com a criação de uma comissão de representação das províncias390, como exigia Ferré.

As tensões entre Corrientes e Buenos Aires aumentaram ao longo da década de 1830 ao ponto de Pascual Echagüe, a mando de Rosas, organizar uma vigilância permanente das movimentações das tropas correntinas desde Entre Rios, tomando a decisão de invadi-la após a revelação da declaração de guerra oriental-correntina a Rosas, conforme se viu acima. Em outubro de 1839, Pedro Ferré é eleito governador da província e inicia a articulação de uma nova frente contra Rosas, buscando o apoio do Rio Grande do Sul farroupilha e, como Berón de Astrada fizera, do Estado Oriental colorado. Em novembro de 1839, Ferré organizou um novo exército anti-rosista, entregando seu comando ao unitário e inimigo ferrenho de Rosas, Juan Lavalle.

No mês seguinte, Bento Gonçalves escrevia a Domingos de Almeida tratando sobre a conveniência de se estabelecer relações ainda mais próximas com Corrientes, manifestando ter conhecimento do apoio que as forças políticas dessa província davam à

Após a queda do governo unitário de Rivadavia durante a Guerra da Cisplatina, ainda nos anos 1820, os federalistas não foram capazes de organizar um novo Estado sobre bases federais devido a uma série de desentendimentos e choques de interesses, o que reanimou os unitários e os levou a promover em conjunto a organização nacional dentro de um modelo unitário e centralizado. Após mais um (breve) período de guerra civil, os federalistas saíram vitoriosos e procederam à organização, pela primeira vez, de um Estado Federal, o que não se concretizou devido à oposição de Rosas, que defendia o adiamento desse objetivo por desejar governar sem um arcabouço constitucional. Ver LORENZO, Celso Ramón.

Manual de historia constitucional argentina, vol. 2. Rosário: Editorial Juris, 2000.

389 CISNEROS, ESCUDÉ (Org.), p.165. 390 Ibid.

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‘nossa sagrada causa’391. Os republicanos rio-grandenses precisavam ampliar seu

espectro de alianças para continuar fazendo frente ao Império, o que, diante do jogo duplo que Rivera conduzia relativamente a imperiais e farrapos, e da frontal oposição correntina a Rosas, fazia de Corrientes virtualmente um ‘aliado natural’ da República Rio- Grandense.