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A AMBICIONADA REVISÃO CONSTITUCIONAL

Capítulo III O Naufrágio

8. A AMBICIONADA REVISÃO CONSTITUCIONAL

Chegado a este ponto, e demonstrada que está a nossa doutrina de extinguir na sua totalidade as freguesias, perguntar-se-á então, como poderia o legislador implementar na prática uma organização autárquica nestes moldes? Desde logo, este

cenário encerra um enorme desafio constitucional280, o de encetar um processo de

revisão da própria Constituição. Nem podia ser de outro modo.

Na verdade, não seria admissível a nenhum intérprete ignorar pura e simplesmente, a redação do artigo 236.º n.º 1 e n.º 2, e artigos 244.º e seguintes, todos da Constituição. Uma eventual desautarquização das freguesias no seu todo, por ato

legislativo ordinário281, sem antes executar uma revisão do texto constitucional282, seria

ferida de inconstitucionalidade, e inconstitucionalidade material (artigo 277.º n.º 1 CRP). Importa por isso deixar algumas notas a este respeito.

O processo de revisão está regulado pela Constituição nos artigos 284.º e seguintes. Constituem requisitos de revisão constitucional: i) intenção de revisão sob a

iniciativa dos Deputados283 (artigos 285.º n.º 1 e artigo 156.º, alínea a) CRP); ii)

debatida pelo órgão de soberania competente, a Assembleia da República (artigo 161.º, alínea a) CRP); iii) num ambiente de normalidade constitucional (artigo 289.º CRP); iv) observado o período mínimo de 5 anos sobre a publicação da última lei de revisão ordinária, ou assumindo em qualquer momento, poderes de revisão extraordinária por intermédio da votação favorável de ⅘ dos Deputados em efetividade de funções (artigo 284.º CRP); v) em respeito pelos limites materiais de revisão previstos (artigo 288.º CRP); e vi) devendo a lei de revisão ser aprovado por maioria qualificada de ⅔ dos Deputados em efetividade de funções.

(280) É certo que se trata de um grande desafio, pese embora os Deputados não possam encomendar esse trabalho a ninguém, citando SÉNECA; Vida, Pensamento e Obra, in Catarina Rolim (trad.), João Quina Edições, 2008, p. 313. Não sendo menos verdade que “não há revisões perfeitas, nem ideais, só revisões

possíveis, embora necessárias.”; MARCELO REBELO DE SOUSA “Prefácio”, in Uma Construção Moderna para Portugal, Luís Marques Guedes (anot.), Grupo Parlamentar do PSD, 1997, p. 67.

(281) Do mesmo modo, JOSÉ CASALTA NABAIS dispõe o seguinte: “nestes termos, não pode a lei

extinguir ou permitir a extinção das autarquias locais em geral ou de qualquer dos seus níveis territoriais no todo ou em parte do território nacional.”; “A Autonomia Local”, ob. cit., p. 159.

(282) A revisão constitucional consiste na modificação constitucional, expressa, parcial, e de alcance geral e abstrato, acolhendo um princípio de continuidade institucional.

(283) Vedando assim os grupos parlamentares, grupos de cidadãos, o Governo e as assembleias legislativas regionais, de apresentarem projetos ou propostas de revisão constitucional. Neste capítulo, não poderá o Presidente da República, ao abrigo do disposto no artigo 174.º n.º 4 CRP convocar a Assembleia da República para efeitos de encetar um processo de revisão constitucional. Neste sentido, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 6.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 196.

A verificação dos requisitos enunciados compete ao Senhor Presidente da República, através do ato de promulgação, sendo certo, que o mesmo não se pode

recusar a promulgar a lei de revisão284, na medida que se mostrem preenchidos todos os

seus requisitos de qualificação como revisão constitucional285 (artigo 286.º n.º 3 CRP).

Posto isto, respondida que está a nossa primeira interrogação, questionamo-nos agora se uma tal revisão constitucional, tendo por objeto a supressão da freguesia seria juridicamente admissível. Estamos convictos de que sim.

Desde logo, a Assembleia da República, pode assumir por intermédio de qualquer Deputado, um processo ordinário de revisão constitucional, visto que a

publicação da última lei da mesma natureza, aconteceu em 24 de julho de 2004.286

Por outro lado, a lei de revisão que extinguisse a previsão constitucional da

freguesia não acarretaria a violação de nenhum dos seus limites materiais.287 De facto,

as únicas restrições de revisão que a Constituição impõe, em matéria de autarquias locais são: i) a garantia da sua autonomia (artigo 288.º, alínea n) CRP), e ii) a eleição dos titulares dos órgãos do poder local por sufrágio universal, direto, secreto e periódico (artigo 288.º, alínea h) CRP).

A maior adversidade a um processo de revisão nesta questão seria, efetivamente, formar uma maioria qualificada de aprovação de ⅔ dos Deputados em efetividade de funções (artigo 286.º n.º 1 CRP). Do atual panorama político e legislativo, retira-se a conclusão de que seriam sempre necessários os votos favoráveis dos Senhores Deputados afetos aos principais partidos do arco da governação, PS e PSD, um

entendimento muito pouco provável de acontecer na prática.288

(284) Não estando sujeita, em regra, à fiscalização preventiva (artigo 278.º n.º 2 CRP).

(285) JORGE MIRANDA, in ob. cit., Manual de Direito Constitucional, Tomo II, pp. 203-206.

(286) Referimo-nos à Lei Constitucional n.º 1/2004, de 24 de julho, que procedeu à sexta revisão da Constituição da República Portuguesa de 1976. Sublinhe-se que a sétima revisão constitucional ocorrida em 2005, tratou-se de uma revisão extraordinária.

(287) Essencialmente, estes limites materiais visam “garantir, em revisão, a intangibilidade de certos

princípios – porque é de princípios que se trata, não de preceitos avulsos” JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 6.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 213. O mesmo autor mostra-se

contudo, reticente a uma eventual revisão constitucional que extinga as freguesias, na medida em que, atentaria contra o limite de revisão da autonomia local, dizendo que “a garantia da existência das

autarquias locais implica a existência dos três tipos ou escalões de autarquias previstos na Constituição (art. 236.º): freguesias, municípios e regiões administrativas (art. 236.º). Há aqui uma reserva de Constituição. E o limite material de revisão abrange, pelo menos, as freguesias e os municípios. Não se trata de salvaguarda das autarquias locais em abstrato, mas das autarquias locais portuguesas muito anteriores à Constituição: as freguesias e os municípios.”; JORGE MIRANDA “As Freguesias, a

Constituição e as Leis n.º 22/2012, de 30 de Maio, e n.º 11-A/2013, de 28 de janeiro” in Estudos em

Homenagem a António Barbosa de Melo, Almedina, 2013, p. 429.

(288) “Eis porque todas as críticas à democracia em Portugal têm sempre alguma coisa de justo; porém

mais do que negá-lo, importa afirmar que todas essas críticas recaem sobre a não-democracia que quase sempre foi a política portuguesa. Não há democracia sem pensamento político; sem pensadores capazes

Em suma, e em última análise, o único impedimento à revisão constitucional que introduzisse uma mudança de paradigma ao nível da extinção da freguesia como

autarquia local, esbarra na vontade do legislador289, consequência, da falta de coragem

política.

de garantir a elevação da vida social característica duma democracia. Nunca houve disso em Portugal (…) Por vezes houve mesmo só a extensão daquilo que de nenhuma maneira é essencial e característico do pensamento democrático: fobias, oposições, ataques e incompreensão.”; DELFIM SANTOS, Obras Completas, Vol. I, 2.ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, p. 39. Também para JOSÉ

ADELINO MALTEZ, o antagonismo partidário que tem ocorrido aquando das sucessivas revisões constitucionais, apenas tem contribuído para o desprestígio da constituição; in O Problema do Direito –

Princípios de Ciência Política, Vol. II, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 1996, p. 624.

(289) ROUSSEAU ensina-nos que “qualquer ação livre tem duas causas que concorrem para a produzir.

Uma moral, a saber, a vontade que determina o ato; outra física, a saber, o poder que a executa. (…) O corpo político tem os mesmos móbiles. Distinguimos igualmente a força e a vontade. Esta sob o nome de poder legislativo, a outra sob o nome de poder executivo. Nada se faz ou deve fazer sem o seu concurso.”; O Contrato Social, in Manuel João Pires (trad.), Círculo de Leitores, 2008, p. 137.