• Nenhum resultado encontrado

A andorinha da mata e a distribuição da população

No documento Wanintesu : um construtor do mundo Nambiquara (páginas 146-200)

Circularidade territorial

A distribuição da população Nambiquara obedece aos costumes dos grupos, independentemente se são os da Serra do Norte, Chapada dos Parecis ou Vale do Guaporé. Relatam os índios que, na idade mítica235, todos os Nambiquara do Cerrado habitavam o interior de uma grande montanha de pedra, Talensu. A mitologia, associada às narrativas dos índios, indica que no decorrer de uma intempérie da natureza ocasionada pela interferência de Waluru, um espírito malfeitor provocou uma grande inundação, quando as águas dos rios se juntaram, destruindo o mundo.

Depois de um tempo, o sol, iraladndekisu, e a lua, ilakisu, reapareceram, mas já não existiam seres humanos, somente animais. No interior de uma pedra, txahlxisu, incólume ao dilúvio, de formato semelhante a um “urubu de chifre”, conforme associam os índios, passou a viver o povo Nambiquara. Ali eram propagadas a alegria, a saúde, a beleza e a eternidade. Do lado de fora, pássaros, mamíferos, répteis, insetos e outras espécies de seres vivos grassavam nos campos e matas. Bem próximo a essa elevação, expressões eram exprimidas em algaravia e ouvidas pelo macaco japuçá, hosxasitisu, também conhecido por

235 A idade mítica, para os Nambiquara, “tempo de antigamente”, é concebida na dimensão de um tempo

imaginado, no início do universo, e que representa períodos de felicidade, de realizações e de catástrofes, de degradação das condições da vida natural e moral. Consultar LÉVI-STRAUSS, Claude. A estrutura dos mitos. In: Antropologia estrutural. Tradução Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p. 237-265 (Biblioteca Tempo Universitário, 7). Um importante estudo acerca da concepção mítica do tempo encontra-se em LE GOFF, Jacques. Idades míticas. In: Enciclopédia Einaudi. 1. Memória- História. Porto: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1984, p. 311-337. Na edição nacional, ver: Idades míticas. In: História e memória. Tradução Bernardo Leitão et al. 4. ed. Campinas: UNICAMP, 1996, p. 283- 323.

146 guigó, zogue-zogue ou sauá, hábil saltador que raramente desce ao solo e possui uma vocalização característica que permite sua rápida localização no ambiente. Muito curioso, passava a maior parte do tempo a esperar que alguém resolvesse sair. Sol a sol, ali permanecia de tal maneira que a pelagem de seu lombo chegou a ficar avermelhada. Pediu à cutia para roer a pedra com seus dentes afiados, que não resistiram à sua solidez. Chamou a anta que tentou, inutilmente, quebrá-la. Veio o tatu canastra, com a aspereza de seu casco, lixá-la, e saiu ferido. O urubu dava vôos em direção à montanha para perfurá-la com seu bico, mas essas tentativas foram em vão. Prestes a desistirem, a andorinha da mata,

kualihahaitalisu236

[...] se aproximou daquele alvoroço para ver o que estava acontecendo. Também curiosa em saber quem estava dentro da pedra, tomou à frente, com uma lança. Os animais que ali estavam resolveram se afastar um pouco, receosos do resultado. Voou longe, longe para pegar embalo e adquirir grande velocidade. Rachada em duas partes, bem no centro, para a surpresa daqueles que estavam do lado de fora, pessoas saíram do interior da pedra. A andorinha da mata retirou um casal e apontou-lhe um lugar para morar, constituir família; chamou outro casal e encaminhou-o para outra direção. E fez assim com muitos casais237.

Talensu, na concepção dos índios, não se encontra no passado, está lá e está aqui,

faz parte de uma concepção mítica de um tempo não localizável e que se encontra ainda no presente. Acreditam os índios que até hoje existem Nambiquara em seu interior e que o pajé, wanintesu, em visitas esporádicas a essa montanha, consegue vê-los e escutar suas vozes. Assim, graças à curiosidade do macaco japuçá, hosxasitisu, muitos índios passaram a ocupar áreas distintas dos campos cerrados, fato que levou ao surgimento de diversas pequenas aldeias.

Contam os índios que houve uma época em que somente o cunauaru, kwalhu, no vão de paus, conseguia armazenar água. O cunauaru é um pequeno anfíbio de cor

236 A andorinha da mata, kualihahaitalisu, “[...] bate suas asas forte, suas asas na mata e deixa o lugar durinho.

Nem homem, nem mulher podem pisar. Se mulher pisar, nunca vai conseguir ter filhos, sempre vai abortar”. Mané Manduca, Cuiabá, 12.10.2005. Entrevista.

237 COSTA, Anna Maria R. F. M. da. Senhores da memória: uma história do Nambiquara do cerrado. Cuiabá:

UNICEN Publicações, 2002, p. 19-20 (Coleção Tibanaré, 3). Consultar, da mesma autora, Hatisu: lembranças que viraram histórias. Cuiabá: Tanta Tinta, 2005, p. 13-14. PEREIRA, Adalberto Holanda. A origem do Nambikwára. O pensamento mítico dos Nambikwára. In: Pesquisas. São Leopoldo: Gráfica Unisinos, 1983, p. 7-13 (Antropologia, 36).

147 acinzentada, olhos vermelhos, cujo coaxar, repetido em triste melodia, soa cu-nau, cu-nau. Tem o costume de nidificar geralmente no oco do arbusto da almecegueira, ou aroeira-do- campo, produzindo uma espécie de resina.

Assim, toda vez que os índios precisavam de água iam atrás do cunauaru que, comedidamente, cedia-lhes apenas uma cuia, katesu. Por ser essa quantia insuficiente para abastecer as aldeias, os Nambiquara resolveram matá-lo, já que não havia jeito de roubar a água de seu reservatório. Mas a sua morte não solucionou tal problema, pois a água acabou de vez, porque não aprenderam como o anfíbio mantinha abastecido o oco dos paus.

Quando uma anta, alũsu, se aproximou de uma lagoa seca, a fim de fazer suas necessidades, defecou e urinou naquele lugar. Estranhamente, como sua urina não foi recolhida pelas areias, aproveitou-a para tomar banho ali mesmo. Dauasununsu, ser supremo dos Nambiquara, que observou aquele procedimento lá de cima,

[...] pegou uma folha da figueira-silvestre de cima e terra da cabeceira de cima e foi esfregando a folha e a terra com as mãos e fez a água de novo. Os Nambikwára estavam aqui embaixo na terra esperando com as cabaças. Quando Dawasununsu acabou de fazer a água, disse para os Nambikwára: – bebam e tomem banho na água. Não podem ficar dentro, porque perdem o fôlego. Não podem fazer fogo dentro da água, porque não há jeito238.

A anta falou aos índios sobre a abundância das águas em decorrência da ação de

Dawasununsu, logo que urinou e defecou na lagoa seca. Por esse motivo, osNambiquara, ainda hoje, não se importam que a anta suje com suas fezes e urina as águas dos rios, córregos, cacimbas e lagoas.

De conformidade com os relatos mitológicos, uma mulher-espírito, representada pela andorinha da mata, indicou a cada um dos casais a deixar Talensu, a montanha de pedra, para edificar sua aldeia em lugares distintos. Mané Manduca contou que:

[...] alguém tinha que estourar a caverna para tirar o povo de lá. Muitos, muitos milhões de anos atrás, vários tipos de pajelança foram feitos para estourar a caverna. A mulher tinha que descobrir quem estava lá dentro. A

238 PEREIRA, Adalberto Holanda. A origem do Nambikwára. O pensamento mítico dos Nambikwára. In:

148 andorinha da mata conseguiu usar a espada emprestada dessa mulher, com

o mesmo poder dela. Ela emprestou o poder da espada à andorinha239.

Assim, a andorinha da mata possibilitou, com poderes mágicos emprestados da mulher-espírito, retirar grande parte dos Nambiquara, indicando-lhes o lugar apropriado para a edificação das aldeias. Quando muito populosa e com permanência prolongada na mesma área, esgotam os nutrientes da terra propícia à roça, bem como os demais recursos naturais existentes no entorno da aldeia: a caça de animais silvestres, assim como faz diminuir a coleta de frutos, pequenos répteis, insetos, larvas e tubérculos.

A aldeia e os outros espaços que a compreendem – a floresta, o campo, os rios, as montanhas – compõem o território Nambiquara e podem ser designados como espaços da memória, um patrimônio cultural que se expressa nos mitos e que, segundo Lévi-Strauss, estão “simultaneamente, na linguagem e além dela”240, e que velhos, jovens e crianças, com seus modos de viver, incorporam aos seus saberes à paisagem, tudo aquilo que faz parte dela, e mais o que é extrínseca a ela.

A relação que os Nambiquara mantêm com os espíritos ou seres da natureza não parece, contudo, depender de um conhecimento de sua gênese mítica, e sim do domínio de técnicas, tais como a interpretação de sonhos, os encantamentos mágicos ou o respeito e cumprimento aos tabus. Ninguém viu de fato o tatu cavoucar, mas o desmoronamento que ele causou naquela época ainda acontece às margens dos rios Camararé e Doze de Outubro, território dos Kithãulhu.

Os mitos Nambiquara se inserem ora num tempo linear, ora num tempo cíclico. Sucessões de eventos semelhantes podem se renovar em intervalos regulares, impondo uma ordem ao tempo pela divisão em períodos, a ressignificação do passado no presente e no futuro, assinalada pelas práticas cotidianas da bipolaridade anual: estiagem/chuva.

As casas temporárias se fazem mais presentes na estiagem, entretanto, isso não quer dizer que no período das águas elas inexistam. Para os Nambiquara não é somente a arquitetura das casas que indica as estações do ano; as mudanças que ocorrem na flora e na fauna os auxiliam a equacionar e dirigir suas atividades de subsistência. Em relação aos trabalhos agrícolas, Fuado Sawentesu, líder da aldeia Branca, informa que:

239 Mané Manduca, Cuiabá, 12.10.2005. Entrevista. 240 LÉVI-STRAUSS, Claude. Idem, p. 240.

149 [...] quando quer começar época de chuva, dois, três dias, um Curiango começa cantar a noite toda, [chuva] está longe; quando dez cantam, aí vou plantar roça; quando quero fazer roça bem grande, aí começa flor do campo, que vocês chamam de Primavera, vou roçar pau fino. Quando roça, flor amarela. Curiango [canta] para queimar. Ele canta muito por

causa de Aleluia241, filhote de cupim, difícil catar. Quando saem voando,

se alimentam de filhote de cupim. Marimbondo leva-o [filhote de cupim]. Dois, três meses leva filhote de Aleluia. [Nambiquara] Soca [filhote de Aleluia], faz farinha. É bem gostosa242.

Assim, tanto o canto de um bando de curiangos, kwayasu, quanto à presença no cerrado de flores amarelas que brotam de um arbusto de troncos retorcidos indicam aos Nambiquara a etapa da atividade agrícola a ser desempenhada e o findar de um ciclo anual para o início de um novo.

O sol, irakisu, é referência na mensuração do tempo. Na designação das diferentes fases do dia apontam o braço direito para cima a fim de indicar a sua posição e estabelecer o momento de determinado compromisso, ou mesmo para relatar algum acontecimento. Para a contagem do tempo em meses se apropriam das fases da lua, iraka kanãtakisu, o sol da noite, tem designações específicas. Primeiramente, o termo “daqui a uma lua” é empregado para denotar os aspectos apresentados durante uma lunação, e suas transformações sinódicas são denominadas de “Lua Perdida” (Nova), “Lua Pendurada” (Quarto Crescente), “Lua Redonda” (Cheia) e “Lua Incompleta” (Quarto Minguante).

Durante a Lua Cheia, ākiwatāuki, manchas escuras perceptíveis da Terra, de coloração acinzentada são explicadas pelos Nambiquara desde a “idade mítica”, quando o sol, representado por uma mulher, e a lua, por um homem, ocuparam a abóbada celestial e ali passaram namorar. Renê, um Nambiquara do grupo Kithãulhu, afirmou que toda vez que lua e sol faziam amor

[...] nasciam milhares de estrelas. Como namoravam todos os dias, nasceram milhares e milhares de estrelas, e a sol começou a ficar brava com o lua porque era muito trabalhoso ser mãe de tantas estrelinhas. No início, ela cuidava de suas estrelinhas dentro da casa, mas elas eram tantas

241 Aleluia, designação comum aos exemplares alados (macho e fêmea), insetos isópteros ou cupins, que ao

abandonarem o ninho para o vôo nupcial, as fêmeas fecundadas formarão novas colônias. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d., p. 65.

150 que começaram a se espalhar pelo céu. Então, a sol pensou: “Lua, você vai pagar muito caro por isso”. A sol saiu da casa, pegou um machado de pedra e uma cuia e foi para o campo à procura de uma mangabeira, kadikisu, que soltava um leite parecido com cola, que ela pretendia jogar na cara do lua. O lua, que não sabia de nada, ia só de noite à casa da sol. Então, ela deitou no chão, colocou a cabaça bem atrás do pescoço e ficou à espera do lua. Ela sabia que o lua vinha toda noite, porque ele não podia sair durante o dia. Então pensou: “Vou fazer fogo aqui na porta para não errar e não desperdiçar o leite da mangabeira”. Assim, ela fez o fogo e esticou-se toda, ficando deitada de barriga para cima ao lado da porta. Enquanto isso, o lua pensava: “Que bom, hoje vou dormir com a sol”. Ele se arrumou, penteou o cabelo e saiu, e assim que chegou à casa da sol disse: “Posso deitar com você?” “Claro!”, respondeu a sol. Ela sabia que ele ia se deitar em cima dela. Então pegou a cuia de leite de mangabeira e jogou no rosto dele, que ficou todo manchado. A lua ficou bravo com a sol. Até hoje, quando o lua está cheio, pode-se ver a cara dele toda manchada. Desse dia em diante, ele não foi mais à casa da sol, e assim não nasceram mais iraka wêhalisu, filhos do sol, as estrelas243.

Roquette-Pinto afirma que os Nambiquara

[...] não parecem distinguir as constelações; sempre deram os mesmos nomes para qualquer estrela que se lhes indicassem. Tangrê chamavam os Tagnanis [grupo Nambiquara da Serra do Norte], indiferentemente, à cintura do Orion, que esquematizavam no solo, e as estrelas maiores deste

grupo excepcionalmente belo: Riegel [Beta] ou Belatrix [Gama]244.

Contudo, mesmo que os índios tenham suas concepções referentes ao universo, não chego a afirmar, como Roquette-Pinto o fez, que os Nambiquara praticam a astrolatria:

De sua religião apenas sabemos que é fetichista. Não conhecemos nada do seu culto, nem do seu regime; muito menos do seu dogma. Os grupos setentrionais parecem evoluir para a astrolatria. Tendo ameaçado a lua e as estrelas com uma flecha, preparada no arco, prestes a agressão, levantaram-se bruscamente muitos Tagnanís [Nambiquara da Serra do Norte] e sustaram o meu gesto, falando muito exaltados, repreendendo-

me, tomando-me a arma, como si aquilo fosse um sacrilégio245.

243 KITHÃULU, Renê. Iraka yekayaira iyaujausu. A origem da mancha da lua. In: Irakisu: o menino criador.

São Paulo: Peirópolis, 2000, p. 20-22 (Coleção Memórias Ancestrais: povo Nambikwara).

244 ROQUETTE-PINTO, Idem, p. 266. 245 Idem, p. 264-264.

151 Outro demarcador de tempo é o espaço de um dia, dividido em manhã, alantisu, tarde, kxuyxesu, e noite, kanãtisu. A mitologia dos grupos do cerrado também fundamenta o surgimento da noite. Um pajé, wanintesu, possuía duas cabaças, walutsu: uma branca e outra preta. Na cabaça branca ele guardava o dia e, na preta, a noite. Para iniciar cada uma destas partes do dia, destampava a cabaça correspondente. Mas um dia, incumbiu o pássaro Urutau, ou Bico para Cima, ou Mãe da lua, para realizar a tarefa. Foram-lhe entregues as duas cabaças e explicada sua significação, bem como a maneira correta de se proceder. A sós, a ave não resistiu à curiosidade e destampou a cabaça preta e a deixou aberta por muito tempo. A escuridão da noite tomou conta do céu e se espalhou pelo mundo, trazendo conseqüências desastrosas aos Nambiquara. Em desespero, tentou, em vão, tampá-la, mas não houve resposta. O wanintesu, ao retornar, avistou a escuridão aproximar-se246.

O problema causado por Mãe da Lua só foi solucionado pela ação de uma criança, o sol, ujenakisu, nascida de uma relação sexual incestuosa entre dois irmãos,

kaxyuhsontakalisxu. No meio da noite, se sentou em direção ao sol e os dois irmãos,

acompanhados de seus pais, começaram a ouvir o canto do sabiá, da seriema, do mutum, da perdiz, do nambu e de tantos outros pássaros, além de alguns grunhidos de outros animais. Foi quando decidiram untar o corpo da criança com urucum, pois

[...] queriam que o amanhecer e o entardecer ficassem com a cor avermelhada, que eles achavam muito bonita. Alantisu, o dia, começou a clarear, clarear... e nasceu o sol. Irakisu ficou ali sentado até o sol chegar no meio do céu – era ele que levava o sol até lá. Quando o sol chegou ao meio do céu, os pais de Irakisu viram o menino para o lado onde o sol se põe [...]. Quando o sol chega lá embaixo ele se apaga, tudo escurece. No dia seguinte, ele nasce outra vez. Irakisu já nasceu com o poder de

246 Segundo os Nambiquara, é por esse motivo que o Urutau, que fica de bico para cima à espera do sol

nascente, é o pássaro chorão. Semelhante a uma casca de árvore, tem hábitos noturnos e canta sofrido durante o período da chuva. Há uma variante para esse mito. Segundo Renê Kithãulu, o responsável pela abertura indevida da cabaça da noite era também um wanintesu chamado Sanerakisu que só irá transformar-se em pássaro ao perceber a catástrofe que causou. Para saber mais sobre o surgimento da noite, consultar KITHÃULU, Renê. Irakisu: o menino criador. São Paulo: Peirópolis, 2000, p. 13-14 (Coleção Memórias ancestrais: povo Nambikwara). PEREIRA, Adalberto Holanda. A origem da noite. O pensamento mítico dos Nambikwára. In: Pesquisas. São Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas. 1983, p. 18-20 (Antropologia, 36). Pode-se perceber, na calamidade causada à vida Nambiquara diante da curiosidade do pássaro ao abrir a cabaça da noite inoportunamente, uma semelhança ao mito grego da deusa criada por Zeus, Pandora, que, em desobediência, não resiste à curiosidade e destampa uma caixa, em poder de Epmeteu, e deixa escapar a mentira, doença, inveja, velhice, discórdia e a morte. POUSADOUX, Claude. Contos e lendas da mitologia

152 separar o dia e a noite. Foi assim que o tempo voltou a ser dividido, só que, daí em diante, em partes iguais: metade dia, metade noite247.

Ainda com referência aos conhecimentos astronômico dos Nambiquara, Adalberto Holanda Pereira, padre cearense e etnólogo que morou durante muitos anos entre diversos povos indígenas da Chapada dos Parecis, relatou que um moço, ao contemplar o firmamento, cobiçou duas moças-estrelas para serem suas mulheres. Elas, ao perceberem seu desejo, desceram até a aldeia e convenceram-no a subir. Ao chegarem à casa das moças-estrelas, seus irmãos o mataram durante um jogo de cabeça, katikanakisu ou

hairanakisu, com bola de mangaba, como faziam com aqueles que pretendiam se casar com

suas irmãs. Depois de cozinhá-lo, os irmãos o comeram. Tristes, as moças-estrelas saíram em direção ao campo, com seus cestos-cargueiros, cataram coco tucum-do-campo, alokisu, fruta de pau-de-tucano, yalananulakisu, e casca de perobinha-do-campo, waukatsu. Juntaram o resultado da coleta, cuspiram e sopraram para cima, transformando essa mistura em uma manada de porco queixada. Os irmãos, depois de informados sobre os animais, saíram em expedição de caça, mas perderam-se no caminho e morreram. As mulheres e as crianças dessa aldeia, uma a uma, sofreram acidentes que as levaram à morte. Sozinhas, as mulheres-estrelas, ao ouvirem o canto do urutau, receosas da solidão a que foram condenadas, resolveram morrer queimadas na fogueira. Os Nambiquara acreditam que a Nebulosa menor representa a irmã mais nova, dawãyra ou kaundesu, enquanto ardia no fogo248.

Haloa, o campo, é para os Halotesu, Wakalitesu, Sawentesu, Kithãulhu e Manduca

o lugar apropriado ao estabelecimento de uma aldeia que deve estar relativamente distante do rio e da mata. Aí fazem suas moradas, trabalham, namoram, casam, criam seus filhos, envelhecem e enterram seus mortos. Vista de longe, do alto de pequenas elevações, as aldeias destoam do restante da paisagem. Abrem-se como clareira, refletida pela luz do sol que incide diretamente sobre a areia branca do pátio, rodeada pela vegetação rala do cerrado.

247 KITHÃULU, Renê. Idem, p. 16-17.

248 Consultar PEREIRA, Adalberto Holanda. Origem das nebulosas. O Pensamento Mítico dos Nambikwára.

153 Cândido Mariano da Silva Rondon fornece as primeiras informações a respeito de aldeias e casas, entre elas, uma casa destinada à guarda e ao aprendizado de um instrumento musical entoado pelos homens, a flauta de taquara, katīnsu, importante para o plantio das roças:

Ao anoitecer de 21, Toloiri deu-me a notícia de haver encontrado duas aldeias Nhambiquaras, das quais uma acabava de ser abandonada. No dia seguinte, chegávamos a esta aldeia, que se compunha de um rancho grande, dois menores de forma de zimbório, e um aberto, de forma de setor esférico. Num dos ranchos pequenos encontramos quatro flautas de taquara, semelhantes às dos Parecis, e uma grande cabaça, aberta na parte

No documento Wanintesu : um construtor do mundo Nambiquara (páginas 146-200)

Documentos relacionados