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Os Nambiquara e suas artes de fazer

No “País dos Nambiquara”

Anteriormente à minha permanência na aldeia Nambiquara, jamais havia estado em qualquer agrupamento indígena. Imaginei o espaço que viveria, desde os preparativos para a viagem – despedida dos amigos, providência da vacinação profilática necessária, principalmente a contra a Febre Amarela, seleção de livros e da vestimenta adequada à vida na aldeia. Com os “olhos da mente”71 idealizei a aldeia que passaria a ser minha morada. Em situações distintas, muitos escritores imaginaram suas cidades ideais... Na literatura brasileira, Ferreira Gullar escreve suas vinte e três “cidades inventadas”72; Graciliano Ramos, sua Tatipirun73.

Conheci os Nambiquara na primavera de 1982. Ao deixar o Rio de Janeiro, minha cidade natal, encontrava-me recém-contratada como professora da FUNAI. A atribuição recebida foi a de implantar um programa de educação escolar indígena direcionado às suas necessidades emergentes, principalmente àquelas decorrentes do asfaltamento da rodovia Marechal Rondon, a BR-364, antiga 029. Esperava-se que essa estrada atraísse um enorme contingente de trabalhadores de diferentes partes do país, e sua abertura atingiria vários territórios indígenas, dentre eles, o dos Nambiquara. Como um dos condicionantes do Banco Mundial, instituição financiadora, as populações que viviam às suas margens, índias e não-indígenas, deveriam receber atenção especial para que não

71 Termo que tomo emprestado de Ítalo Calvino. Consultar CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução

Diogo Mainardi. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 87.

72 GULLAR, Ferreira. Cidades inventadas. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2000.

73 RAMOS, Graciliano. A terra dos meninos pelados. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999 (Prêmio Monteiro

Lobato para os livros de Graciliano Ramos publicados no exterior, concedido em 1937 pelo Ministério da Educação e Cultura).

57 sofressem tanto com o impacto que a movimentação da estrada traria às suas vidas. Para o antropólogo David Price, estudioso dos índios Nambiquara e que também de 1974 a 1976 assumiu, na FUNAI, o cargo de coordenador do Projeto Nambikwara e, em 1980, a consultoria do Banco Mundial, órgão financiador do Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil (POLONOROESTE), implantado nas áreas da Amazônia Legal,

[...] os índios tiveram o infortúnio de estar no caminho da rodovia de mil milhas, a ser construída ao longo da fronteira oeste do Brasil. A rodovia, agora completa, é parte do controvertido Projeto Polonoroeste, que tentou desenvolver, em uma única operação, uma área do tamanho da Califórnia. O projeto custou mais de um bilhão de dólares, aproximadamente 1/3 do que foi levantado como empréstimo garantido pelo Banco Mundial. Morando no meio da região condenada pelo desenvolvimento estavam os Nambiquara, um povo livre e orgulhoso, muitos dos quais tinham pouco conhecimento dos ocidentais. [...] As sociedades tradicionais, pequenas demais para revidar, são varridas para o lado; os sobreviventes são cercados e deixados para trás. Os princípios gerais do que aconteceu aos Nambiquara no Brasil nas mãos do Banco Mundial são os mesmos encontrados em muitos outros países do Terceiro Mundo, onde as sociedades tribais estão sendo esmagadas com a ajuda das nações industrialmente desenvolvidas74.

Naquela época, a rodovia, na minha concepção, exercia uma mistura de fascínio e desassossego. Ao mesmo tempo em que vislumbrava a possibilidade de adentrar à “longínqua” e “misteriosa” Amazônia, por outro estava cônscia da multiplicidade de acontecimentos que interfeririam nos modos de viver dos povos indígenas, em conseqüência dos deslocamentos de grupos sociais oriundos de diversas regiões brasileiras.

Ao sair da BR-364, limite Oeste da Reserva Indígena Nambikwara, hoje Terra Indígena Nambikwara, tomando caminho com revestimento precário de cascalho, já

74 No original, lê-se: “[...] the Indians had the misfortune to be in the way of a 1,000-mile highway to be built

along Brasil’s western frontier. The highway, now complete, is part of the controversial Polonoroeste projecto, which attempted to develop, in a single operation, an area the size of California. The project cost more than $1 billion, about one-third of which was raised as loans guaranteed by the World Bank. Living in the middle of the region slated for development were the Nambiquara, a free and proud people, many of whom had little previous knowledge of Westerneres. […] Traditional societies too small to fight back are swept aside; survivors are surrounded and left behind. The general principles of what happened to the Nambiquara in Brazil at he hands of the World Bank are the same as those found in many other Third World countries where tribal societies are being crushed with help from industrially developed nations. PRICE, Paul David. Before the bulldozer: the nambiquara indians & the World Bank. Washington, Seven Locks Press, 1989, p. 2. Tradução livre de Anna Maria Ribeiro F. M. Costa e Odila Watzel.

58 castigado pelo trânsito intenso de ônibus e caminhões, a viagem continuava por uma estrada vicinal que levava a diversas aldeias. Nesse território, minha primeira impressão foi ofuscada pela densa escuridão da noite que afogou a paisagem circundante. A luz dos faróis da Toyota75 que me conduzia, estampava um cenário amarelado. Outrora caracterizada por extensa formação savânica que cobria grande parte do platô do Brasil Central, a vegetação do cerrado formava uma paisagem desconhecida, distante daquela presenteada pela Mata Atlântica e que ainda se espalha por uma parte do litoral brasileiro, em especial, a do Rio de Janeiro.

Ansiava por conhecer os campos cerrados, com suas árvores retorcidas, a exuberância das matas ciliares ao longo dos rios e as veredas orladas de buritis. Confirmava, então, o que a literatura me fez acreditar ao percorrer “Os sertões: campanha de canudos”, de Euclides da Cunha, e sentir por que “[...] a travessia das veredas sertanejas é mais exaustiva que a de uma estepe nua”76. Com João Guimarães Rosa, em “Grande sertões: veredas”, minha imaginação foi aguçada ao evidenciar, no decorrer da narrativa, a beleza das veredas banhadas com a “água azulada” do buritizal, associada à sua geografia imaginária77.

Mas visualmente foi a arte de Percy Lau78, peruano de Arequipa, que me conduziu às baixadas inundáveis dos buritizais, de solo brejoso, e ao campo cerrado. Seus desenhos a

75 Nos idos de 1980, os Postos Indígenas da área Nambiquara possuíam uma viatura Toyota e eram assistidos

por um Indigenista e uma Atendente de Enfermagem. A viatura atendia as atividades de vigilância dos limites da terra indígena, atividades produtivas, abertura de estradas vicinais, além do serviço de saúde. Cada um dos Postos Indígenas recebia uma cota de combustível que diferenciava conforme a sua distância à cidade de Vilhena, Rondônia, sede da FUNAI, bem como os projetos em andamento. Ao chegar ao Posto Indígena Nambikwara, na aldeia Sapezal, hoje Central, além do Indigenista e Atendente de Enfermagem, havia um Tratorista e um Auxiliar de Serviços Gerais, índios contratados pela FUNAI com recursos provenientes do POLONOROESTE. Há alguns anos, o Tratorista José Roberto Nambiquara, do grupo Halotesu, resolveu por conta própria aposentar-se e viver de seus vencimentos, na aldeia Camararé, com Melodia Kithãulhu, esposa de seu segundo casamento, suas filhas e netos. José Benedito Nambiquara, provavelmente de um grupo da Serra do Norte, aposentou-se por idade e tempo de serviço e vive com sua esposa Tereza na cidade de Vilhena, em Rondônia.

76 CUNHA, Euclydes da. Os sertões (Campanha de canudos). 7. ed. corrigida. Rio de Janeiro: Livraria

Francisco Alves, Paulo de Azevedo & Cia., 1923, p. 38.

77 GUIMARÃES ROSA, João. Grande sertão: veredas. São Paulo: Círculo do Livro, 1984.

78 Percy Lau (1903-1972), em trinta anos de atividades desenvolvidas no Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE), ilustrou várias de suas publicações com tipos e aspectos do Brasil. O acervo iconográfico de Percy Lau é composto por gravuras, desenhos e capas de livros inspirados em suas viagens pelo Brasil. O Museu Nacional de Belas Artes e o Centro Cultural Justiça Federal, ambos na cidade do Rio de Janeiro, organizaram em conjunto exposições de parte desse acervo, “Conheça o Brasil: conheça Percy Lau”, tentativas para divulgar sua arte e sua pessoa, pois morreu no anonimato. Para este estudo, veja especialmente

59 bico de pena, revestidos de técnica e precisão e caracterizados por traços artísticos inconfundíveis e identitários, juntaram-se ao cenário desenhado à aldeia onde passaria a morar.

Não me recordo de quanto tempo depois disso conheci esse tipo de vegetação. Mas a temporalidade, neste caso, é irrelevante. Para que as veredas tropicais possam ser entendidas é preciso viver no cerrado e saber do esforço dos arbustos, com revestimentos espessos que, como armaduras naturais, os protegem das chamas do fogo e se retorcem para vencer a aridez do solo e dos longos períodos de seca; conhecer idênticos vigores da fauna e dos homens e entender a interdependência que os entrelaça nesse mesmo bioma. Assim vivem os Nambiquara, parte integrante dessa paisagem. Na aldeia, o dia a dia ensinava-me sobre a importância que os índios atribuem ao buriti, vegetal mantenedor do sagrado.

Vislumbrar com os “olhos da mente” um “oásis” de buritizais nos campos cerrados, por mais que este cenário estivesse em mim imaginado e, até mesmo, conhecido, passar a estar nele causava profundo estranhamento. Diante do desconhecido, precisava reconstruir a aldeia que havia idealizado, tendo por base tudo aquilo que apreendi na literatura referente à vida nos campos áridos.

Ao descer da Toyota naquela noite de “Lua Escondida”, como denominam a Lua Nova, ãsikanxah-¸com o céu repleto de estrelas, numa quantidade estonteante, os índios me cercaram. Homens, mulheres e crianças aguardavam a nova professora, anteriormente anunciada. A possibilidade de a escola voltar a funcionar deixava-os alegres, fato que originou muita expectativa com a minha chegada.

Nos primeiros meses, na aldeia, a convivência com os funcionários da FUNAI – o Indigenista79 José Eduardo Costa e a Atendente de Enfermagem Maria Nalva Barão – e especialmente com as famílias de Anita e Lourenço Kithãulhu, Carlinda e Eutímio Kithãulhu e Madalena e Orivaldo Halotesu foi inesquecível e de uma importância ímpar no

as gravuras “Buritizal” e “Campo cerrado”, às páginas 407 e 410, respectivamente, em IBGE. Tipos e

aspectos do Brasil. Conselho Nacional de Geografia. 6. ed. aument. Rio de Janeiro: IBGE, 1956.

79 A carreira de Indigenista é oferecida pela FUNAI àqueles interessados em trabalhar diretamente com a

questão indígena. Depois de cursar diversas disciplinas em Brasília, os aprovados passam por um estágio obrigatório, na aldeia, durante três meses. Somente no concurso de 1985 foi permitida a inserção de mulheres. A área Nambiquara, nesse período, recebeu seis Indigenistas, quatro do sexo feminino. No ano de 2006, a FUNAI, em Brasília, abriu inscrições para um Curso de Indigenismo destinados aos funcionários lotados na própria sede, com 51 horas. Desta vez, o estágio não foi incluído nesta primeira etapa. A Operação Amazônia Nativa, antiga Operação Anchieta (OPAN), fundada em 1969, também oferece cursos nessa área.

60 tempo em que precisava adaptar-me à vida aldeã. A recepção dos índios em me aceitar e a vontade de desvendar parte daquele mundo responsabilizaram-se pela minha inserção no espaço tribal. Nesse período, entendido como de adaptação, foram feitas novas aprendizagens, desmontando visões de mundo que até então formava e levava comigo, associando-as àquela vivência com os Nambiquara.

Na aldeia, no interior de minha casa80, tinha a impressão de que o mundo exterior desaparecia e nada, além do espaço do meu quarto, continuava a existir. No escuro, a poucos metros da aldeia e em terreno mais elevado, os índios podiam saber dos meus movimentos. Suas duas janelas, protegidas por tela de nylon verde, para amenizar a presença marcante de borrachudos, katettxatasu, e lambe-olhos81, nĩnĩsu, à luz da vela, única iluminação de que dispunha, não me deixava ser engolida pela dimensão do escuro, emitindo-lhes sinais de que não havia adormecido.

Quando não ocorriam festividades e cerimônias de cura, a noite era reservada à leitura sobre etnografia indígena, literatura brasileira e estrangeira. Havia trazido do Rio de Janeiro parte dos meus livros e logo organizei uma “biblioteca”, acomodando os exemplares em prateleiras de madeira, intercaladas por tijolos empilhados. Com uma vela fixa a um castiçal improvisado, percorria lentamente as estantes, a iluminar as lombadas dos livros, tornando-as resplandecentes. Na aldeia, essa “biblioteca” consistia em um espaço fechado, um sistema de regras próprias que, agora não mais inconsciente, pretendia substituir ou traduzir as do universo ao redor. Esses livros passaram a ser a representação, mesmo que fragmentada, daquilo que havia deixado na cidade e que ali estava guardada entre suas capas, nas entrelinhas, nas anotações nas margens, naquilo que havia sublinhado, em algum papel esquecido entre as páginas; ainda preenchiam os grandes espaços da

80 Na aldeia Sapezal, hoje Central, a poucos metros do córrego Água Limpa, morei em uma casa de madeira,

com telhado de zinco, com vários cômodos, até mesmo um banheiro interditado por falta d’água encanada. Essa casa foi construída por um lingüista norte-americano do Summer Institute of Linguistic (SIL), Sr. Eduardo, que morou na aldeia Sapezal por vários anos, na companhia de sua esposa, Berenice. Hoje, essa casa surge aos meus olhos fragilizada, vulnerável aos abusos do tempo e dos funcionários da FUNAI que passaram por ela. A casa foi atacada de tinta óleo verde nas paredes externas de madeira e as palmeiras de bocaiúva foram derrubadas a machado porque um raio as atingiu. Para compreender o espaço da casa, na perspectiva da poética do espaço, as leituras que fiz de Bachelard foram fundamentais. Ver BACHELARD, Gaston. A casa. Do porão ao sótão. O sentido da cabana. A poética do espaço. Tradução Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 199-221.

81 Borrachudos: insetos da família dos dípteros, da família simulídeos; lambe-olhos: designação às abelhas da

família dos melipônidas (Mellipona duckei); FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da

61 saudade, de lembranças de uma vida que parecia estar tão distante dali. Num canto do quarto o toca-discos portátil, movido a pilhas, e um long play a rodar, a lembrança da passagem de Lévi-Strauss e Luiz de Castro Faria, em terras Nambiquara: “[...] fizemos ouvir a nossa vitrola, para diversão dos índios, e nossa também...82” Na expedição de 1908, da mesma forma, Cândido Mariano da Silva Rondon instalou um gramofone Odeon no interior de uma habitação indígena, ao conquistar “[...] os índios, primeiro cortejando-os com presentes e depois atraindo-os ao seu acampamento com um fonógrafo que punha a tocar à noite, enviando a melodia de uma ópera wagneriana floresta adentro como se fosse o canto de uma sereia maravilhosa e incorpórea”83.

Como um pensamento puxa outro, é claro que durante o dia essas histórias permeavam minhas atividades rotineiras, mas chegavam em menor intensidade. Para mim, uma estrangeira em viagem ao “País dos Nambiquara”84, o aprendizado dos signos era urgente. Estar atenta, em sinal de alerta a todo instante, compreendia num esforço contínuo de lê-los e interpretá-los. E para que aquela experiência não se fechasse em si mesma, deveria estar constantemente em viagem exploratória ao “Novo Mundo”, já que os emblemas são específicos e constituem a matéria de cada vivência.

No passar dos dias, sentia que a barreira invisível que me confinava à categoria de uma estrangeira desconhecida e que me deixava ainda à margem do espaço da aldeia dissolvia-se pouco a pouco. Preocupava-me no comprometimento que uma palavra, um gesto indevido poderiam fragilizar a acolhida que os índios estavam proporcionando-me.

Mesmo instruída sobre os aspectos do dia a dia dos índios pela leitura daqueles que estiveram entre os Nambiquara e pelo pessoal da FUNAI, estranhei na aldeia o caráter do espaço cotidiano, a céu aberto. Mas, o protocolo existe. Está ali a impor regras de acesso diferenciado para homens e mulheres. Na condição de não-indígena, kwajantisu, muitos espaços abriram-se a mim; outros permanecem até hoje irremediavelmente fechados.

82 FARIA, Luiz de Castro. Um outro olhar: diário da Expedição à Serra do Norte. Rio de Janeiro: Ouro Sobre

Azul, 2001, p. 83.

83 MILLARD, Candice. O rio da dúvida. A sombria viagem de Theodore Roosevelt e Rondon pela Amazônia.

São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 119. Sobre essa expedição, consultar ROOSEVELT, Theodore.

Nas selvas do Brasil. Tradução Luiz Guimarães Júnior. 2. ed. Serviço de Informação agrícola. Ministério da

Agricultura. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948.

84 Inspirei-me nos escritos inéditos de Mara Vanessa Dutra, Indigenista da FUNAI entre os anos de 1987-

1988, intitulados “País dos Nambiquara”, uma coletânea de textos referentes a alguns episódios ocorridos entre os grupos do cerrado, à época de sua gestão.

62 Adotava, em especial, o escutar, o participar de conversas e um sem fim de observações direcionadas aos seus encargos cotidianos. Interrogar os índios de maneira incessante não os deixava à vontade; pelo contrário, importunava-os, quando se fechavam em silêncio, respondiam de maneira evasiva ou tornavam-se escapadiços. Por inúmeras vezes meu aprender desenhava-se de forma súbita, sem que o tenha buscado, quando eliminava de minhas intenções uma infinidade de indagações. Mas trabalhar a dois transformava esse processo de descoberta menos árduo, já que eu e o Indigenista José Eduardo, agora casados, compartilhávamos constantemente nossas impressões e dúvidas, a desfrutar de interpretações minuciosas que contribuíram para elucidar uma série de questões, quase sempre ao final do dia, quando os índios se recolhiam.

Meu olhar, sempre muito atento, se direcionava a uma multiplicidade de campos, ainda por explorar. A inexatidão das coisas, das idéias e até mesmo de comportamentos hoje me faz pensar que “[...] compreender menos, ser ingênuos, espantar-se, são reações que podem nos levar a enxergar mais, a apreender algo mais profundo, mais próximo da natureza”85. Essa preocupação também se circunscreve nos escritos de Deleuze:

Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os signos são objetos de um aprendizado temporal, não de um saber abstrato. Aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe aprendiz que não seja “egiptólogo” de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro tornando-se sensível aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da doença. A vocação é sempre uma predestinação com relação a signos. Tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos86.

A continuidade das leituras e o desejo de compulsar outros livros clamavam por visitar livrarias, bibliotecas. Em Vilhena, Rondônia, cidade à qual estava ligada, naquela época a mais próxima da aldeia e onde se encontra até hoje a sede da FUNAI, não possuía nenhum desses espaços. Para abrandar essa carência, estava associada ao Círculo do Livro e periodicamente passava a receber exemplares pelo reembolso postal. Esta instituição

85 GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. Tradução Eduardo Brandão. São

Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 29.

86 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Tradução Antonio Piquet e Roberto Machado. 2. ed. Rio de Janeiro:

63 disponibilizava o contato com bom número de obras, numa “livraria”. Entretanto, essa diversidade, ofertada em um catálogo bimensal, não atendia grande parte de meus desejos literários. Poucas vezes oferecia um livro na área das Ciências Humanas. Mas, em compensação, excelentes romances87.

À disposição de alguns funcionários da FUNAI havia a Caixa Postal 57. Aquele estreito e cumprido compartimento recebia cartas e avisos de encomendas do conjunto de funcionários. Ele significava a ligação com um elo perdido, um mundo deixado para trás, pois, por mais que a simplicidade da vida Nambiquara nos envolvesse em um manto de magia e encanto, a saudade das pessoas e das coisas que nos imbuíam de sinais identitários jamais deixava de existir.

Lentamente eram incorporados novos livros à “biblioteca” da aldeia. Mas, “[...] um livro clama inesperadamente por outro, criando alianças entre séculos e culturas

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