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A anima mundi, a natureza e a flor de udumbara

No documento monicagiraldohortegas (páginas 123-127)

CAPÍTULO 1: INTRODUÇÃO

2.2 O VAZIO DO CENTRO DA MANDALA

4.3.1 A anima mundi, a natureza e a flor de udumbara

Uma das possíveis interpretações históricas remontam o início do zen budismo ao sermão da flor de udumbara153 proferido por Buda Shakyamuni. Nele, Buda gira uma flor em sua mão e de todos os discípulos ali sentados, apenas Kasyapa entendeu a profundidade do ensinamento (JUNG, 2012e, p. 77). Esta iluminação, satori, ou a perda do eu, avança para o entendimento de que Deus vive na simplicidade da vida e da natureza, e se expressa em sua totalidade no simples florescer de uma flor. Já dizia Angelus Silesius (1624-1677) que “a rosa não tem porquê. Floresce porque floresce”. O zen ainda iria além e diria que a flor floresce como floresce (UEDA, 2004, p. 119), quebrando com toda a lógica de especulações interpretativas. O que prevalece não é o intelecto ou a razão.

A análise sobre a flor no zen budismo é ampla e profunda. Um dos princípios a que ela se refere é o da teoria da originação interdependente, onde tudo o que existe é interconectado e dependente e também o da teoria da vacuidade, onde toda e qualquer

      

153 Segundo Carvalho, “a udumbara é uma figueira da família da amoreira (Ficus glomerata). Suas flores crescem em torno do fruto e assim se parecem mais a uma casca que a uma flor. Por isso, as pessoas na India antiga consideravam a udumbara como uma árvore sem flor. Usavam-na então como símbolo do que ocorre muito raramente (no caso mais direto, a própria iluminação de Buda). No Sutra do Lótus se diz: ‘O Dharma é pregado muito raramente, como a flor de udumbara que aparece uma vez em cada era” (CARVALHO, 2006, p. 16).

 

realidade é vacuidade (ANDRADE, 2015, p. 160). Ambas as teorias se inter-relacionam e se aproximam da análise junguiana sobre o conceito de anima mundi e uma possível interligação com o si-mesmo, ou seja, a anima do interior do homem que se estende para a anima do mundo.

Eihei Dogen (1200-1253), fundador da escola soto de zen-budismo trabalhou com ambos os princípios dizendo serem eles fundamentais para o budismo. Os princípios da originação interdependente e da vacuidade, foram chamados por Dogen de

kuge, flores celestes, flores do espaço, ou flores do vazio, para representar a dimensão

irreal e impermanente do mundo. “A flor é afirmada como flor, ao mesmo tempo que é também afirmada a sua codependência de originação – isto é, a sua vacuidade” (CARVALHO, 2006, p. 5). Ainda sobre a flor, nas palavras de Orimo, na “eclosão de uma só flor, o mundo inteiro se transforma, pois esse mundo é um mundo de ressonância onde todos os existentes fazem eco uns aos outros, posto que este eco do universo seja audível à nossa escuta concreta” (ORIMO apud TEIXEIRA, 2012, p. 707). A flor em sua verdadeira realidade não se distingue do homem que a vê. O homem e a flor se fundem em uma unidade absoluta (IZUTSU, 2009, p. 19).

Dogen fala da vitalidade de todo o universo, inclusive do que concebemos como seres inanimados, e da relação imediata entre todas as coisas. Distinto da concepção ocidental tradicional, um poço olha, uma montanha caminha, flores giram (CARVALHO, 2006, p. 15). A profundidade do sentido do giro da flor se refere à flor que o próprio Buda colheu para passar seus ensinamentos. Na obra de Dogen, esta flor se refere a tudo o que se faz e ao que se é, ao ser em si e a todos os seres existentes, todos conectados e unificados. Segundo este mestre zen, somos “tão somente um giro da flor de udumbara” (DOGEN apud CARVALHO, 2006, p. 17). Já para Jung, esta mesma visão se torna radical. Ela aponta para uma ruptura de uma visão ocidental tradicional, nem sempre compreendida pelos seus pares.

O si-mesmo que avança e se relaciona com a anima mundi, aponta para um si- mesmo que vive imerso na própria vida. “Nós não vivemos o si-mesmo, ele se vive” (JUNG, 2013f, p. 421), dizia Jung. Esta construção do ser, a partir do vazio absoluto, seria um despojamento do ser humano para que seja possível atingir o espaço profundo da religiosidade. Um espaço puro e simples onde as flores simplesmente desabrocham. A natureza seria o si-mesmo a partir do nada. É uma copertença do nada e da natureza (UEDA, 2008, p. 172). Um espaço onde a consciência é presença. Esta presença, esta

 

atenção plena ao momento presente, esta interconexão com o todo, é exemplificada no movimento da natureza e no comportamento do animal. Na singela poesia de Dogen temos que: “O eco dos vales e o grito dos símios nas alturas não fazem senão recitar sem cessar as escrituras” (DOGEN apud FAURE, 1987, p. 25). O animal é vivido pela vida. Para Jung, o cristianismo suprimiu o elemento animal (JUNG, 2013f, p. 298). Em suas palavras, “quem nunca vive seu animal vai tratar forçosamente seu irmão como um animal. Humilha-te e vive teu animal [...]” (JUNG, 2013f, p. 303). Esta vivência plena, relatada sobre o reino animal, e distinta do homem que vive a partir do eu, é também lembrada na poesia de Rilke (1875-1926):

Com todos os olhos a criatura vê / o Aberto. Só os nossos olhos estão / como que ao contrário e envolvem-na toda / como armadilhas em volta da sua saída livre. / O que no exterior está, sabemo-lo apenas através da face / do animal; pois já em pequena / voltamos a criança e obrigamo-la a olhar para trás, / para a Forma e não para o Aberto, tão / profundo na fisionomia do animal. Liberto da morte. / Nós vemo-la, só nós; o animal livre, pelo contrário, / tem atrás e si o seu declínio / e diante de si Deus e quando avança, avança / para a eternidade, tal como jorram as fontes (RILKE).

O aberto ou o sentimento de abertura é o que acontece quando apenas se deixa ir, se vive (UEDA, 2004, p. 29). O mundo, a partir desta abertura infinita, é experimentado em toda a sua profundidade (UEDA, 2004, p. 42). Esta diferenciação entre viver a partir do eu e viver a partir de um si-mesmo que se estende e se mistura com a alma do mundo foi percebida e questionada por Jung. Porém, não está tão clara a ligação entre o si-mesmo, Deus e a anima mundi em sua obra. Ele a insinua. Na segunda conferência de Tavistock154, com a idade de 60 anos, Jung discute esta temática. Neste momento, porém, ele não pretende aprofundar esta questão, dizendo que não seria tarefa de um profissional de saúde. Caberia melhor para um filósofo, devido a sua complexidade (JUNG, 2011a, p. 76). Em suas palavras:

Trata-se de um problema filosófico e a sua conclusão requer um bom domínio da teoria do conhecimento. O mundo é aquilo que imaginamos. Só uma pessoa infantil julgaria que o mundo é realmente aquilo que pensamos. A imagem do mundo é uma projeção do mundo do si-mesmo, assim como este é uma introjeção do mundo. Mas apenas a mente de um filósofo caminharia além da imagem comum, em que existem coisas estáticas e isoladas. Se fôssemos além de tais imagens, causaríamos um terremoto na mente comum, o cosmo inteiro seria abalado, transformando as mais sagradas convicções e esperanças. E não vejo por que haveríamos de provocar tais

      

 

inquietações. Não é bom nem para os pacientes, nem para os médicos; talvez seja bom para os filósofos (JUNG, 2011a, p. 76).

Esta projeção é, segundo o zen budismo, a própria realidade que se reflete ou se realiza no outro. O homem no mundo e o mundo no homem. O mundo seria uma só mente e tudo o que existe seria uma única cognição. O real se vê no aparente e o aparente se vê no real. Não há diferença entre ambos (IZUTSU, 2009, p. 43). Seria isto o que Jung estaria falando sobre o mundo e o si-mesmo? Em suas Memórias, Jung diz aprofundar o significado do conceito de si-mesmo a partir de um sonho que tivera. Narra que sonhara com um iogue meditando. Quando se aproxima vê que era seu próprio rosto. Despertando sobressaltado, ele comenta: “Ah! Eis aquele que me medita. Ele sonha e esse sonho sou eu” (JUNG, 1989, p. 280). Desta forma, falar sobre projeção e introjeção é falar também sobre o real, muito além do que a visão ocidental poderia conceber e compreender.

Não ousaria Jung adentrar por este campo teórico? Ofereceu suas ideias para outra área do conhecimento? Ele próprio dizia que muito ainda haveria a ser pesquisado. Por mais que tenha abordado o tema da anima mundi, sua opção esteve em deixar este conceito a parte da discussão sobre o si-mesmo e sobre Deus. Assim, definiu sua personalidade como dividida em duas esferas distintas, sendo que a primeira lidaria com a vida a partir da consciência do eu. Já a segunda, chamada de personalidade profunda, a partir do si-mesmo, é segundo ele, a que aponta para o reconhecimento e a importância de Deus e da religiosidade. A anima mundi não foi aqui incluída. Em suas palavras:

Por isso quem observa de fora aquilo que acontece só vê o que já passou e que sempre é a mesma coisa. Mas quem olha de dentro sabe que tudo é novo. As coisas que acontecem são sempre as mesmas. Mas a profundeza criadora da pessoa não é sempre a mesma. As coisas não significam nada, só significam em nós [...] Este sentido das coisas é o sentido supremo, que não está nas coisas nem na alma, mas o Deus que está entre as coisas e a alma, o medianeiro da vida, o caminho, a ponte e a ultrapassagem. Minha alma é meu sentido supremo, minha imagem de Deus, não o próprio Deus nem o próprio sentido supremo (JUNG, 2013f, p. 138).

Seriam estas duas personalidades suficientes para mostrar uma construção de ser vivida a partir do mergulho no vazio absoluto e que se alarga para além de si e abarca o mundo?

 

No documento monicagiraldohortegas (páginas 123-127)

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