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A antiguidade e o simbólico

Em muitas democracias gregas havia reis permanentes cujas responsabilidades até onde as conhecemos, parecem ter sido o sacerdócio e ter girado em torno do controle da Pira comum do estado. Naqueles dias, a divindade que alcançava um rei não era uma forma vazia de se dizer, mas a expressão de uma soberania da crença. Os reis eram reverenciados, em muitos casos não apenas como simples sacerdotes, como intercessores entre o homem e deus, mas sendo eles próprios deuses. Desses

35 Mauss, M. “Esboço de uma teoria geral da magia” in Sociologia e Antropologia, p. 51 36 Mello e Souza, G. “O desenho primitivo” in Exercícios de leitura, p. 59.

deuses, era freqüente esperar que eles fizessem a chuva cair, ou o sol brilhar nas respectivas estações, as sementes crescerem e assim por diante.37

Segundo Frazer, em O ramo dourado, esta combinação de funções sacerdotais com a autoridade real, como existia na Grécia antiga, era familiar na Ásia Menor, China, Madagascar, Roma, leste da África, América Central e outros. Havia uma crença de que esses reis-sacerdotes pudessem controlar as leis da natureza, e talvez possamos ainda retificar que não seriam eles deuses, mas mágicos portadores da “onipotência dos pensamentos”. Teríamos assim, na Antiguidade, seja na Grécia seja em outras partes do mundo, em culturas escritas ou não, uma manutenção do modo primitivo de pensamento, o pensamento mágico e simbólico. Frazer nos afirma ainda que, “por mais estranha que nos pareça essa expectativa”, isto é, essa espera de que o mundo se comporte conforme a vontade desses deuses-reis, ela “condiz perfeitamente com os modos do pensamento primitivo”.38

Vimos o pensamento mágico simbólico como formador do pensamento e da linguagem nos primórdios da cultura humana, modo esse que perduraria enquanto tal e enquanto estrutura social e religiosa em muitas culturas tribais, fossem elas contemporâneas, de poucos séculos anteriores ao nosso, ou mesmo pertencentes à Antiguidade. De acordo Cornford, em Principium

SapientiÆ, o “aparecimento dos deuses antropomórficos” já pressupõe um certo distanciamento e

separação entre a natureza e o homem, o que não ocorre “ao homem da fase primitiva”, ou seja, da Antiguidade, em especial da Grécia arcaica. Nesta fase, o antropomorfismo pode ser explicado pela reunião de funções na figura do homem divino, de um indivíduo que é mortal, mas, enquanto rei, lhe são atribuídas funções impessoais e divinas, funções “cuja finalidade é a renovação das forças tanto da natureza universal como da sociedade humana”39

. Como nos diz o

37 Frazer. J. The golden bough, p. 10 38 Idem

epigrama de uma antologia grega: “Se Homero foi um deus, a ele templos se ergam. Se foi um mortal, como deus porém, venerado seja.”40

Além dos reis-sacerdotes e “para lá do horizonte dos Gregos antigos”, os poetas- profetas-sábios são figuras que abrigavam diversos atributos e nas quais confluíam diversas funções. Esta união revela, portanto, “a crença implícita de que toda a sabedoria excepcional é a prerrogativa de pessoas inspiradas ou mânticas, que estão em contato com o outro mundo dos deuses e dos espíritos”.41 Um exemplo dessa indistinção entre o poeta, o profeta e o sábio é a

“figura complexa do xamã grego de Castrén que conhece o passado, o futuro e tudo o que acontece no presente”.42 Os xamãs eram, segundo Cornford, cantores, poetas, músicos,

adivinhos, sacerdotes e médicos, aqueles que guardam as tradições religiosas populares e as lendas antigas. O xamã era um intermediário entre os seus companheiros de tribo e o mundo dos espíritos, uma espécie de mensageiro divino e humano, como o rei-sacerdote, que aparece entre os povos que não abraçaram o cristianismo, o budismo ou o islamismo.

Podemos encontrar também,

através do mito e dos ritos babilônios, um pensamento em que não fica estabelecida entre o homem, o mundo e os deuses uma nítida distinção de planos. O poder divino concentra-se ainda na figura do rei. O ordenamento do mundo e a regulação do ciclo das estações aparecem integrados na atividade real: são aspectos da função de soberania.43

“A representação ritualística e mimética do xamã destina-se a simbolizar esta viagem ao outro mundo de maneira convincente.”44 Os xamãs, ou sábios, não constituíam uma classe de

pessoas separada da sociedade, mas compunham individualidades que viviam à margem desta e “se singularizavam por sua vida ascética”: normalmente retiravam-se para lugares isolados, praticavam a abstinência sexual, jejuavam etc. Uma representação ritualística convincente

40 Beierwaltes, W. apud Schelling, F.W.J. Filosofia da arte. p. 79 41 Cornford, F. M. Principium SapientiÆ, p. 145

42 Cornford, F. M. Principium SapientiÆ, p. 165 43 Vernant, J-P. Mito e pensamento entre os gregos, p. 353 44 Cornford, F. M. Principium SapientiÆ, p. 165

envolvia o vôo da própria alma, o abandono do corpo do xamã e posterior reintegração conforme sua vontade. A viagem da alma poderia mesmo envolver o deslocamento dos corpos, fazendo com que esses acordassem, de uma “espécie de sono cataléptico”, distantes de onde jaziam anteriormente.45

Isso nos mostra que os ritos e os mitos da Antiguidade são as formas de expressão dessa época. “O mito era uma narrativa, [...] contava a série das ações ordenadoras do rei ou do deus, tal como o rito as mimetizava.”46 Talvez fossem a única forma de expressão assim como a figura

dos reis sacerdotes, para a qual confluíam todo o pensamento cultural, religioso e científico e toda a linguagem. Eram os próprios reis, a cultura, a religião, a ciência e a linguagem. Como nos apresenta Cornford em As paixões trágicas em Tucídides Mythistoricus:

O crescimento da pessoa mítica é algo completamente diferente da personificação alegórica de uma idéia abstrata. Apanhar uma abstração distintamente e depois assinalar seus atributos pessoais, é um procedimento que pode ocorrer apenas num estado avançado de cultura. Essas figuras que consideramos agora originalmente são não alegóricas, mas míticas; não personificações, mas pessoas.47

Inicialmente “Phobos é simplesmente o espírito que recai sobre um exército e inspira pânico. Eros o espírito que possui o amante, e assim por diante”.48 Phobos e Eros são entidades

temporárias, e só passarão a ser permanentes quando tiverem uma casa, isto é, um local onde possam ser evocados, seja uma árvore, seja uma pedra, qualquer local que lhes sirva de habitação, para depois serem preenchidas com suas histórias para poderem ser contadas. Isso significa dizer que o “culto asseguraria sua permanência; o mito nelas investiria com caráter e história”.49 Como

se a entidade pudesse através do rito e do mito surgir personificada de sua habitação. É dessa maneira que o crescimento da pessoa mítica é diferente da personificação alegórica, o emergir da

45 Vernant, J-P. Mito e pensamento entre os gregos, p. 362 46Vernant, J-P. Mito e pensamento entre os gregos, p. 354

47 Cornford, F. M. The tragic passions in Thucydides Mythistoricus, p. 230 48 Cornford, F. M. “The tragic passions” in Thucydides Mythistoricus, p. 229 49 Cornford, F. M. “The tragic passions” in Thucydides Mythistoricus, p. 230

entidade do local de sua habitação garante a esta, mesmo sendo ela uma abstração ou o resultado de um desejo, certa realidade, certa vida que também faz parte da natureza.

No trecho acima citado tem-se que a personificação das abstrações só ocorre em um estágio avançado da cultura, isto é, quando há uma distinção mais clara entre o homem e a natureza, ou quando as divindades do Olimpo se encontrarem completamente antropomorfizadas.50 Nesta fase em que a cultura é ainda rudimentar e primitiva, ou seja, mágica,

os deuses são eles mesmos pessoas e mitos: “Ora, era impossível esconder de si mesmo que de fato em Homero, [...] os mitos não são entendidos alegoricamente, mas com absoluta independência poética, como realidade por si.”51

De acordo com Cornford, Hesíodo e Homero preservam muito do que é primitivo, “mas eles preservam isso numa roupagem tardia e artificial”,52 e que muito antes deles se estende um

período em que havia uma produção popular e verdadeiramente primitiva dos mitos, de modo que as abstrações alcançavam a condição plena de vida e realidade.

No entanto, Schelling diz que a magia da poesia homérica e de toda a mitologia reside no fato de apresentarem uma significação alegórica enquanto possibilidade.53 Na mitologia,

podemos alegorizar tudo; a mitologia pode ganhar uma infinidade de significados, mas nela o sentido universal em oposição ao particular também só existe como possibilidade. Como nos atesta Torres Filho, “não ocorreria a ninguém o pensamento de encontrar alegoria nos mitos, se ela não estivesse efetivamente inscrita neles, se o símbolo não contivesse também a alegoria”.333

“Não foi Homero quem primeiro tornou aqueles mitos poética e simbolicamente independentes, eles já o eram no início”,334 e só posteriormente se tornaram alegóricos, somente

depois de se transformarem em personificações de abstrações é que passaram a significar algo. No início, o mito de Éris (Discórdia) apresentava seres reais, seres que eram ao mesmo tempo aquilo que significavam. Desse modo, temos aqui que o conceito simbólico exprime que o

50

Cornford, F. M. “The tragic passions” in Thucydides Mythistoricus, p. 231

51 Schelling, F.W.J. Filosofia da arte. p. 72

52 Cornford, F. M. “The tragic passions” in Thucydides Mythistoricus, p. 230 53

sentido particular não significa o universal, mas é ele mesmo o universal: “cada figura deve ser tomada como aquilo que é, pois, por isso mesmo, também é tomada como aquilo que significa. Aqui a significação é ao mesmo tempo o próprio ser.”335 Ainda segundo Schelling, “Os deuses

são (na mitologia) seres efetivamente existentes, que não são algo e significam algo outro, mas significam somente aquilo que são”.336 Nesse sentido, o simbólico é “uma reunião de ser e

significação”, ou ainda, “identidade que se enuncia completamente”, tendo, portanto, uma significação “tautegórica”, isto é, encerrada em si e voltada para si.

Poderíamos conjecturar que a finalidade última do pensamento simbólico primitivo residiria nele mesmo, seja ele pré-histórico ou prevalente na Antiguidade, enquanto exposição de si para si que é ao mesmo tempo particular e universal, expressas por entidades reais divinas e humanas ao mesmo tempo. Na medida em que os deuses são antropomorfizados e se tornam personificações abstratas passam a ser alegóricos e têm sua significação destituída de si mesmos; já não reúnem em si ser e significação, e passam a significar algo outro, por exemplo, que Apolo é o símbolo do Sol e desta forma não seria essa uma figura simbólica, mas uma figura disfarçada, travestida, alegorizada.

III. Culturas tribais: a permanência do simbólico

De acordo com Lévi-Strauss,

a palavra totem foi formada a partir do ojibwa, língua algonkina falada na região ao norte dos Grandes Lagos da América setentrional. A expressão ototeman tem como significado “ele é de meu parentesco”, e pode ser decomposta em: o inicial, prefixo da terceira pessoa, – t – para prevenir a conjunção de vogais, – m – possessivo, – an – sufixo da terceira pessoa; enfim – ote, que exprime o parentesco entre ego e um coirmão masculino ou feminino definindo assim o grupo exogâmico da geração do sujeito.54

Conforme essa explicação, o parentesco entre as pessoas de uma certa região, numa sociedade tribal (ou diria Freud: primitiva), é determinado pelo totem. O clã leva o nome do totem que determinou tanto a sua formação quanto a relação entre os membros pertencentes a ele. Essa descrição geral poderia ser compartilhada pela etnologia do século XIX, cuja teoria do totemismo, entretanto, é essencialmente incompatível com aquela de Lévi-Strauss. Sem entrar nos meandros do estruturalismo, iremos direto a Frazer, cujas elucubrações foram muito úteis para Freud.

Um totem seria um objeto que o selvagem devotaria respeito supersticioso por acreditar que entre sua própria pessoa e todas as coisas dessa espécie existisse um vínculo particular. [...] A conexão entre um homem e seu totem seria recíproca; o totem protegeria o homem e este, por sua vez, daria mostras de respeito ao totem de diversas maneiras. Poder-se-ia distinguir três variedades de totens, os clânicos (compartilhados por um clã inteiro e que são transmitidos por herança de uma geração a outra), os totens dos sexos (que pertencem a todos os homens e todas as mulheres da tribo com exclusão do outro sexo) e os totens individuais (próprios de uma única pessoa, mas que não são transmissíveis aos seus descendentes). O totem clânico envolveria a veneração de todo o clã que leva o seu nome, os membros do clã seriam considerados descendentes de um antepassado comum e do mesmo sangue, e estariam conectados por deveres comuns e pela crença em seu totem.55

Vemos assim que o totemismo, segundo Frazer, não envolve uma apresentação metafórica das relações entre os membros do clã e seu totem ou entre outros clãs, como sugere Lévi-Strauss, mas representa um verdadeiro “sistema religioso e social, que envolveriam aspectos de respeito e proteção entre os homens e seu totem, bem como obrigações entre os membros do clã, e ainda, com outros clãs”.56

Os rituais, as proibições, a veneração e a própria estruturação dos clãs baseados em seus totens, bem como os mitos criados e transmitidos em torno dos totens, fazem parte de um modo de pensamento mágico, mítico que para Wundt “constituiu outrora, em todas as partes, um estágio prévio dos posteriores desenvolvimentos e uma etapa de transição entre o estado dos

55

Frazer, J. apud Freud, S. Tótem y tabú” in Tótem y tabú y otras obras (1913-1914), v. XIII, p. 106

homens primitivos e a época de heróis e deuses”.57 Podemos afirmar, do ponto de vista dessa

análise, que a existência de culturas totêmicas e animistas no final do século XIX e início do século XX significa a permanência de culturas que preservavam tanto o pensamento quanto a linguagem simbólicos.

“O tabu dos animais, que consiste essencialmente na proibição de matá-los e comê-los, constitui o núcleo do totemismo.”58 Não somente os animais podem ser considerados tabu, mas

tudo o que “é portador, ou fonte”, de qualidades, que são ao mesmo tempo sagradas e impuras; algo do tabu carrega consigo a característica de ser concomitantemente estranho, perigoso e elevado além do habitual. “Nesta palavra e o sistema que ela designa se expressaria um fragmento da vida anímica cuja intelecção nos parece realmente distante”, mas talvez essas “proibições as quais obedecemos, instituídas pela moral e pelos costumes, possivelmente tiveram algum parentesco essencial com os tabus primitivos.”59

A principal conseqüência da característica do tabu como algo ao mesmo tempo impuro e sagrado é que, não importa quem leve esse título de tabu, seja um lugar, um homem ou um animal, nele “não é permitido tocar; com efeito, ele destaca um traço que definitivamente seguirá sendo comum para o sagrado e para o impuro: o horror ao seu contato”.60 Isso causaria tanto

veneração quanto aborrecimento, ou uma posição ambivalente frente ao tabu.

Freud, ao abordar os tabus primitivos por um viés psicanalítico, considerou que, assim como os primitivos, os neuróticos obsessivos também se impunham proibições-tabu, ainda que tabus individuais. Comenta que “se não estivesse habituado a chamá-los de enfermos obsessivos, a estes indivíduos deveria admitir que o nome mais apropriado para o seu estado seria enfermidade dos tabus”.61

57 Wundt, W. apud Freud, S. “Tótem y tabú” in Tótem y tabú y otras obras (1913-1914), v. XIII, p. 104 58 Wundt, W. apud Freud, S. “Tótem y tabú” in Tótem y tabú y otras obras (1913-1914), v. XIII, p. 32 59 Freud, S. “Tótem y tabú” in Tótem y tabú y otras obras (1913-1914), v. XIII, p. 31

60 Freud, S. “Tótem y tabú” in Tótem y tabú y otras obras (1913-1914), v. XIII,p. 33 61 Freud, S. “Tótem y tabú” in Tótem y tabú y otras obras (1913-1914), v. XIII, p. 34

Ainda que haja diversos pontos de concordância entre o uso dos tabus e os sintomas das neuroses obsessivas, consideraremos aqui apenas o significado da relação ambivalente frente à proibição. Freud nos apresenta um historial clínico típico de angústia de contato de uma criança pequena: na primeiríssima infância, trata-se de alguém que exteriorizou um intenso prazer de contato com os próprios genitais, que acabou por desencadear uma proibição externa, uma contrariedade a esse prazer de contato com algo exterior. Mesmo que essa proibição tenha sido aceita de maneira consciente, apoiada em forças internas, não foi possível cancelar a pulsão, apenas reprimi-la para o inconsciente. A principal implicação dessa proibição seria um conflito permanente no aparelho psíquico da criança, pois tanto os motivos da proibição quanto o prazer de contato permaneceriam desconhecidos, inconscientes. O resultado desse conflito é que elementos substitutos do prazer pulsional tentam escapar da constante ameaça proibitiva, mas “a cada novo impulso da libido reprimida, a proibição responde tornando-se mais severa”.62 Essa

proibição, antes externa, tornou-se interna, contribuindo para a manutenção de um conflito permanente. Porém, essa constante tensão exige descarga, e tal exigência é responsável pelas ações obsessivas, que não são nada além que ações de compromisso. A posição ambivalente do neurótico obsessivo frente à proibição se deve então aos mesmos motivos que o levam a aceitá- la. E tais motivos lhes são desconhecidos, pois a representação de prazer foi reprimida para o inconsciente e dela só temos notícias indiretas por meio dos sintomas obsessivos.

Os tabus primitivos são proibições antiqüíssimas, também foram impostas desde fora, em seu tempo, às gerações de homens primitivos; às gerações primeiras, essas proibições foram inculcadas com violência assim como no neurótico, e atingiram as atividades prazenteiras as quais os primitivos se mostravam fortemente inclinados. Foram conservadas ao longo do tempo, como “efeito da tradição sustentada pela autoridade parental e social”, ou ainda, em gerações posteriores como “uma peça do patrimônio psíquico herdado”.63 Segundo Freud, as proibições-

62 Freud, S. “Tótem y tabú” in Tótem y tabú y otras obras (1913-1914), v. XIII, p. 38 63 Freud, S. “Tótem y tabú” in Tótem y tabú y otras obras (1913-1914), v. XIII,p. 39

tabu absorvidas pelos indivíduos de um povo, uma vez incorporadas também se tornaram inconscientes, como as proibições do neurótico obsessivo.

O prazer de violá-las subsiste no inconsciente humano; os homens que obedeceram aos tabus mantêm uma atitude ambivalente frente a tudo sobre o que os tabus recaem. A força ensalmadora que é a eles atribuída reconduz à capacidade de induzir a tentação entre os homens; ela se comporta como uma força de contágio porque o exemplo é contagioso e porque a vontade proibida se desloca no inconsciente para outra coisa.64

Tanto os tabus primitivos quanto as proibições dos neuróticos representam algo que não se pode tocar, uma representação para a qual confluem o sagrado e o impuro; nela está contida a própria proibição e o desejo de violá-la. No entanto, apenas as proibições-tabu dos primitivos representam algo que nos remete ao período simbólico da cultura, isto porque são representações exteriores que não se encontram incorporadas aos indivíduos como afirmou Freud, mas ao contrário, são permanentemente relembradas dentro da cultura das tribos, sob a forma de leis que fazem parte do próprio código social, e quando infringidas são passíveis de punição. As leis, os rituais mágicos e os rituais sociais não representariam, enquanto permanência da linguagem inconsciente na expressão exterior, uma verdadeira indistinção entre consciência e inconsciente, e, portanto, simbólica? Temos como exemplo o fato das proibições-tabu envolverem um verdadeiro horror ao contato, uma vez que os próprios tabus podem transformar em tabu tudo o que tocam ou o que está próximo deles. Poderíamos dizer então que encontramos nessas proibições a contigüidade e o deslocamento como formas de expressão da cultura. E novamente, não seriam essas formas a expressão de mecanismos que encontramos no inconsciente? Não teríamos assim um modo de expressão inconsciente ou mesmo uma forma de “linguagem” apresentada na realidade exterior, na cultura?

Os tabus primitivos, ao suscitarem uma postura ambivalente, remetem, portanto, ao período em que não havia distinção entre o que é consciente do que é inconsciente, ou seja, ao

período pré-histórico simbólico da cultura. No entanto, isso não ocorre do mesmo modo no neurótico, uma vez que tais proibições encontram-se interiorizadas, isto é, a repressão já emergiu no aparelho psíquico e o conflito só existe porque os sistemas ou instâncias já se encontram separados. A solução de compromisso é o resultado de um processo de repressão e de troca: algo não tolerável pela consciência torna-se algo que é por ela aceito. Não há, portanto, uma suspensão da barreira da censura como forma do inconsciente emergir na consciência. O que no indivíduo neurótico é uma fantasia, ou um esquema que faz parte do patrimônio coletivo vivo, e que é por sua vez proibida e forma o núcleo da neurose, para os primitivos faz parte da cultura na forma de tabu, e apesar de ser algo que não se pode tocar, como a proibição obsessiva dos