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Em um breve escrito de 1920, “A associação de idéias de uma menina de quatro anos”, Freud nos descreve a conversa de uma menina norte-americana de quatro anos com sua mãe. A menina descobre que sua prima vai se casar e a partir desse dado infere que sua prima teria um bebê. Para o espanto de sua mãe, a menina segue dizendo que também sabe sobre o crescimento das árvores e sobre a criação do mundo: “sei também que as árvores crescem da terra (in the ground) e que o bom deus cria o mundo (makes the world)”.1 Freud

observa que o espanto da mãe vem da compreensão de que sua filha havia feito uma associação de idéias de maneira simbólica, isto é, as crianças são provenientes de suas mães, as árvores da “Mãe Terra” e todas as outras coisas do “Bom Pai”.

Ainda que esta última inferência da menina já corresponda a uma idéia sublimatória, e tem, portanto, a sua meta dessexualizada, a associação entre as duas primeiras idéias revela, conforme o que a menina diz, como o pensamento está sujeito ao desenvolvimento anímico e ao da sexualidade de cada um. Segundo Freud, uma criança de quatro anos encontra-se, quanto ao desenvolvimento da sexualidade infantil, na primeira fase da eleição de objeto, momento em que já existe uma unificação das pulsões parciais, mas ainda não há uma submissão, ou uma submissão incompleta, ao primado genital. Esse primeiro tempo da

1 Freud, S. “Associación de ideas de una niña de cuatro años” in Más allá del principio de placer; Psicología das masas y otras obras, v. XVIII, p. 261

eleição de objeto tem como característica o direcionamento dos afãs sexuais a uma única pessoa, a determinadas coisas ou assuntos específicos, que possam satisfazer sua meta,2 como

observamos na menina que se detém na geração de todas as coisas.

Essa primeira fase de eleição de objeto se estende dos dois aos cinco anos e dela se segue um período de latência sexual da infância, período em que, toda a energia sexual, ou quase toda ela, é desviada de seu uso sexual. Nos Três ensaios sobre a sexualidade (1905), Freud supõe que é a partir de moções sexuais infantis, com suas metas redirecionadas para fins não sexuais, que são erigidas as importantes construções da cultura pessoal, bem como delas decorrem a responsabilidade pela normalidade psíquica do indivíduo adulto.

De acordo com a teoria freudiana, a sexualidade infantil se exterioriza diversamente conforme a fase em que se encontra. Até por volta dos dois anos, as pulsões sexuais, que emanam dos órgãos ou das zonas erógenas, e que se encontram disseminadas pela superfície corpórea, são designadas “parciais”. Por não se encontrarem unificadas, e por exigirem satisfação imediata, são auto-eróticas e, portanto, carecem de objeto:3 “Tendo em vista uma

caracterização geral das pulsões sexuais, pode-se dizer delas o seguinte: são numerosas, brotam de múltiplas fontes orgânicas, atuam inicialmente, independentemente umas das outras para depois reunirem-se numa síntese mais ou menos acabada.”4

Uma das características do auto-erotismo é a fragmentação das pulsões, que posteriormente, ao ser substituída pela unificação dessas, forma uma organização pulsional mais sólida permitindo assim alcançar uma meta sexual em um objeto alheio.5 A relação

estabelecida entre as pulsões sexuais, ou em outras palavras, a libido e certas zonas erógenas, determina, segundo Freud, os tipos de organização da vida sexual. Dois deles são pré-genitais,

2 Freud, S. “Tres ensayos de teoría sexual” in Fragmento de análisis de un caso de histeria, Tres ensayos de teoría sexual y otras obras (1901-1905), v. VII, p. 181

3 Freud, S. “Tres ensayos de teoría sexual” in Fragmento de análisis de un caso de histeria, Tres ensayos de teoría sexual y otras obras (1901-1905), v. VII, p. 213

4 Freud, S. “Pulsiones y destinos de pulsión” in Contributión a la historia del movimiento psicoanalítico, trabajos sobre metapsicología y otras obras (1914-1916), v. XIV, p. 121

5 Freud, S. “Tres ensayos de teoría sexual” in Fragmento de análisis de un caso de histeria, Tres ensayos de teoría sexual y otras obras (1901-1905), v. VII, p. 179

sendo o primeiro tipo denominado oral ou canibal, o segundo, sádico-anal e ainda há um terceiro tipo de organização, o da eleição de objeto, que ocorre em dois tempos, antes e depois do período de latência, e se mantém sob o primado da zona genital, com ou sem a finalidade de reprodução.

Tem-se assim que, pela psicanálise freudiana, a exteriorização da vida sexual se deve à sua própria organização, que por sua vez é direcionada pelas metas sexuais infantis, o que significa dizer que essa exteriorização está condicionada às zonas erógenas. Segundo Freud, “uma zona erógena é um setor de pele ou de mucosa em que estimulações de determinada classe provocam uma sensação prazerosa de determinada qualidade”.6 Ora, mas sabemos que

as zonas erógenas podem ser quaisquer setores de pele ou mucosa que ao serem estimulados provocam sensações de prazer, o que significa dizer que qualquer área do corpo pode ser elevada à condição de zona erógena. Dessa maneira, a meta sexual infantil visa produzir ou reproduzir uma vivência de satisfação pela estimulação apropriada de uma zona erógena. No caso da organização pré-genital oral, a atividade sexual não é distinta da nutrição. No início, o prazer de se alimentar (auto-conservação) se confunde com o próprio prazer de sucção (o que viria a ser um prazer sexual) –“aquilo que é objeto de uma atividade é também o da outra”. A criança não diferencia o tipo de satisfação, se sexual ou de auto-conservação, e limita-se a distinguir satisfação de não-satisfação, distinção que proporciona assim a capacidade de “incorporar” tudo o que é satisfatório.7

Seguida da organização oral, temos a organização pré-genital sádico-anal, fase imediatamente precedente ao primeiro tempo da eleição de objeto; observa-se uma separação de atitudes opostas que envolvem a vida sexual, a saber, a atividade e a passividade: “a atividade é produzida pela pulsão de apoderamento através de toda a musculatura do corpo,

6 Freud, S. “Tres ensayos de teoría sexual” in Fragmento de análisis de un caso de histeria, Tres ensayos de teoría sexual y otras obras (1901-1905), v. VII, p. 166

7 Freud, S. “Tres ensayos de teoría sexual” in Fragmento de análisis de un caso de histeria, Tres ensayos de teoría sexual y otras obras (1901-1905), v. VII, p. 179

incluindo a intestinal e como órgão de meta sexual passiva tem-se em particular a mucosa do intestino”.8

O controle da musculatura intestinal possibilita a retenção ou liberação das fezes, em outra palavras, o controle sobre aquilo que representa uma parte do próprio corpo, mas que pode facilmente se separar: “em torno da evacuação, apresenta-se para a criança uma primeira decisão a ser tomada entre a atitude narcisista e a de amor de objeto”.9 Ao investir

libidinalmente na musculatura intestinal e reter as fezes em si, a criança retém parte de si mesma e se satisfaz de maneira auto-erótica, ou ainda pode agir de modo a afirmar sua própria vontade, a controlar ativamente sua própria musculatura. No entanto, quando libera parte de si, é como se estivesse se sacrificando em nome de um amor, prenunciando assim a eleição objetal e o esboço de um primeiro embate com a inibição que sofrerá do mundo exterior. Quando Freud distingue objeto ativo de passivo, o faz porque um se refere ao controle da musculatura intestinal, e o outro, em parte decorrente desse controle, se refere à própria ativação passiva da mucosa intestinal realizada pelas fezes. O prazer obtido a partir do apoderamento não ocorre apenas com a mucosa intestinal, mas se estende a qualquer atividade muscular, que pode facilmente desbordar em crueldade e se comportar “como uma das raízes da pulsão sádica”.10 Situações de luta que envolvem o contato físico vêm reforçar

tanto o impulso de apoderamento pela atividade muscular quanto o contato corporal passivo com o oponente, o que conseqüentemente desperta a excitação sexual tanto de maneira ativa quanto passiva.

Nas fases pré-genitais, oral e sádico-anal, as moções sexuais se encontram apoiadas em outras funções vitais, ou orgânicas, como o sugar e o evacuar, bem como se comportam

8 Freud, S. “Tres ensayos de teoría sexual” in Fragmento de análisis de un caso de histeria, Tres ensayos de teoría sexual y otras obras (1901-1905), v. VII, p. 180

9 Freud, S. “Sobre las trasposiciones de la pulsión, en particular del erotismo anal”in De la historia de una neurosis infantil (“el hombre de los lobos”) y otras obras (1917-1919), v. XVII, p. 120

10 Freud, S. “Tres ensayos de teoría sexual” in Fragmento de análisis de un caso de histeria, Tres ensayos de teoría sexual y otras obras (1901-1905), v. VII, p. 184

de maneira auto-erótica, isto é, “buscam e encontram seus objetos no próprio corpo”,11

portanto, não necessitam de um objeto exterior a si próprio para obter prazer. Já na fase posterior, a de eleição de objeto, há uma unificação das pulsões parciais sob o primado genital, que num primeiro momento, durante a infância, não tem função reprodutora, o que acontece apenas posteriormente, na puberdade.12 Como nos diz Freud,

na vida sexual – o que chamamos de função libidinal – não emerge como algo acabado, tampouco cresce semelhante a si mesma, mas nela se pode observar uma série de fases sucessivas que não apresentam o mesmo aspecto [...] e o ponto de viragem desse desenvolvimento é a subordinação de todas as pulsões parciais sob o primado dos genitais.13

A subordinação das pulsões parciais ao primado genital inicia-se na infância, anteriormente ao período de latência, na primeira fase da eleição de objeto. Como dissemos antes, há uma convergência das moções sexuais em um único objeto alheio a si mesmo, mas podemos acrescentar que o objeto normalmente escolhido se assemelha bastante ao “primeiro objeto da pulsão oral”,14 ou seja, o que antes era o seio materno, a partir da eleição

de objeto, passa a ser a mãe. E a principal conseqüência da eleição da mãe como objeto de amor é o desencadeamento do complexo de Édipo e do trabalho psíquico da repressão, “que subtrai do saber da criança o conhecimento de uma parte de suas metas sexuais”.15

O complexo de Édipo que, analogamente, narra a trama da tragédia grega de Sófocles, envolve os desejos dos dois crimes de Édipo, o incesto materno e o parricídio. A eleição da mãe como objeto de amor tem como conseqüência a repressão dessas duas metas sexuais infantis, as de estabelecer uma relação incestuosa com a mãe e matar o pai. Uma repressão como essa, que

11 Freud, S. “20ª conferencia” in Conferencias de introducción al psicoanálisis (1916-1917), v. XVI, p. 329 11 Birman, J. Freud e a interpretação psicanalítica v. XVI, p. 287

12 Freud, S. “21ª conferencia” in Conferencias de introducción al psicoanálisis (1916-1917), v. XVI, p. 329 12 Birman, J. Freud e a interpretação psicanalítica, p. 292

13 Freud, S. “21ª conferencia” in Conferencias de introducción al psicoanálisis (1916-1917), v. XVI, p. 329 13 Birman, J. Freud e a interpretação psicanalítica, p. 299

14Freud, S. “21ª conferencia” in Conferencias de introducción al psicoanálisis (1916-1917), v. XVI, p. 329 14 Birman, J. Freud e a interpretação psicanalítica, p. 300.

podemos chamar de “repressão propriamente dita”, só se resolve com a instauração do período de latência, e, portanto, com o declínio do próprio complexo de Édipo pela via da identificação.16

De uma maneira breve, vimos os efeitos do desenvolvimento da sexualidade sobre a estruturação da personalidade e do complexo de Édipo e como veremos adiante, também sobre a constituição das diferentes instâncias psíquicas, como o ego e o superego. Da mesma maneira, de acordo com nossa leitura da teoria freudiana, supomos que tanto o pensamento quanto a linguagem verbal estejam subsumidos a esse processo de desenvolvimento psíquico-sexual infantil.

O pensamento pode ser tomado por um rodeio de uma descarga motora, ou ainda, por um rodeio de uma ação, que é por sua vez conseqüência da instauração do processo secundário e, portanto, do investimento de quantidades de energia em representações. À medida que se tem o investimento dessas representações, circuitos de representações são formados e acabam por inibir o livre escoamento de energia de modo a estruturar a instância psíquica responsável pela censura e pelo acesso à motilidade, a saber, o ego. Dessa maneira, temos que o pensamento em parte é responsável pela estruturação do aparelho psíquico e é por ele regulado ao passo que o ego se desenvolve. E no que diz respeito à linguagem verbal, sugerimos aqui que ela seria uma conseqüência do ponto de viragem em que ocorre uma unificação pulsional e a eleição de objeto, período em que podemos observar a perda do interesse exclusivo do corpo próprio para dar lugar às próprias ações, à própria linguagem, e por fim, aos objetos externos.