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A APLICAÇÃO DO ACORDO A PROCESSOS EM CURSO

De antemão já é prudente mencionar que o tema é divergente entre doutrinadores e instituições envolvidas, não possuindo na presente data de execução do trabalho uma decisão superior que alinhe os diferentes entendimentos. Sobre maneira, os parágrafos subsequentes trarão estes diferentes posicionamentos existentes.

Visto isto, um primeiro ponto a se comentar é sobre o caráter hibrido que possui o acordo de não persecução penal. Isso pois, apesar da disposição da norma no Código de Processo Penal, a referida traz consigo natureza despenalizadora, atrelada de forma direta ao jus puniendi estatal. Conforme já visto anteriormente a norma trata da instituição da pena, da extinção da punibilidade, além da questão da reincidência, ficando evidente o conteúdo de direito material abordado (GOMES, 2020, p. 1).

No mesmo sentido aduz Rodrigues (2020, p. 1) que o ANPP se encontra inserido nas normas penais mistas ou híbridas, isto se dá por que por mais que estejam dispostas no Código de Processo Penal, regulando atos das partes no decurso da investigação policial ou no trâmite processual, possuem conteúdo de Direito Penal influenciando de forma direta o direito de punir do Estado, uma vez que segundo o § 13 de seu artigo 28-A pode restar extinta a punibilidade do investigado.

Partindo-se do pressuposto que o acordo possui notórios efeitos penais, sem maiores análises, vislumbra-se que deveria ser seguido o artigo 5º inciso XL da Constituição Federal: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, sendo aplicado à processos em curso para beneficiar o réu. Apesar disso, a análise não é tão simples e é justamente neste ponto que surgem as divergências de entendimentos, debatendo-se até que momento processual tal retroatividade irá alcançar (FILHO, 2020, p. 1).

A título de argumentação, cita-se que uma primeira corrente defende que o acordo só pode ser efetivado até que a denúncia seja recebida, pautada na própria nomenclatura do instituto, “de não persecução”, logo somente deveria ocorrer sua celebração até o momento que antecede a persecução. Tal posicionamento foi manifestado pelo Conselho Nacional de

Procuradores-Gerais de Justiça no Enunciado interpretativo 20 da Lei Anticrime: “Cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia” (LEITE, 2020, p. 1).

No mesmo sentido, a Procuradoria-Geral de Justiça e a Corregedoria-Geral do Ministério Público de São Paulo, expuseram quanto a aplicação das alterações oriundas da Lei 13.964/19, mais especificamente no enunciado 30: “aplica-se o artigo 28 do CPP nos casos em que, oferecida a denúncia, o juiz entenda cabível a proposta de acordo de não persecução penal” (LEITE, 2020, p. 1).

Ao inverso, uma segunda corrente defende que o acordo de não persecução penal poderá ser pactuado até que o processo tenha sua sentença. Neste sentido Lopes Júnior e Josita (2020, p. 1) justificam este posicionamento argumentando que quando o acordo de não persecução penal criou uma causa de extinção da punibilidade obteve a natureza híbrida de norma processual e penal, devendo assim retroagir em benefício do réu, aplicando-se aos processos em curso, desde que não tenha sido recebido a sentença até a que a lei tenha entrado em vigor.

Por esse ângulo, posicionam-se o Ministério Público e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, segundo a portaria conjunta nº 20:

Art. 2º Os Juízes de Direito com competência em matéria criminal deverão determinar às respectivas Secretarias Judiciais, que em até 60 (sessenta) dias, identifiquem os processos ainda não sentenciados, e inquéritos em andamento, que se amoldam aos rigores previstos no artigo 28-A, “caput'', do Código de Processo Penal (LEITE, 2020, p. 1).

Encontram-se ainda correntes mais restritivas que afirmam ser possível o acordo somente até o oferecimento da denúncia, entendendo o instituto poder estar presente apenas na fase pré-processual. Em lado oposto alguns ainda tecem opiniões mais liberais relatando que o ANPP é aplicável mesmo em processos com o trânsito em julgado, alegando neste caso o caráter penal hibrido da norma e a alcance pleno da retroatividade da lei mais benéfica (RODRIGUES, 2020, p. 1).

Finalizando, uma corrente intermediária se manifesta a favor da instituição do acordo até o trânsito em julgado da ação, uma vez que não faria sentido ter-se passado por toda a persecução penal, ter uma condenação em seu desfavor e aí sim optar pelo acordo (RODRIGUES, 2020, p. 1).

Sem sombra de dúvidas, a controvérsia acerca do tema é tamanha que atinge também as jurisprudências dos tribunais pelo país. Esta informação é melhor visualizada após análise de um estudo realizado pelo Ministério Público do estado de Piauí que apresenta a

posição dos Tribunais de Justiça do Brasil acerca do momento para a propositura do Acordo de Não Persecução Penal (POSIÇÃO..., 2020, p. 1).

Nos Tribunais de Justiça dos estados de Alagoas, Amazonas, Ceará, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Rio Grande do Norte, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins, adota-se a posição que o ANPP deve retroagir somente a processos em que não houve a denúncia. Já para os Tribunais de Justiça dos estados da Bahia, Rio Grande do Sul e Sergipe, o instituto pode ser aplicado até a sentença penal condenatória. Não foram localizados julgados, nessa perspectiva, nos seguintes tribunais: Acre, Amapá, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rondônia e Roraima (POSIÇÃO..., 2020, p. 1).

A divergência de entendimentos não para por aí, alcançando também a instância acima dos Tribunais de Justiça, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde encontra-se posicionamentos distintos entre a 5ª e a 6ª turma (POSIÇÃO..., 2020, p. 1).

Para melhor entender o posicionamento de cada turma será apresentado a seguir um acórdão de cada uma delas, iniciando-se pela quinta turma:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CONTRABANDO. ART. 28-A DO CPP. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. NORMA DE CUNHO PROCESSUAL. TEMPUS REGIT ACTUM. ART. 2º DO CPP. PROCESSO EM FASE RECURSAL. PRECLUSÃO. RÉU CONDENADO. AGRAVO REGIMETAL DESPROVIDO.

I - "A Lei nº 13.964/19 (com vigência superveniente a partir de 23.01.2020), na sua parte processual, é dotada de aplicação imediata, embora sem qualquer tom de retroatividade. Não obstante, já assente nesta eg. Corte que, em geral, a Lei que "[...] compreende normas de cunho processual [...] a sua aplicação é imediata, ainda que em relação a processos já em curso, nos termos do art. 2° do Digesto Processual Penal (princípio do efeito imediato da norma processual penal ou tempus regit actum)" (RHC n. 130.175/SP, Quinta Turma, de minha relatoria, DJe de 03/09/2020).

II - Mostra-se incompatível com o propósito do instituto do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) quando já recebida a denúncia e já encerrada a prestação jurisdicional na instância ordinária, com a condenação do acusado, como no presente caso. Precedentes.

Agravo regimental desprovido.

(AgRg no REsp 1886717/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 06/10/2020, DJe 19/10/2020)

Pela leitura do julgado resta claro que a posição tomada pela quinta turma segue no sentido da primeira corrente trazida por este trabalho, ou seja, somente entende aplicável o ANPP quando ainda não ocorreu o recebimento da denúncia, alcançando processos em curso desde que não recebida a denúncia.

Conhecido o entendimento da quinta turma, apresenta-se o acórdão acerca do tema julgado pela sexta turma:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. FRAUDE À LICITAÇÃO. FALSIDADE IDEOLÓGICA. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. PACOTE ANTICRIME. ART.

28-A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NORMA PENAL DE NATURA MISTA.

RETROATIVIDADE A FAVOR DO RÉU. NECESSIDADE DE INTIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DECISÃO RECONSIDERADA. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO.

1. É reconsiderada a decisão inicial porque o cumprimento integral do acordo de não persecução penal gera a extinção da punibilidade (art. 28-A, § 13, do CPP), de modo que como norma de natureza jurídica mista e mais benéfica ao réu, deve retroagir em seu benefício em processos não transitados em julgado (art. 5º, XL, da CF).

2. Agravo regimental provido, determinando a baixa dos autos ao juízo de origem para que suspenda a ação penal e intime o Ministério Público acerca de eventual interesse na propositura de acordo de não persecução penal, nos termos do art. 28-A do CPP (introduzido pelo Pacote Anticrime - Lei n. 13.964/2019).

(AgRg no HC 575.395/RN, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 08/09/2020, DJe 14/09/2020)

A Sexta Turma, por sua vez, compreende também que o ANPP atinge processos em curso, no entanto diverge até que momento poderia ser proposto, acautelando seu posicionamento no caráter misto do instituto que então deve retroagir em benefício do réu até o trânsito em julgado da condenação.

Esta divergência de entendimentos e posicionamentos alcançou ainda o Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Habeas Corpus 185.913/DF, que teve como relator o Ministro Gilmar Mendes. O remédio constitucional requeria, entre outros pedidos, que fosse oportunizado o acordo de não persecução penal, conforme observa-se no trecho abaixo (BRASIL, Habeas Corpus 185.913/DF, 2020):

(...)

Requer a concessão da ordem para que a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça analise o agravo regimental no AREsp 1.658.686. Pede, ainda, que “seja oportunizado ao paciente a proposta de acordo de não persecução penal, diante da aplicação do princípio da retroatividade, nos termos estatuídos pelo artigo 5º, inciso XL, da Constituição da República e pelo artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal” (BRASIL, Habeas Corpus 185.913/DF, 2020).

Destaca o Ministro Gilmar Mendes que o ANPP envolve questão de relevância constitucional uma vez que as discussões giram acerca do princípio da retroatividade (art. 5º, XL, CF). Por assim ser e diante do tema controverso na doutrina e jurisprudência, destacando ainda a divergência entre as Turmas do Superior Tribunal de Justiça que certamente acabaria por refletir em visões diferentes também no STF, decidiu o Ministro Gilmar Mendes por afetar a matéria no dia 22/09/2020, remetendo a julgamento em Plenário com fito para que se gere um precedente representativo com eventual fixação de tese (BRASIL, Habeas Corpus 185.913/DF, 2020).

a) O ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/19? Qual é a natureza da norma inserida no art. 28-A do CPP? É possível a sua aplicação retroativa em benefício do imputado?

b) É potencialmente cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casos nos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou o processo? (BRASIL, Habeas Corpus 185.913/DF, 2020).

Observa-se que as questões arguidas no item “a” buscam justamente sanar o que vem sendo alvo de debate, quais sejam: aplicação a processos em curso, natureza da norma e até quando retroage em benefício do acusado. Evidencia-se que até a presente data não houve o julgamento no Plenário do STF do referido HC, restando ainda a matéria sem precedente formado.

Independente dos debates acirrados entre doutrina e jurisprudência acerca do acordo de não persecução penal é inegável os benefícios que o instituto vem proporcionando a todos os envolvidos, bem como ao sistema judiciário, inovando-se no combate à criminalidade e consequente prestação jurisdicional mais eficaz.

Sob esta ótica, é fácil encontrar suas aplicações e resultados alcançados, bastando uma simples procura em mecanismos de busca da internet que facilmente se vislumbram inúmeros casos solucionados por meio do ANPP.

O item a seguir apresenta alguns dados e números acerca dos ANPP firmados desde sua introdução no sistema jurídico brasileiro.

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