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A aplicação do método: para uma arqueologia da interculturalidade

Todo saber possui uma história. A função da arqueologia é justamente fazer a análise histórica desses saberes por meio da articulação entre os acontecimentos discursivos e os não discursivos, a eles de alguma maneira relacionados. Podemos perceber que a arqueologia pertence ao espaço do saber, ou seja, paira sobre um conhecimento que, embora não tenha atingido o limiar de cientificidade, e não sendo também mera doxa, possui regularidades com base em um a priori histórico que possibilitou que “ideias pudessem aparecer, ciências se constituir, experiências se refletir em filosofias, racionalidades se formar para, talvez, logo se desfazerem e desvanecerem” (FOUCAULT apud MACHADO, 1982, p.158).

Além disso, todo saber possui uma relação intrínseca com o poder. Ora, o saber e a vontade de verdade, se estabelecem em instituições determinadas onde são reforçados e reconduzidos por toda uma espessura de práticas. O discurso é produto da sua época, do poder e do saber de seu tempo, por isso obedecem a ordens, a tecnologias do poder que os fazem funcionar. Assim, o saber pressupõe relações de poder e não existe poder sem que se tenha estabelecido um saber, como ratifica Foucault em sua obra Vigiar e Punir (1999b) ao dizer que:

o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder (FOUCAULT, 1999b, p. 32)

Aplicaremos a arqueologia, em nosso trabalho, à história da interculturalidade no ensino de línguas estrangeiras (LE), a fim de reconstruir o seu trajeto e sua formação como objeto do saber da linguística aplicada ao ensino de línguas. É a arqueologia que nos permitirá refletir sobre os enunciados que constituem a interculturalidade enquanto uma dimensão do ensino de língua estrangeira, analisando suas materialidades, suas condições de emergência e as regras que a fazem, em um momento dado, ter adentrado na ordem discursiva do ensino de línguas.

Fazer a reconstituição desses caminhos trilhados pela interculturalidade, não significa necessariamente definir a sua gênese: apurar como, quando, onde surgiu, quem a pronunciou pela primeira vez e em que campo do saber. Perscrutar minuciosamente a origem dos saberes não é tarefa pertinente para a arqueologia essencialmente porque a fonte original de todo discurso escapa a toda delimitação histórica, já que todo discurso, como já citamos acima, provém de outras vozes, de um já-dito pertencente a vários outros lugares por meio da dinâmica social.

Segundo o próprio Foucault (2000, p.28),

[...] jamais é possível assinalar, na ordem do discurso, a irrupção de um acontecimento verdadeiro; que além de qualquer começo aparente, há sempre uma origem secreta – tão secreta e tão originária que dela jamais poderemos nos reapoderar inteiramente. Desta forma, seríamos fatalmente conduzidos, através da ingenuidade das cronologias, a um ponto indefinidamente recuado, jamais presente em qualquer história; ele mesmo não passaria de seu próprio vazio; e partir dele, todos os começos jamais poderiam deixar de ser recomeço ou ocultação. Essas indagações, embora possam servir a outros métodos de análise, são infrutíferas para a arqueologia, pois essa é uma teoria das práticas discursivas “cujo centro é a descrição dos acontecimentos, a descrição das transformações dos enunciados, dos discursos” (FISCHER, 2012, p.24). Sendo assim, o que podemos encontrar ao interrelacionar diferentes saberes são as superfícies primeiras de emergência do termo interculturalidade, indagar o que se passou em diferentes campos para que a preocupação com a cultura se tornasse relevante para o ensino de línguas estrangeiras da maneira como ela é tomada no presente. Questionamos o fato de se fazer uma história buscando o marco inaugural do objeto, “por que não indagar sobre uma proveniência, que nos fala de marcas singulares, sutis, que faz multiplicarem-se mil acontecimentos dispersos, para além das puras objetividades datadas e da solenidade dos grandes acontecimentos” e ainda:

Por que, enfim, não perguntar sobre pontos dispersos de surgimento, emergência de determinados discursos, emergência que sempre se dará no interior de um jogo complexo de forças, de confrontação, e que não ocorreria num lugar específico, nem poderia ter fronteiras muito nítidas, mas que seria, antes, jogo produzido em interstícios – de poder, de saber, de modos de subjetivação, de linhas de fuga? (FOUCAULT apud FISCHER, 2012 p.29)

Fazer a arqueologia implica pensar que cada deslocamento, cada circunstância de aparição, sejam novos sujeitos ou novos objetos fazem com que, a cada novo contexto, tais discursos também sejam considerados novos e verdadeiros. Sua função metodológica é entender as condições históricas que possibilitaram a irrupção desses novos acontecimentos discursivos. Esses discursos serão analisados na sua materialidade, naquilo que efetivamente produzem hoje, em termos educacionais, e que irá perfazer o âmbito da interculturalidade. Pretendemos explicar, então, sob quais pontos dispersos da sua irrupção, quais novos contextos - considerando os fatores internos e externos ao discurso, a área do ensino de línguas estrangeiras pôde utilizar e consolidar esse saber.

Como se pode notar, nossa investigação não se limita às fronteiras de uma disciplina, ou a um determinado objeto. Ao contrário, percorre domínios que não precisam, aparentemente, ter uma relação intrínseca entre si. Essa é uma das características da arqueologia: conceber os discursos como pontos de dispersão, na impossibilidade de aplicarmos critérios pertinentes de unidade. O que ela faz em meio a essa heterogeneidade de discursos é procurar relacioná-los investigando se é possível estabelecer semelhanças, compatibilidades, transformações, assinalar coerências ou inclusive incompatibilidades entre os enunciados. Além disso, ela busca definir as condições que propiciaram sua aparição, suas formas de conservação e reativação na memória dos homens, seus limites, suas formas de apropriação segundo o lugar de onde se fala, e como, sob suas regras, os enunciados podem ser reconhecidos como válidos, discutíveis, inválidos, estranhos, etc.

Concluímos reafirmando que nossa pesquisa seguirá os princípios metodológicos da arqueologia por descartar, ou pelo menos não ter como ponto principal, características como linearidade cronológica, evolução, continuidade, veracidade, origem, fontes, cientificidade, interpretação. Terá como objeto a unidade dispersa do discurso, provenientes de diferentes áreas e contextos.

Por último recompilaremos as análises efetuadas nos capítulos da dissertação para podermos enfim, expor nossos resultados finais, e apontar como nossa sociedade tem pensado a interação cultural nos últimos anos. Trata-se de reunir

[...] o conjunto de condições que regem, em um momento dado e em uma sociedade determinada, o surgimento dos enunciados, sua conservação, os laços estabelecidos entre eles, a maneira pela qual os agrupamentos em conjuntos estatuários, o papel que eles exercem, a

série de valores ou sacralizações pelos quais são afetados, a maneira pela qual são investidos nas práticas ou nas condutas, os princípios segundos os quais eles circulam, são recalcados, esquecidos, destruídos ou reativados (FOUCAULT apud ODDONE, 2007, p.115).