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3 O PAPEL DA CULTURA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

3.4 Concepção estrutural de cultura

As concepções clássica, descritiva e simbólica são esquematizadas por Thompson (2009) segundo as maneiras como o conceito de cultura foi idealizado, de acordo com o espírito da época e qual metodologia de análise cultural era empregada. Observando os pontos fortes e as restrições de cada uma dessas concepções e métodos de análise, Thompson propõe uma “nova” maneira de conceber os estudos culturais. Antes, porém, de explicitarmos esse novo ponto de vista, revisaremos as falhas encontradas nas outras concepções de acordo com as críticas expostas por Thompson e por outros autores.

A crítica que Thompson faz da concepção clássica, como já discutimos, é o seu caráter limitado, que restringe a cultura de um povo ao campo das artes e das boas maneiras que o leva da barbárie à civilização, do homem selvagem ao homem culto e refinado. Essa concepção a reduz a algumas obras artísticas ou intelectuais de valor reconhecido. É evidente que as expressões artísticas, sendo criações humanas, se enquadram nos fenômenos culturais e por isso devem ser consideradas, mas não apenas elas. O que o autor discute então é a restrição às artes e a consequente exclusão de outras expressões culturais, já que nem mesmo todas as expressões artísticas são consideradas como tal, não sendo dignas, enquanto que não sancionadas pela sociedade, de alcançarem o status de cultura.

No entanto, é a ideia de cultura do evolucionismo que será alvo de duras críticas dentro da antropologia. DaMatta, em seu livro Relativizando (2010), caracteriza e critica em quatro pontos principais as teorias evolucionistas:

a) As sociedades humanas deveriam ser comparadas entre si: dessa maneira os elementos de cada cultura ficariam isolados do todo da cultura em questão

sem a possibilidade de receberem um tratamento contextualizado com significados coerentes aos sistemas culturais dos quais pertenciam;

b) Os costumes têm uma origem e um fim, sendo que o fim, ou seja, o mais completo e acabado estágio, a própria sociedade branca, europeia, tecnológica que, por coincidência, correspondiam às sociedades dos pesquisadores;

c) As sociedades se desenvolvem de forma linear;

d) A diferença cultural se dá pela distância espacial-temporal existentes entre as diferentes sociedades.

Todos esses argumentos reforçam a ideia de que quanto mais longe uma cultura se encontra da cultura europeia, mais ela está no estágio inferior e primitivo e que deve então ser “ajudada” pelo processo civilizatório para enfim deixar de ser atrasada.

Além disso, os evolucionistas, por não acreditarem na existência real de diferenças estritamente culturais, acreditavam que as discrepâncias tenderiam a desaparecer quando as sociedades primitivas alcançassem o mesmo grau evoluído que as sociedades civilizadas. Mas, afinal, como seria medido esse suposto progresso cultural? Que critérios seriam usados para medir o grau de avanço entre as sociedades existentes?

Rocha analisa esse problema, afirmando que os critérios comparativos, defendidos pelos os evolucionistas, são muito relativos:

Era necessário um instrumento comparativo tipo um “medidor” de progresso. Sim, porque se compararmos Brasil, Estados Unidos e Uruguai e o “medidor” for “futebol”, por exemplo, teríamos o Brasil como o mais “civilizado”, o Uruguai como intermediário e os Estados Unidos no estádio “primitivo”. Se o “medidor” for o número de grupos de rock a ordem já é outra e assim tantas ordenações de hierarquia das culturas quanto os “medidores” escolhidos (ROCHA, 1984, p.31)

O evolucionismo foi talvez a maneira de se conceber a cultura mais criticado dentre as outras teorias antropológicas. A reação começou na Alemanha e nos Estados Unidos nas décadas de 1880 e 1890. No entanto, em seu livro O conceito de cultura,

White (2009) dedica algumas páginas a defender muitas das ideias dos evolucionistas por considerar que eles foram mal compreendidos, injustamente mal interpretados13.

Ainda em relação à concepção descritiva, apesar das teorias agrupadas sob essa categoria irem além das expressões artísticas, Thompson as define como limitadas, no sentido de que seus articulistas - principalmente os expoentes do difusionismo e do funcionalismo, se dedicaram exaustivamente a descrever e detalhar os modos de vida de culturas não europeias, igualando-se ao trabalho de um botânico ou um zoólogo, que anotam sistematicamente as características das plantas ou dos animais em um catálogo. Obviamente, a cultura como um produto e produtor complexo da humanidade, requer um conceito e um estudo além de meras observações.

Tomar instituições culturais e sociais e tratá-las como um biólogo (...) é evitar penetrar na razão crítica das diferenças entre as sociedades [é não pensar em] discutir o mundo social e cultural – o mundo da diversidade, da história e da especificidade. A ação social só pode ser analisada, interpretada e eventualmente explicada por seus próprios termos (DAMATTA, 2010, p.50)

Tanto em relação à concepção clássica quanto à descritiva, Eagleton (2005) dedica uma sessão de seu livro A ideia de cultura, para discutir a imprecisão do termo “cultura”, no sentindo de se delimitar o que ela abrange e o que ela exclui. Se na concepção clássica, é difícil limitar quais obras artísticas podem pertencer ao domínio cultural de um povo, assim também o é para incluir o que é cultura nos diferentes modos de vida.

Sendo assim,

“É difícil escapar à conclusão de que a palavra ‘cultura’ é ao mesmo tempo ampla demais e restrita demais para que seja de muita utilidade. Seu significado antropológico abrange tudo, desde estilos de penteado e hábitos de bebida até como dirigir a palavra ao primo em segundo grau de seu marido, ao passo que o sentido estético da palavra inclui Igor Stravinsky mas não a ficção científica” (EAGLETON, 2005, p.51)

O autor segue dando outros exemplos de impossibilidade de determinação precisa sobre o porquê de algumas coisas serem excluídas dos padrões culturais devido ao fato de serem consideradas “demasiado mundanas” ou pouco sublimes. No entanto,

13 Para compreender a defesa que o autor faz em relação à teoria evolucionista, ver WHITE, 2009, p. 85- 102.

cultura também pode ser considerada menos sublimidade e mais praticabilidade, em muitos lugares do globo, por exemplo, “cultura não é apenas o que se coloca no toca- fitas; é aquilo por que se mata” (ibid., p.61)

Com o intuito de solucionar essas dificuldades encontradas nas outras teorias, White e Geertz sugerem uma teoria que aborde as questões relacionadas às diferentes significações e interpretações que os homens fazem do meio que os circundam. No entanto, embora reconheça os méritos e se aproprie desse ponto de vista, Thompson faz ressalvas aos estudos de Geertz, por considerar o seu uso do termo cultura e sua metodologia de análise, inconsistentes, vagos e algumas vezes, contraditórios. Além disso, a limitação crucial para Thompson (2009), é que nem a abordagem de Geertz nem a de White, dão a atenção necessária ao contexto, aos conflitos e às relações de poder que estão imbricadas nas relações culturais.

Assim, Thompson (2009) propõe uma nova abordagem para os estudos culturais, apropriando-se da concepção de Geertz e acrescentando a esses fenômenos simbólicos a ideia de que eles estão inseridos, produzidos, transmitidos e recebidos em contextos estruturados sócio-históricos específicos.

Para o autor, todas as ações e manifestações verbais, desde os eventos mais cotidianos até manifestações mais particulares tais como rituais, obras de arte, festivais etc. são sempre “produzidos ou realizados em circunstâncias sócio-históricas particulares, por indivíduos específicos providos de certos recursos e possuidores de diferentes graus de poder e autoridade” (THOMPSON, 2009, p.180). O autor chama a atenção para o fato de que todos esses elementos produzidos, circulam, são recebidos, percebidos e interpretados por outros indivíduos que também estão inseridos em lugares sócio-históricos particulares e que utilizam determinados recursos para captar o sentido dos fenômenos que chegam até eles. Além disso, Thompson (2009, p.180) enfatiza as relações de poder que perpassam todas as formas simbólicas produzidas e recebidas por uma determinada sociedade:

Entendidos desta maneira, os fenômenos culturais podem ser vistos como expressão das relações de poder, servindo em circunstâncias específicas, para manter ou romper relações de poder e estando sujeitos a múltiplas, talvez divergentes e conflitivas, interpretações pelos indivíduos que os recebem e os percebem no curso de suas vidas cotidianas.

O poder para Thompson é a capacidade de agir, empregando os recursos que lhe são disponíveis, para satisfazer seus próprios interesses. E sendo assim, aqueles que podem se apropriar de maiores recursos para atingir seus objetivos, também podem manter determinadas relações sociais uns com os outros. Quando essas relações são assimétricas, ou seja, quando um grupo detém o poder de maneira que exclua ou segregue outros grupos, estamos diante de uma relação de dominação.

Nesse ponto das discussões de Thompson, não podemos deixar de fazer uma analogia às ideias de Foucault e a outros estudiosos contemporâneos da cultura quando tratam das relações de poder e de outras tendências na maneira de tratar a cultura, como veremos a seguir.