• Nenhum resultado encontrado

Visto como se desenvolveu a ideia de liberdade contratual sob a ótica civilista, cumpre, nesse momento, analisar como ela se manifesta nos contratos de trabalho. Através de tal exame, será possível verificar se a autonomia da vontade de celebrar contratos trabalhistas permite ao empregador dispor sobre todo o seu conteúdo, e, ainda, se, nesse prisma, podem ser concebidos casos em que se constata a contratação compulsória de trabalhadores.

Salienta Maurício Godinho Delgado que “a matriz de origem do Direito do Trabalho é o Direito Civil, em especial seu segmento regulatório das obrigações”. 39 Nesse contexto é que, enquanto não reconhecida a autonomia e a especialidade do Direito Trabalhista, o contrato obreiro era concebido sob a ótica civilista.

Em princípio, não se punham dúvidas de que a relação de emprego fosse um contrato semelhante aos encontrados no Direito Civil. É por isso que a doutrina concebia inicialmente o contrato de trabalho como espécie de arrendamento, de compra e venda, de sociedade, de mandato, conforme visto no começo deste capítulo. Essa concepção trouxe, em conseqüência, a extensão ao contrato de trabalho das idéias que norteavam os negócios jurídicos civis.

A Revolução Francesa, ao afirmar a igualdade jurídico-política dos cidadãos, adotou o princípio do respeito absoluto à autonomia da vontade - liberdade contratual, cuja conseqüência foi a não-intervenção do Estado nas relações contratuais (“laisse faire”). Assim, consagrou o liberalismo-econômico, com o que facilitou a exploração dos trabalhadores.

Durante o Estado Liberal não existiam normas que regulassem, especificamente, as relações de trabalho. O Estado esforçava-se, na verdade, apenas para criar as condições necessárias para que a indústria prosperasse. Os empregados se enfraqueciam na razão inversa do poderio empresarial, sobretudo quando o Estado não impõe aos empregadores a observância de condições mínimas de trabalho.

38SANTOS, Antônio Jeová. Op. cit., p. 13-14.

Como ressalta Maurício Godinho Delgado, vigorava o direito civil, advindo do Direito Romano ius civilis. As questões eram tratadas sob a ótica individual dos sujeitos isolados da relação empregado/empregador, e o contrato trabalhista era alçado no rol dos contratos bilaterais tradicionais civilistas, os quais se relacionavam partes equânimes. 40

Contudo, o contrato de trabalho não se dava entre partes iguais, pois o trabalhador era faticamente hipossuficiente em relação ao empregador. O princípio da autonomia da vontade das partes contratantes, vigente à época, pautava-se em um negócio bilateral entre as partes supostamente iguais, o que não era o caso do contrato de trabalho.

A liberdade de contratar e a igualdade formal como princípios do liberalismo orientadores dos contratos clássicos, não conseguiram, entretanto, perdurar por muito tempo nas relações de trabalho. A igualdade entre as partes e a liberdade de empregador e empregado fixarem livremente as condições a que estava condicionada a prestação de serviços resultava numa intensa exploração da parte mais frágil da relação, no caso o trabalhador.

Diante de tal situação, a reformulação da liberdade nos contratos de trabalho tornou-se necessária, 41na mesma proporção em que se almejava um Estado mais atuante, que interviesse nas relações jurídicas privadas, com o objetivo de garantir seu justo equilíbrio, e não um que se mostrasse alheio às condições (desumanas) de trabalho.

Foi com base nesse contexto que surgiu o Direito Trabalhista, como expressão de um estado que não se apresentava alheio às questões sociais, que passava a controlar a relação de trabalho, propiciando condições mais dignas ao trabalhador e sua proteção contra a exploração capitalista desenfreada de sua força produtiva.

A legislação social-trabalhista nasceu intervencionista, seja para limitar a autonomia da vontade nas relações de trabalho, seja para instituir sistemas obrigatórios de previdência.

40DELGADO, Maurício Godinho. Op., cit., p. 90

41

“O extraordinário grau de exploração do proletariado, então verificado nos países em que o sistema capitalista se encontrava mais desenvolvido, desperta um ainda tímido questionamento do princípio da autonomia da vontade. O operário, quando buscava emprego, não era livre para contratar. Vender a força de trabalho ao industrial era, na verdade, condição de sobrevivência, uma vez que a vida não lhe dava nenhuma outra alternativa. Sua liberdade de escolher o patrão era também muito relativa, porque limitada às vagas em oferta e a fatores como localização da indústria, especialidade das funções disponíveis e outros que o operário não pode manipular ou controlar. Finalmente, não havia nenhuma margem para negociações dos direitos e deveres das partes. Premido pela impostergável necessidade de sobreviver, o operário tinha de aceitar as condições impostas pelo patrão, por mais aviltantes que fossem. Em suma, no contrato de trabalho, o princípio da autonomia da vontade é inoperante: o empregado não contrata porque quer, com quem quer e do modo que quer; isso simplesmente não existe”. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 11.

Desta feita, o contrato de trabalho recebe caudalosa influência do Estado, que, motivado por razões de ordem pública, passa a regular o seu conteúdo. De fato, tais razões fazem com que o Poder Público intervenha iterativamente na relação de emprego, tendo por fim a preservação dos direitos do hipossuficiente, o empregado. Detectada a situação de inferioridade em que se encontra o empregado no contrato de trabalho, parte-se em busca da minimização de tal diferenciação.

Elencam-se, por isso, direitos mínimos para o obreiro, que não podem ser suprimidos pelo empregador no momento da contratação de seus funcionários. A fixação dos limites da jornada de trabalho, da imposição ao direito de férias, do salário mínimo que atenda as necessidades mínimas do trabalhador são alguns exemplos dos direitos que devem estar presentes nas cláusulas do pacto trabalhista.

O contrato de trabalho era, e ainda é, um típico contrato de adesão. O empregador estabelecia as cláusulas constantes no contrato, e o empregado era livre para aderir se assim o desejasse. O trabalhador oferecia mão-de-obra livre no mercado de trabalho, entretanto deveria se submeter às cláusulas contratuais propostas pelo detentor dos meios de produção. “A liberdade auferida ao trabalhador era um tanto relativa, pois infelizmente, a sua realidade não se permuta fazer a melhor escolha ou quiçá recusar um contrato injusto”. 42

Aliás, ainda hoje se pode falar que a liberdade do trabalhador é limitada pela necessidade de sobrevivência. É difícil para um trabalhador, em meio a um contexto onde o desemprego alcança índices alarmantes, não aderir a contratos de trabalho injustos, que o submetem a situações precárias e salários reduzidos, combinados a uma jornada extenuante.

Embora com a fixação de cláusulas mínimas de garantia à dignidade humana do trabalhador, tenha se mitigado a liberdade do empregador, o elemento volitivo ainda resta presente no contrato de trabalho. Ao empregador é conferida a prerrogativa de escolher quem contratar e de fixar as condições em que os serviços serão prestados.

Observa-se, contudo, que até mesmo tal liberdade vem sendo limitada, através de um interessante fenômeno que prima pela intensificação da proteção do trabalhador e, em outros casos, pela regulação de atividades econômicas e trabalhistas que estão relacionadas à garantia de bem-estar da sociedade. A essa nova incursão do poder público no contrato obreiro, a determinar a admissão forçada de certos sujeitos, dá-se o nome de “contratação compulsória”.

42MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira. A terceirização trabalhista no Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 34.

Tal fenômeno, ainda recente na seara trabalhista, não foi completamente absorvido pelo grupo empresarial. A crescente interferência, aliás, do Estado nas relações privadas, desde o período moderno, não é vista como algo positivo. Somente com forte pressão social, a ameaçar ruir os pilares do capitalismo, que foi aceita a presença estatal.

Embora o Estado envide esforços para ser forte e atuante, deliberando sobre políticas públicas necessárias para garantir o bem-estar da sociedade, há que se reconhecer que ele se mostra, em diversas situações, subordinado aos interesses dos donos do capital, sujeitos que mantém certo controle sobre variadas ações governamentais, o que mitigaria, inclusive, a independência e a autonomia estatal, como expressões de uma democracia voltada para atender aos reclamos sociais.

Em virtude disso, não seria estranha a inquietação em torno de contratos de trabalho em que o Estado obrigasse o empregador a admitir determinados trabalhadores, sem se questionar sua legalidade e, principalmente, sua legitimidade.

Constatar que o elemento volitivo nos contratos trabalhistas foi, ao longo do tempo, perdendo força e preponderância, criando circunstâncias em que o empregador não pode modificar garantias mínimas concedidas ao obreiro por meio de normas imperativas, não bastaria para que as contratações trabalhistas compulsórias fossem assimiladas pelo empresariado. Tal fator, embora de valiosa importância, visto isoladamente não seria suficiente e não possibilitaria a eficácia da legislação que disciplina a matéria.

Diversos outros fatores somam-se e implicam-se mutuamente, possibilitando os casos de contratos compulsórios no âmbito laboral. Dentre eles, destaca-se no item seguinte a assunção de valores e princípios na ordem jurídica, delimitando novo perfil ao direito privado.