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A realização de direitos fundamentais (sociais) nas contratações trabalhistas compulsórias

2 CONTRATAÇÃO TRABALHISTA COMPULSÓRIA: CONTEXTO, FUNDAMENTOS E FINALIDADE

2.6 A realização de direitos fundamentais (sociais) nas contratações trabalhistas compulsórias

Nos tópicos anteriores, preocupou-se em situar o leitor no ambiente fático-jurídico que possibilita a existência de formas de contratação trabalhista que são determinadas não pela vontade do empregador, mas pela imposição do Estado legislador.

Verificou-se que as mudanças na teoria contratualista, com a inserção de uma função social dos institutos privados, bem como a postura com que o Estado hodierno está revestido para buscar a efetividade das normas que declaram direitos fundamentais, tendo por finalidade precípua sua plena satisfação, 145permite-se afirmar que a obrigação aqui imposta, em prol do próprio indivíduo e, em outras vezes, da sociedade, não seja ilegítima, desarrazoada.

Em atenta análise, constata-se que as contratações trabalhistas compulsórias possuem o importante papel de concretizar direitos fundamentais, especialmente os sociais. A realização desses direitos vai desde a promoção do trabalho, do pleno emprego e do próprio direito ao trabalho, do acesso às condições mínimas para viver com dignidade, do direito à saúde, a uma educação de qualidade, da livre e boa informação, até a proteção e a segurança da sociedade como um todo.

O esforço do legislador em prol da efetividade de direitos fundamentais sociais é bem visto, especialmente considerando a realidade de milhões de brasileiros que vivem à margem do acesso de serviços sociais básicos. Alheia a um atendimento de mínima qualidade nos serviços públicos de saúde, de assistência social, educação, saneamento básico, habitação, a maior parte da população brasileira vive em condições de extrema precariedade, em um estado de penúria e miséria em flagrante descompasso com a fervorosa economia. 146

Nesse ambiente de contradições, discute-se a inoperância do Estado brasileiro em prover serviços essenciais para a grande maioria de sua população e que medidas possam ser adotadas para que os preceitos constitucionais, particularmente os que tangem os direitos fundamentais sociais (art. 6º. CF/88), alcancem seus destinatários.

Exige-se, cada vez mais, um empenho crescente do poder público em implementar esses direitos, assim como os princípios fundamentais da dignidade da pessoa

145CLÉVE, Clérmerson Mérlin. O controle de constitucionalidade e a efetividade dos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (org.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 388.

humana e da erradicação da pobreza, a teor dos art. 1º, inciso III e art. 3º, inciso III, da Constituição Federal.

O que se observa é que há um hiato entre a previsão legal e a realidade social de seus destinatários, o que leva, muitas vezes, a (má) compreensão de que os direitos sociais não são realmente direitos e que, por isso, carecem de força social bastante para serem respeitados como as demais leis.

No entanto, leciona Andreas Krell que

A eficácia social reduzida dos Direitos Fundamentais Sociais não se deve à falta de leis ordinárias; o problema maior é a não-prestação real dos serviços sociais básicos pelo Poder Público. 147A grande maioria das normas para o exercício dos direitos sociais já existe. O problema certamente está na formulação, implementação e manutenção das respectivas políticas públicas e na composição dos gastos nos orçamentos da União, dos estados e dos municípios. 148

A Constituição Federal de 1988 dotou os direitos fundamentais de um tratamento especial, conferindo-lhes eficácia vinculante e imediata, consoante o art. 5º, §1º, e ainda cláusula imutável (art. 60, §4º). Todavia, embora passados mais de vinte anos de sua existência,149não se há um consenso, principalmente em nossos Tribunais, sobre o significado e a estrutura desses direitos na ordem constitucional. 150

O problema se agrava quando se vem a tratar dos direitos fundamentais sociais. Diferentemente dos direitos individuais e políticos,151 mencionados direitos dependem de prestações positivas do poder público para sua implementação, enfrentando o problema da escassez dos recursos do Estado, limitados perante as necessidades. Em conseqüência, afirma-

147 Em igual sentido: BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. Limites e possibilidades da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 1117 e ss.

148KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Os (des)caminhos de um diretio constitucional “comparado”. Porto Alegre: SAFE, 2002, p. 31-32. Há quem defenda que “os direitos humanos prescindem de reconhecimento legislativo, e sua eficácia plena deve ser reconhecida pelo Poder Judiciário, inclusive com a adjudicação de direitos sociais integrantes do mínimo existencial”. Nesse sentido: BINENBOJM, Gustavo. Direitos Humanos e Justiça Social: as idéias de liberdade e igualdade no século XX. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.) Legitimação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 316.

149Sobre a reação negativa de boa parte da elite econômica e social brasileira às conquistas da Constituição de 1988, vide: BONAVIDES, Paulo. Do país Constitucional ao País Neocolonial: a derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado Institucional. São Paulo: Malheiros, 2004.

150Nesse sentido: MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana. Estudos de direito civil- constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010,p. 31

151É de ressaltar que tal afirmação é incompleta. Isto porque já se percebeu que direitos individuais e políticos também demandam prestações do Estado e não apenas omissões.

se que as normas que prevêem tais direitos não têm a capacidade de torná-los exigíveis diante do poder público. Não haveria um dever do Estado em prestá-los. 152

Por outro lado, a imprecisão dos próprios enunciados desses direitos tem sido uma dificuldade para os juristas. Considerando que tanto os princípios como as regras dispõem sobre direitos sociais, as limitações da atual dogmática quanto à normatividade de cada uma dessas normas, principalmente quanto aos princípios, apresentam-se no caso.

A problemática maior aparece não quando os direitos sociais venham veiculados por uma regra definidora de direitos, onde se pode identificar com precisão o dever exigível da outra parte (seja particular, seja o Estado), mas quando surgem sob a forma de princípios – como o principio da dignidade da pessoa humana ou o da valorização do trabalho. A tradição fortemente positivista que permeia a cultura jurídica do país acaba por reconhecer em termos de eficácia jurídica apenas sua eficácia interpretativa (onde os princípios e normas programáticas orientarão a interpretação das normas em geral) e sua eficácia negativa (excluem-se do ordenamento todos os atos e normas que sejam incompatíveis com o princípio ou norma programática). 153

Em relação às dificuldades teóricas, questiona-se sobre qual dever impõe o provimento de condições básicas para todos, qual o fundamento desse dever e sua extensão.

Como já indicado, os direitos sociais se realizam ou se efetivam através de prestações por parte do parte do poder público. O Estado, através de leis e pela instalação de serviços públicos, deve definir os programas que facultem o gozo efetivo dos direitos constitucionalmente protegidos. Para isso, há, porém, a necessidade de orçamento e dotações específicas, que, pela disponibilidade e inevitável escassez, impõem-se como verdadeiros limites fáticos a plena concretização dos direitos sociais.

Embora a Constituição tenha erigido os direitos fundamentais sociais à categoria de direitos fundamentais, portanto normas com aplicação imediata (art. 5º, §1º, CF/88), não significa que o Estado esteja obrigado a prestar e garantir direitos de modo absoluto. Nesse caso, passou-se a sustentar que estes direitos estariam condicionados ao que se chama de “reserva do possível”.

Segundo o conceito de construção alemã, baseado em decisão da Corte Constitucional Federal, no julgamento do famoso caso numerus clasusus (BverfGE n. º33, S. 333), na qual havia a pretensão de ingresso no ensino superior público, mesmo diante da

152BARCELLOS, Ana Paula de. O mínimo existencial e algumas fundamentações: John Rawls, Michael Walzer e Robert Alexy. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Legitimação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 103.

insuficiência de vagas, com fundamento na garantia da Lei Federal alemã de liberdade de escolha da profissão. No julgamento do caso, o tribunal alemão firmou entendimento de que o indivíduo só pode requerer do Estado uma prestação que se dê nos limites do razoável.

Os direitos sociais prestacionais, assim, de acordo com a Corte Constitucional da Alemanha, estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade.

Aludidos direitos, no entanto, quanto a sua efetivação reclamam um mínimo de concretização, um valor que o Estado esteja obrigado a pagar aos cidadãos, pois, do contrário, levariam a promessas constitucionais exageradas, incapazes de atender necessidades sociais mínimas.

A ideia do mínimo existencial surge como proposta por parte da doutrina para solucionar estes problemas jurídicos, na medida em que, segundo Ana Paula de Barcellos, “procura representar um subconjunto dentro dos direitos sociais, econômicos e culturais menor – minimizando o problema dos custos – e mais preciso – procurando superar a imprecisão dos princípios”. 154Sem olvidar que poderá ser exigível do Estado.

A expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas. [...] para além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado – e em última análise da sociedade, já que é esta que o sustenta –, é importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos. 155

Sem o cumprimento de uma parcela mínima de cada direito fundamental social, estaria configurada a lesão de seu núcleo essencial, da efetivação mínima do direito. No dizer de Ricardo Lobo Torres,

[...] sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade. A dignidade humana e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados. 156

Nesse âmbito, diante da impossibilidade de realização de sua realização plena, torna-se necessário investigar qual o conteúdo mínimo que reveste os direitos sociais que pode ser exigido do ente estatal. Das obras sobre o tema, há os que defendem que o princípio

154BARCELLOS, Ana Paula de. Op. Cit., p. 109. 155BARCELLOS, Ana Paula de. Op. Cit., p. 236.

156TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos. In: (org). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 267.

da dignidade da pessoa humana da Carta Brasileira deve ser utilizado como parâmetro para garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável. 157

Sobre o assunto, Emmanuel Téofilo Furtado salienta

É de se concluir que dar fundamento ao Estado na dignidade da pessoa humana patenteia o reconhecimento do valor do homem enquanto ser livre, ao mesmo tempo que o próprio Estado reconhece ter suas pilastras na observância do princípio em baila em favor do ser humano, abrangendo tal princípio não somente os direitos individuais, mas os direitos outros, de natureza econômica, social e cultural. [...] o fato de a Constituição Federal haver assegurado que um dos fincos do Estado Democrático é a dignidade da pessoa humana não só implica no reconhecimento da liberdade, mas também na garantia, a ser propiciada pelo próprio estado, de condições mínimas de existência à pessoa humana, o que deve ser observado pela ordem econômica, de tal sorte que sejam espancadas extremas desigualdades que venham a ocorrer no seio da sociedade, cujo Texto Maior anatematiza o desrespeito à dignidade do homem.158

Verifica-se, pois, que inúmeras dificuldades se colocam diante da satisfação de direitos fundamentais sociais. 159 Envoltos em conceitos ainda sem definição e lançados à revelia quando o orçamento estatal indica a impossibilidade de garantir uma parcela desses direitos a todos, compreende-se a importância da legislação que impõe a contratação trabalhista compulsória.

Nos casos em que a admissão de trabalhadores é forçada, como será visto no próximo capítulo, o Poder Público assume relevante papel frente aos interesses econômicos, fornecendo aos indivíduos e à sociedade como um todo uma prestação de direito social básico que permite uma mínimo de existência digna ou, em graus menores, apenas a proteção da coletividade – o que não deixa a medida de assegurar algum quantum de vivência mais digna em sociedade.

O poder de impor obrigações, como a de contratar trabalhadores, é exercido dentro dos limites que o torne compatível com o direito de liberdade, de propriedade, do livre comércio. São harmonizados interesses econômicos e sociais.

157 Conferir: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 47, 59s ; BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais – o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, passim.

158 FURTADO, Emmanuel Teófilo. Sentido ontológico do princípio da dignidade da pessoa humana e o trabalhador. In: Revista de Direito do Trabalho. Ano 32, jan-março de 2006. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 31.

159Principalmente, como já indicado, “o grande dilema dos direitos sociais diz respeito à consecução ou eficácia dos mesmos” (FARIAS, Edilson Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: SAFE, 1996, p. 91).

Ao se valorizar com tais leis, especialmente, o elemento trabalho (direito social por excelência), demonstra-se a importância que ele detém na sociedade, realça a ideia de que o indivíduo, por meio dele, pode concretizar um projeto de vida, anseio mais profundo do homem moderno.

O cenário atual está a mostrar a força e o poder que o mercado possui para controlar e dirigir todas as esferas da vida do homem. Os princípios do mercado são tomados como os únicos existentes, os mais coerentes, os mais eficientes e os necessários para uma vida livre.

Diante dessa conjuntura, urge que o Estado assuma seu papel de promover a harmonia social e propiciar a todos uma existência digna, através de políticas que reduzam as desigualdades sociais, de programas que permitam o acesso básico e eficiente de saúde, de uma alimentação de qualidade, vestimenta, de uma educação primária (e, mais ainda, da educação superior, da profissionalizante), de uma moradia, saneamentos, sem olvidar a regulação das relações econômicas.

Ao mercado não se pode estender a plena liberdade para atuar somente com a lógica da lucratividade e de eficiência. Sem a intervenção do Estado, o tilintar das moedas será sempre impiedoso diante das mazelas humanas e mais forte que o suor do trabalhador. A ele, deve-se acrescentar o espírito da solidariedade, do compromisso ético e social, de ganhos efetivos quando atuam trazendo benefícios à sociedade.

É indispensável, pois, [...] que a ordem econômica tenha por escopo a propiciação a todos de uma vida digna, bem como possa a ordem social corroborar para implementação de uma justiça social. A educação, por sua vez, vir a dar lugar ao pleno desenvolvimento da pessoa humana, bem como o necessário embasamento para que venha a exercer a cidadania, tudo não com vagos enunciados, mas, isto sim, como delimitadores e norteadores do conteúdo da norma eficaz da dignidade da pessoa humana.160

O Estado pós-social tem como característica básica a intervenção nas relações entre particulares, de maneira a atenuar as desigualdades existentes e as distorções provocadas pelo livre comércio, disponibilizando o necessário para que as pessoas possam viver dignamente. A sociedade, como um todo, sai vitoriosa.

160 FURTADO, Emmanuel Teófilo. Sentido ontológico do princípio da dignidade da pessoa humana e o trabalhador. In: Revista de Direito do Trabalho. Ano 32, jan-março de 2006. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 31.

2.7 Contratações trabalhistas compulsórias e a ordem econômica na CF/88: entre a livre