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A Autonomia Moral

No documento O indivíduo em Charles Taylor (páginas 30-32)

O Bem constitutivo do Self moderno é relacionado à noção de que cada indivíduo é livre e, portanto, autônomo e capaz de ter em si mesmo a noção do que é certo e errado, bom e mal. Assim, a noção de direitos naturais vincula o respeito pela vida e integridade à noção de autonomia (TAYLOR, 2005). Não se trata mais de ter uma noção oriunda de outrem, de uma instituição, ou de uma concepção religiosa de moralidade. Isto é, não mais uma instituição humana, mas o conjunto de leis consolidadas e democraticamente concebidas. As pessoas são concebidas como colaboradores na instituição do respeito de que elas são dignas. Essa mudança de forma, dirá Taylor (2005, p. 26), “se faz acompanhar, naturalmente, de uma alteração de conteúdo, da concepção do que é respeitar alguém. A autonomia é agora central a isso”. E neste sentido, respeitar alguém inclui sobretudo respeitar a sua autonomia. Não foi em vão que Locke incluiu o direito à liberdade como um direito natural inalienável, respeitar a personalidade envolve respeitar a autonomia moral da pessoa.

Com o desenvolvimento da noção pós-romântica de diferença individual, isso se amplia até a exigência de darmos às pessoas a liberdade de desenvolver sua personalidade à sua própria maneira, por mais repugnante que seja para nós e mesmo para nosso sentido moral – tese desenvolvida tão persuasivamente por J. S. Mill (TAYLOR, 2005, p. 26).

Assim, a nossa compreensão de respeito precisa ter a autonomia como um ponto central. É importante mencionar que a moralidade cristã da Reforma Protestante tem influência direta nesta cultura moderna de autonomia e respeito ao ser humano. Uma vez que já não há mais a noção de que o clero religioso possui o monopólio do poder, não possui nenhuma distinção natural para com os cidadãos comuns, mas que o domínio religioso – e também o poder de magistrado civil – embora seja de fato e reconhecido como um cargo de autoridade, na concepção dos reformadores esse cargo se trata de uma profissão como qualquer outra. Cidadãos comuns com profissões comuns possuem um grau de importância tal qual um detentor de cargo público de alto escalão, como um rei. Taylor descreve isso como a “afirmação da vida cotidiana” e pretende designar em conjunto a vida da produção e da família.

De acordo com a ética aristotélica tradicional, trata-se de algo de importância meramente infraestrutural. A “vida” era importante como o pano de fundo e apoio necessários ao “bem viver” de contemplação e à ação das pessoas como cidadãos. Com a Reforma, encontramos um sentido moderno, de inspiração cristã, de que a vida cotidiana era, pelo contrário, o próprio centro do bem viver. A questão crucial era como essa vida era levada, se em atitude contrita e no temor a Deus ou não. Mas a vida dos tementes a Deus era vivida no matrimônio e em seu chamado. As formas “superiores” de vida precedentes foram, por assim dizer, destronadas. E,

com isso, vinha com frequência um ataque, velado ou aberto, às elites que haviam feito dessas formas a sua província (TAYLOR, 2005, p. 28).

Taylor (2005) crê que essa afirmação da vida cotidiana, mesmo que apareça na sua forma secularizada, se tornou uma das ideias mais poderosas da civilização moderna. Ela está presente tanto na burguesia preocupada com questões de bem-estar como no marxismo com sua concepção do homem como produtor. A vida cotidiana é a vida comum do indivíduo e afirmá- la significa assegurar a importância do indivíduo no contexto do seu trabalho e nos cuidados de sua família. Essa concepção fomentou o pensamento liberal. Segundo Taylor (2005), o Ocidente moderno é o resultado dessa afirmação da vida cotidiana, juntamente com a autonomia ocupando um lugar central em nossa compreensão de respeito e nossa aversão ao sofrimento.

A respeito da vida cotidiana, aprofundaremos no próximo capítulo. No entanto, quando falamos sobre o bem constitutivo, vimos que a moralidade está baseada num pano de fundo, ou um pressuposto, do qual concluímos pelo que é bom e correto. Em sociedades antigas havia predominantemente a noção de ordem cósmica fornecida pela concepção de um Deus soberano que determina o que é bom e correto. A própria lei que regia as sociedades humanas se baseava inteiramente nos textos sagrados, mas essa noção foi se perdendo com a influência do Iluminismo na Filosofia Ética. À medida que a modernidade tomava forma nos sistemas filosóficos, crescia o debate acerca da autonomia humana e a noção de independência e desnecessidade de um ser divino para dirigir o homem. O conceito teleológico do homem passou a estar desvinculado da noção transcendental do homem enquanto criatura de Deus e, a partir disso, o homem procurou a noção de moralidade com base na quebra desse vínculo. A autonomia moral, portanto, se opõe a teonomia, cuja moralidade é baseada na lei de Deus, e se sustenta na lei humanista. Porém, uma vez comprometida a noção de autoridade divina, comprometida também foi a noção de autoridade humana que repousasse em algum grau na instituição divina para designar quem seria o indivíduo a exercer determinado cargo. Foi preciso encontrar outra forma que pudesse manter a ordem social sem, no entanto, apelar para uma decisão cósmica ou divina. Esse fato fomentou a discussão em favor da democracia na forma de eleições diretas e indiretas, em face à destituição dos poderes monárquicos. Surge, juntamente com isso, a defesa filosófica do liberalismo social, no qual o indivíduo nasce livre e capaz de exercer sua liberdade conforme a sua identidade individual, seus pressupostos e com base na liberdade individual, conceito que Rousseau defendeu no sentido de liberdade como um valor supremo. Tal liberdade como valor supremo trouxe à luz a noção de autonomia moral, cujo debate dura até os dias de hoje.

No documento O indivíduo em Charles Taylor (páginas 30-32)