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A autonomia da pessoa com deficiência e o discurso do “discernimento”, vertentes do

2 A AUTONOMIA PRIVADA: ENTRE A PROTEÇÃO PATRIMONIAL E A

2.3 A autonomia da pessoa com deficiência e a problematização da formação do sujeito

2.3.1 A autonomia da pessoa com deficiência e o discurso do “discernimento”, vertentes do

1916 e de 2002

Neste ítem, analisaremos a autonomia da pessoa com deficiência, a partir da regulamentação do Código Civil de 1916 (BRASIL, 1916), perpassando pelo atual Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002). Este exercício genealógico tem como objetivo compreender os processos que incidem sobre o tema da autonomia relativamente à pessoa com deficiência no âmbito das normas jurídicas brasileiras.

Para Clóvis Bevilaqua, precursor das leis civilísticas no Brasil e interpretado por Mariana Lara, a partir de 1899 o conceito de “pessoa”, segundo o ordenamento jurídico, diz

respeito ao “[...] ser ao qual se atribuem direitos e deveres, equivalendo a sujeito de direitos” (BEVILAQUA, 1927, p. 164 apud LARA, 2019, p. 73). Percebe-se, assim, que Bevilaqua (1927 apud LARA, 2019) trouxe à tona a noção de personalidade como criação social e necessária para movimentar o sistema jurídico. Em outras palavras, o autor a modela pela ordem jurídica, não distinguindo, como fez Augusto Teixeira de Freitas, anteriormente, a personalidade da capacidade (BEVILAQUA, 1927 apud LARA, 2019).

A discussão em torno da personalidade/capacidade ora levantada, está condizente com a separação de capacidade de fato e de direito5

, sendo que até o momento as informações são equivalentes à capacidade de direito, ou seja, “[...] o código define, antes, a personalidade, que equivale à capacidade de direito. Afirma que todo homem é pessoa, no sentido jurídico da expressão” (BEVILAQUA, 1927, p. 165 apud LARA, 2019, p. 74).

A exemplo do direito francês, alemão e suíço, Clóvis Bevilaqua manteve no Código Civil de 1916 a gradação da capacidade de fato, ou seja, a medida adequada para alguém exercer os atos da vida civil livremente. Como consequência, a incapacidade resultou no impedimento do exercício pessoal de direitos. Assim, após revisões, o artigo 5º do Código Civil Brasileiro de 1916 trouxe as hipóteses de incapacidade de fato:

Art.5. São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I. Os menores de dezesseis anos.

II.Os loucos de todo o gênero.

III. Os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade. IV. Os ausentes, declarados tais por ato do juiz. (BRASIL, 1916).

Merece atenção a disposição normativa deste Código Civil, o qual exprimia o termo “loucos de todo o gênero”, assim como tinha por medida da capacidade a expressão da “vontade” – no que se refere aos surdos-mudos (BRASIL, 1916). Ora, em “A História da Loucura”, Michel Foucault (1972) já indicava as formas como iam sendo criadas as vinculações dos sujeitos às formas identificadas de loucura:

É verdade que os dementes, os loucos furiosos, os maníacos ou os violentos podem ser logo reconhecidos: não porém porque sejam loucos e na medida em que o são, mas apenas porque seu delírio tem um modo particular que acrescenta à essência imperceptível de toda loucura os signos que lhe são próprios: "Os frenéticos são apenas loucos de outro gênero". (FOUCAULT, 1972, p. 196).

5 Capacidade é a medida da personalidade, que é reconhecida a todas as pessoas naturais e jurídicas. Pode ser de

direito ou de fato. A de direito é própria de todo ser humano, que a adquire assim que nasce (ao começar a respirar) e só a perde quando morre. A de fato é a aptidão para exercer, pessoalmente, os atos da vida civil, sua aquisição está condicionada à plenitude da consciência e da vontade. Ocorre capacidade plena quando a pessoa é dotada das duas espécies de capacidade: a capacidade de direito e a capacidade de fato (LIMA; COSTA; PINHEIRO, 2015).

Segundo o autor, na Renascença, a loucura manifestava sua presença através de ameaças à razão, o que foi ainda percebido no início do século XVIII, mas de maneira a incluí-la em uma suposta razão universal (FOUCAULT, 1972). Nesse caso, a evidência do louco era fruto de um saber incontestável que a percebia pelos gestos, falas e atitudes despadronizadas de um contexto advindo da racionalidade (FOUCAULT, 1972).

Já em “Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise”, Foucault (2002) discute a distância estabelecida entre a razão e a não-razão e do poder exercido da razão sobre a não-razão, responsável por estabelecer uma verdade da loucura ou da falta da doença que da mesma deriva.

No meio do mundo sereno da doença mental, o homem moderno não se comunica mais com o louco; há, de um lado, o homem de razão que delega para a loucura o médico, não autorizando, assim, relacionamento senão através da universalidade abstrata da doença; há, do outro lado, o homem de loucura que não se comunica com o outro senão pelo intermediário de uma razão igualmente abstrata, que é ordem, coação física e moral, pressão anônima do grupo, exigência de conformidade. (FOUCAULT, 2002, p. 153).

A consequência desse poder da razão sobre a não-razão, para o autor, significou, nos séculos XVIII/XIX, menos um exercício de controle físico da loucura (o confinamento), e mais um sistema de “disciplina-normalização”, exercido através de mecanismos que criaram instituições disciplinadoras e normalizadoras (tais como os hospitais psiquiátricos) com o intuito de correção daqueles considerados anormais (FOUCAULT, 2002). Assim, o código que classificava o louco e o não-louco – amparado pelo poder/saber médico – também designava o tratamento e o modo de correção, quando possível, do louco (FOUCAULT, 2001).

Deste modo a loucura, nomeada no Código Civil de 1916, traz a medida da capacidade ou a incapacidade da pessoa com deficiência determinada pela função jurisdicional, fundamentada em uma avaliação estritamente médica (BRASIL, 1916). É o que se pode perceber no artigo 450 deste código: “Antes de se pronunciar acerca da interdição, examinará pessoalmente o juiz o argüido de incapacidade, ouvindo profissionais” (BRASIL, 1916).

Trazendo para a análise a reflexão de Canguilhem, Foucault (2001) enfatiza a classificação da loucura pelo discurso médico e jurídico e, portanto, duplamente classificatório do indivíduo considerado louco.

Duplo discurso que, ao visar a normalização dos corpos, se desfaz sob um sistema de normalização:

[...] o funcionamento de um poder que não é nem o poder judiciário nem o poder médico, um poder de outro tipo [...] poder de normalização. Com o exame, tem-se

uma prática que diz respeito aos anormais, que faz intervir certo poder de normalização e que tende, pouco a pouco, por sua força própria, pelos efeitos de junção que ele proporciona entre o médico e o judiciário, a transformar tanto o poder judiciário como o saber psiquiátrico, a se constituir como instância de controle do anormal. (FOUCAULT, 2001, p. 52).

Assim, esse poder de normalização exercido pelos poderes e saberes judiciário e médico, especificamente a partir do final do século XIX, na Europa, e com o Código Civil de 1916 (BRASIL, 1916), no Brasil, perdurou, no caso brasileiro até a elaboração do Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002) que, embora tenha trazido algumas alterações, manteve a subdivisão entre capacidade de direito e incapacidade de fato. A primeira, de acordo com o Código, sendo relacionada à noção de pessoa e trazendo o reconhecimento da personalidade e a segunda, determinando a incapacidade de fato conforme os artigos 3º e 4º (LARA, 2019).

Dispõe a codificação civil atual, com vigência a partir de 2002:

Art.3º. São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I – os menores de dezesseis anos;

II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;

III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Art. 4º. São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;

III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV – os pródigos.

Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial. (BRASIL, 2002).

Ao analisar a redação trazida pelo Código Civil de 2002, percebe-se que o art. 3º substituiu a expressão “loucos de todo gênero” por aqueles que, “por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos”, conforme observado por Mariana Lara (2019). Tal redação levanta, de imediato, para esta pesquisa o seguinte questionamento: o que é, ou o que se entende por “discernimento”?

Para este fim analisaremos, inicialmente, as perspectivas entre aquilo que é tido por normal e por patológico, em Georges Canguilhem (2009), vislumbrando responder ao questionamento ora lançado.

Em “Os Anormais”, Foucault (2001) remete o leitor à obra de Georges Canguilhem (2009), “O normal e o patológico”, que trouxe importantes reflexões sobre a caracterização de anormal e anomalia.

[...] em medicina, o estado normal do corpo humano é o estado que se deseja restabelecer. Mas será que se deve considerá-lo normal porque é visado como fim a ser atingido pela terapêutica, ou, pelo contrário, será que a terapêutica o visa justamente porque ele é considerado como normal pelo interessado, isto é, pelo doente? Afirmamos que a segunda relação é a verdadeira. (CANGUILHEM, 2009, p. 48).

O autor também justifica o que inicialmente foi denominado de anomalia, ou um fato designado por um termo descritivo, e anormal como referência a valores, a normas, mas que por interpretação gramatical atual trouxe uma colusão de sentidos entre ambos os termos (CANGUILHEM, 2009). Mas por fim, Canguilhem (2009) denomina anormal como um conceito descritivo e anomalia como um conceito normativo, ou seja, valorativamente advindo de uma norma.

Para corroborar com sua tese, assim como para tentar justificar o termo “discernimento” insculpido na norma do Código Civil de 2002 através de uma metodologia genealógica e analítica, ressaltamos que Canguilhem (2009) afirma a anomalia como uma consequência de variação individual, indiscernível entre dois indivíduos, caracterizada como insubstituível entre pessoas, por isso um conceito de valor. Prossegue afirmando que a diversidade não é doença, tampouco o anormal é o patológico, pois “[...] patológico implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada” (CANGUILHEM, 2009, p. 53).

O anormal, como um fato descritivo, diverso, no sentido de diversidade, não é o patológico, mas o patológico é realmente o anormal, quando está inserindo este em um conceito de doença, pois para Canguilhem (2009) há uma maneira de considerar o patológico como normal (como quando o corpo utiliza-se de suas defesas contra doenças), definindo com isso o normal e o anormal.

Para cumprir com seu desiderato, cita que:

[...] pode-se dizer que uma saúde perfeita contínua é um fato anormal. [...] A saúde [...], é um conceito normativo que define um tipo ideal de estrutura e de comportamentos orgânicos, [...] a saúde é o bem orgânico. A saúde adjetivada é um conceito descritivo que define uma certa disposição e reação de um organismo individual em relação às doenças possíveis. (CANGUILHEM, 2009, p. 53).

A problematização que o autor também traz sobre a distinção entre anomalia e o estado patológico é importante para a biologia pois remete-nos à variabilidade dos organismos, da significação e do alcance da variabilidade constatada (CANGUILHEM, 2009). Questiona, assim, se conforme os seres vivos estão se afastando do tipo específico de suas características,

estão sendo anormais que colocam em perigo essa mesma forma específica ou serão inventores de novas formas. (CANGUILHEM, 2009).

Minkowski (apud CANGUILHEM, 2009, p. 45) ao analisar a doença mental, afirma que a alienação não pode ser reduzida a um fato de doença, determinada por uma referência de imagem ou de ideia precisa do homem médio ou normal. O autor corrobora com a ideia de que é intuitivamente que classificamos um homem como alienado, e assim o fazemos como homens e não como especialistas (MINKOWSKI apud CANGUILHEM, 2009).

O indivíduo, nesta perspectiva, deve ser visto em sua totalidade, nas suas relações contextuais de vida, através de suas características próprias, afirma Canguilhem:

[...] A fisiologia moderna se apresenta como uma antologia canônica de constantes funcionais em relação com funções de regulação hormonais e nervosas. Essas constantes são classificadas como normais enquanto designam características médias e mais freqüentes de casos praticamente observáveis. Mas são também classificadas como normais porque entram, como ideal, nessa atividade normativa que é a terapêutica. As constantes fisiológicas são, portanto, normais no sentido estatístico, que é um sentido descritivo, e no sentido terapêutico, que é um sentido normativo. (CANGUILHEM, 2009, p. 47).

A perspectiva é a de que Canguilhem (2009) critica a visão de que há uma variação quantitativa do patológico no indivíduo, pois considera que há uma infinitude de possibilidades tanto físicas quanto contextuais na vida, e que estabelecer normas de saúde e ou doença apenas transporta uma conceituação de tipos ideais de vida (SILVA et al. 2010).

Dando continuidade à análise da vertente da autonomia da pessoa com deficiência sob o crivo do “discernimento”, necessário se faz trazer à discussão as pesquisas realizadas por Débora Diniz, especificamente no trato do discernimento e dos estigmas do “corpo” deficiente. Diniz, Barbosa e Santos afirmam que: “Habitar um corpo com impedimentos físicos, intelectuais ou sensoriais é uma das muitas formas de estar no mundo” (DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009, p. 64). Neste sentido, se, por um lado, a normalidade é uma forma de expectativa biomédica e padrão de funcionamento, por outro, está consubstanciada em padrões morais e ou de produtividade sociais. Tais premissas combatem a compreensão de que a deficiência é a opressão pelo corpo com variações de funcionamento (DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009).

Sustentam os autores que há uma diversidade de corpos e uma multiplicidade de meios de habitar um corpo com impedimentos, o que traz maior compreensão sobre a legitimidade da opressão, cuja experiência do corpo com impedimentos é culturalmente discriminada pelo advento da normalidade (DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009). Consideram, como outrora

analisado por Canguilhem (2009), que há um dualismo entre o normal e o patológico, sendo representado pela oposição entre corpos com e sem impedimentos (DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009).

Caminhando para a conclusão da análise da autonomia da pessoa com deficiência correlacionada ao “discernimento”, há pesquisadores que conceituam o discernimento, dando- lhe uma função classificatória da deficiência pela capacidade ou incapacidade de discernir, como afirma Mariana Lara:

Discernimento trata-se de um termo amplo, que envolve um conjunto de várias habilidades, incluindo o conhecimento de si próprio e do meio. Envolve a capacidade de entender as circunstâncias fáticas, de compreender as consequências de um determinado ato, de tomar decisões conscientes e autônomas. Não é tarefa fácil avaliar o discernimento de uma dada pessoa no caso concreto. Por óbvio, o mero diagnóstico de uma deficiência ou enfermidade mental ou intelectual, ainda que grave, não se mostra suficiente para enquadrar o paciente em um regime protetivo. Faz-se necessário analisar a sua funcionalidade, ou seja, a sua real aptidão de atividade e participação a partir do diagnóstico que apresenta. (LARA, 2019, p. 171).

Relata em suas abordagens a autora, que o termo “discernimento” e sua conceituação não deve ser uma empreitada dos profissionais do Direito, e sim da medicina, do serviço social e da psicologia, ou seja, uma equipe multidisciplinar, partindo-se de um conceito biopsicossocial de deficiência, verificando-se com isso as funcionalidades da pessoa através de instrumentos avaliativo próprios (LARA, 2019).

Nesta toada, é perceptível que há uma preocupação com o sistema protetivo da pessoa com deficiência, sob o argumento corroborado por Paula Távora Vitor na propositura de alternativas menos restritivas à autonomia da pessoa com deficiência, vislumbrando a avaliação do “discernimento” sob o aspecto da proteção (VÍTOR, 2009 apud LARA, 2019).

E com isso, para darmos continuidade a análise da autonomia da pessoa com deficiência, tendo sido tratado até o momento a vertente da autonomia através da medida de sua capacidade pelo “discernimento”, questionado aqui sobre sua real conceituação, avaliaremos a autonomia sob a vertente da dignidade humana, independente de qualquer medida de capacidade e ou incapacidade do sujeito/pessoa com deficiência.

2.4 A gramática opressiva da normalidade e os regimes de desigualdades de