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A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a

2 A AUTONOMIA PRIVADA: ENTRE A PROTEÇÃO PATRIMONIAL E A

3.2 A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a

Para garantirmos a compreensão das questões da autonomia da pessoa com deficiência, aqui a trataremos, conforme já corroborado no primeiro capítulo, como um instrumento da

dignidade humana, o que centraliza essa mesma dignidade humana no ordenamento jurídico

brasileiro, sendo, portanto, a Curatela um instrumento de promoção deste direito fundamental. Carlos Edson do Rêgo Monteiro Filho, afirmando sua colaboração em nota de orelha da obra de Célia Barbosa Abreu, assim afirma:

[...] no cenário contemporâneo não se deve (rectius: não se pode) descuidar da valorização, com prioridade máxima, da tutela da pessoa humana em concreto, sendo institutos como a curatela instrumentos da promoção de sua dignidade, consoante as especificidades de cada caso, e bem assim da busca de dar conteúdo axiológico às cláusulas gerais previstas, com base em parâmetros do próprio ordenamento jurídico, em linha de superação da ideia de espaços vazios de arbítrio do julgador. (MONTEIRO FILHO, 2009).

A Convenção Internacional Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), promulgada no Brasil pelo Decreto 6.949/2009, trouxe em seu artigo 12, ítem 4, o seguinte mandamento:

4. Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, as vontades e as preferências da pessoa [...]. (BRASIL, 2009).

A ratio da CDPD, explicitada no Art. 12 é a de considerar a capacidade legal da pessoa com deficiência como um conceito conglobante, ou seja, que abrange tanto a capacidade de direito quanto a de fato, devendo a lei assegurar as salvaguardas protetivas que sejam

necessárias e de modo transitório, de acordo com as necessidades individuais e subjetivas de cada pessoa com deficiência nos procedimentos da Curatela (ARAÚJO; RUZYK, 2017).

Historicamente, o Brasil assumiu-se signatário da CDPD da ONU a partir da aprovação do Decreto n. 186/2008, que: “Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007” (BRASIL, 2008), através do rito constitucional insculpido no artigo 5º, § 3º da Constituição da República de 1988, que assim especifica:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Atos aprovados na forma deste parágrafo: DLG nº 186, de 2008, DEC 6.949, de 2009, DLG 261, de 2015, DEC 9.522, de 2018) (BRASIL, 1988).

A CDPD, tendo sido aprovada pelo rito constitucional acima exposto assumiu status de norma constitucional, e foi o primeiro Tratado Internacional aprovado sob este rito no Brasil, conforme afirmam Luiz Alberto David Araújo e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk:

Com a reforma do Poder Judiciário (Emenda Constitucional 45), incluiu-se o parágrafo terceiro, no artigo quinto, para permitir que um tratado internacional de Direitos Humanos, que fosse acolhido por três quintos, em votação de dois turnos em cada Casa, fosse recebido com equivalência de emenda à Constituição. [...] Até o momento, no entanto, apenas um instrumento internacional foi recebido com tal formalidade: a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. (ARAÚJO; RUZYK, 2017, p. 231).

Prosseguindo no contexto legislativo histórico, em 25 de agosto de 2009, foi então

promulgada a CDPD, através do Decreto n. 6949/2009, cujo objetivo é o de executar e cumprir

fielmente a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (BRASIL, 2009).

Assim, é inserido na Constituição da República de 1988 um Tratado Internacional de Direitos Humanos, através de uma emenda constitucional, tornando-se, portanto, norma constitucional, com hierarquia superior a todas as demais normas do sistema jurídico brasileiro. Nesta toada, há uma substancial modificação de paradigmas no tratamento jurídico da capacidade das pessoas com deficiência que geraram transformações radicais na figura de meios de proteção e promoção desta população, como a Curatela (ARAÚJO; RUZYK, 2017).

É evidente que, historicamente, a disciplina jurídica analítica da capacidade da pessoa com deficiência era catalogada em conceitos puramente médicos, oferecendo assim subsídios ao Direito para qualificar os capazes e os incapazes. Denominou-se assim um “enfoque de status” que promovia um verdadeiro juízo de exclusão com a característica de, no Brasil, estigmatizar a pessoa com deficiência como “loucos de todo gênero”, o que foi amplamente modificado pelo artigo 12 da CDPCD (ARAÚJO; RUZYK, 2017).

Genealogicamente, conforme afirma Foucault (1996) em sua obra “A ordem do

discurso”, há três sistemas de exclusão que atingem o discurso: a palavra proibida (interdição);

a segregação da loucura e a vontade de verdade, sendo que os dois primeiros orientam-se em direção ao terceiro, conforme afirma:

Dos três grandes sistemas de exclusão que atingem o discurso, a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade, foi do terceiro que falei mais longamente. É que, há séculos, os primeiros não cessaram de orientar-se em sua direção; e que, cada vez mais, o terceiro procura retomá-los, por sua própria conta, para, ao mesmo tempo, modifica-los e fundamentá-los; é que se os dois primeiros não cessam de se tornar mais frágeis, mais incertos na medida em que são agora atravessados pela vontade de verdade, esta, em contrapartida, não cessa de se reforçar, de se tornar mais profunda e mais incontornável. (FOUCAULT, 1996, p. 19).

Trazer a “Ordem do discurso” de Foucault para a análise é condizente com a discussão, haja vista a importância dos novos discursos de emancipação da pessoa com deficiência advindos da CDPD (BRASIL, 2009), pois, os procedimentos de controle e de delimitação são exercidos do exterior; apresentam um funcionamento de exclusão, são condizentes com a parte do discurso que coloca em jogo o poder e o saber (FOUCAULT, 1996).

Há também, para Foucault (1996), procedimentos internos de controle, manifestados por discursos que exercem seu próprio controle, qualificados como procedimentos que funcionam como classificatórios, ordenatórios e distributivos. Os procedimentos internos são o

comentário: “[...] coisas ditas uma vez e que se conservam, porque nelas se imagina haver algo

como um segredo ou uma riqueza” (FOUCAULT, 1996, p. 22). Traz como exemplo os textos religiosos ou textos jurídicos, dotados em certa medida de cientificidade, complementando-se com outro princípio do discurso, o do autor, que tem por fim agrupar discursos, com unidade e origem de suas significações, com um foco de coerência (FOUCAULT, 1996).

Para corroborar com seu pensamento, Foucault (1996) assume também que se deve reconhecer não somente as “ciências”, mas as disciplinas, como outro princípio de limitação, relativo e móvel, permitindo construir o discurso conforme um jogo restrito. Para Foucault: “[...] uma disciplina não é a soma de tudo o que pode ser dito de verdadeiro sobre alguma coisa;

não é nem mesmo o conjunto de tudo o que pode ser aceito, a propósito de um mesmo dado, em virtude de um princípio de coerência ou de sistematicidade.” (FOUCAULT, 1996, p. 31).

Assim, a medicina não pode se constituir de tudo o que se afirma como verdadeiro sobre a doença, como a botânica não pode definir-se por uma soma de todas as verdades sobre plantas (FOUCAULT, 1996). Este é o paradigma analiticamente compreendido da CDPD (BRASIL, 2009), que traz em seu preâmbulo a fundamental importância de emancipar pessoas com deficiência, extinguindo-se discursos de poderes-saberes já qualificados como objetivos, vejamos alguns itens:

Preâmbulo: Os Estados Partes da presente Convenção, [...]

e) Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas,

[...]

h) Reconhecendo também que a discriminação contra qualquer pessoa, por motivo de deficiência, configura violação da dignidade e do valor inerentes ao ser humano, i) Reconhecendo ainda a diversidade das pessoas com deficiência,

j) Reconhecendo a necessidade de promover e proteger os direitos humanos de todas as pessoas com deficiência, inclusive daquelas que requerem maior apoio,

k) Preocupados com o fato de que, não obstante esses diversos instrumentos e compromissos, as pessoas com deficiência continuam a enfrentar barreiras contra sua participação como membros iguais da sociedade e violações de seus direitos humanos em todas as partes do mundo. (BRASIL, 2009).

Nesta perspectiva emancipatória foi promulgada a Lei n. 13.146/2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, ou aqui referenciado como EPD (BRASIL, 2015b). Nesse sentido, propomos o analisar, no tópico seguinte para compreendermos as modificações empreendidas pela normativa legal ao sistema jurídico brasileiro em torno do instituto da Curatela da pessoa com deficiência.

3.3 A “ratio” do Estatuto da Pessoa com Deficiência e a luta dos movimentos sociais: