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A autonomia privada no direito internacional privado brasileiro

2.4 A Autonomia das Partes nos Âmbitos Interno e Internacional

2.4.3 A autonomia privada no direito internacional

2.4.3.2 A autonomia privada no direito internacional privado brasileiro

No Brasil, pode-se citar o nome de alguns doutrinadores, como Teixeira de Freitas, Eduardo Espínola, Laffayette Rodrigues e Clóvis Bevilaqua, entre outros, que trataram de maneira significativa sobre o instituto da autonomia das partes em contratos.

Teixeira de Freitas, por exemplo, foi um dos propagadores da autonomia nos contratos, apontando sua importância na determinação da lei contratual. Inclusive, reconhece a literatura que Teixeira de Freitas previu o princípio na forma do domicílio especial no Esboço do Código Civil do Império publicado em 1860610.

Eduardo Espínola, por sua vez, ressaltou que o Brasil deveria considerar a aceitação do instituto da ordem pública internacional, do princípio da autonomia da vontade e da circunstância de conexão ligada à função social da lei611.

Lafayette Rodrigues Pereira, entretanto, foi mais além. Previu a importância do instituto e ainda o inclui no projeto do Código de Direito Internacional Privado612, que, no

606 RECHSTEINER, 2003, p. 139.

607 FRESNEDO DE AGUIRRE, 1991, p. 50.

608 O art. 2.403 do Código Civil uruguaio demonstra claramente a posição do Uruguai com relação ao instituto

da autonomia da vontade ao dispor que: “las reglas de competencia legislativa y judicial determinadas en este Título [de las obligaciones que nacen de los contratos], no pueden ser modificadas por la voluntad de las partes. Ésta sólo podrá actuar dentro del margen que le confiera la ley competente”.

609 Segundo Nadia de Araújo (Direito internacional privado: teoria e prática brasileira. De acordo com o novo

Código Civil. 2. ed. Rio de Janeiro-São Paulo-Recife: Renovar, 2004b, p. 78), “o Código Civil Paraguaio, de 1986, é mais recente, mas que não inovou, pois não criou nenhuma regra nessa área, pelo que continuam em vigor as regras do Tratado de Montevidéu, modificado em 1940. E a principal tendência seguida pelos jurintercionalistas latino-americanos sempre foi aquela filiada ao princípio territorista”.

610 DEL’OMO, Florisbal de Souza. Direito Internacional Privado: abordagens fundamentais – legislação –

jurisprudência. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 11; STRENGER, 2003, p. 278.

611 STRENGER, 2003, p. 305.

612 Segundo Nadia de Araújo (2004b, p. 96), “o civilista Lafayette Rodrigues Pereira foi incumbido pelo Barão

do Rio Branco de elaborar um projeto de Código de Direito Internacional Privado, apresentado à Comissão Interamericana de Jurisconsultos que se reuniu no Rio de Janeiro, em 1912, para posteriormente ser discutido pela Conferência Interamericana também realizada naquele ano”.

entanto, não foi adotado devido à aprovação do Código de Bustamante. Como ressalta Nádia de Araújo, Laffayette foi um dos pioneiros na adoção do princípio da autonomia privada com relação aos contratos internacionais613, posição que só foi adotada cinqüenta anos mais tarde, na Convenção de Haia de 1955, primeira Convenção a adotar de maneira expressa esse princípio, como visto anteriormente.

Clóvis Beviláqua também defendeu a importância da autonomia privada, deixando claro, no entanto, que ela possuía limites614, como se pode constatar no seguinte trecho:

A vontade individual para produzir efeitos jurídicos tem de colocar-se sob a égide da lei, da qual tira toda a sua eficácia social. [...] Colocada nos seus naturais limites e agindo de acordo com a lei, a vontade é a fonte geradora das obrigações convencionais e unilaterais, conseqüentemente, lhe deve ser permitido, nas relações internacionais, escolher a lei a que se subordinem as obrigações, livremente contraídas615.

Apesar de existirem muitos defensores da autonomia das partes no Brasil, há, ao menos, três correntes distintas com relação ao tema, principalmente quando ela se refere aos contratos internacionais: a primeira, dos autores enfaticamente contrários à autonomia da vontade, como é o caso de Maria Helena Diniz616 e Wilson de Souza Campos Batalha617; a segunda, daqueles a favor, desde que limitada às regras supletivas, excluindo-se a possibilidade de sua aplicação ao contrato como um todo, e os que percebem limites a essa autonomia, como é o caso de Jacob Dolinger, Pontes de Miranda e Clóvis Beviláqua; e, finalmente, a terceira, daqueles favoráveis de forma mais ampla à autonomia, como Beat Walter Rechsteiner.

613 ARAÚJO, 2004b, p. 96.

614 Isso pode ser constatado pelo texto do art. 35.a do projeto primitivo de Clóvis Bevilaqua que prevê que: “as

obrigações convencionais, assim como as que se originam de declaração unilateral da vontade, serão reguladas: a) em sua substância e efeitos, pela lei do lugar onde forem celebrados os atos que as originaram, salvo estipulação em contrário, ofensa ao direito nacional dos pactuantes e à ordem pública”. SILVA, L., 2000a, p. 114. E do art. 13 da LICC de 1917, do qual foi autor.

615 Apud ARAÚJO, 2004b, p. 98.

616 Para Maria Helena Diniz (Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro comentada. 7. ed. São Paulo:

Saraiva, 2001, p. 256), “não há acolhida da autonomia da vontade como elemento de conexão em matéria alusiva a contratos”. Ainda afirma a autora (2001, p. 257) que, “o art. 9 da Lei de Introdução é cogente, não podendo as partes alterá-lo. Há autores, como Oscar Tenório, que não excluem a possibilidade de se aplicar a autonomia da vontade, desde que ela seja admitida pela lei do país onde a obrigação se constituir (lex loci

celebrationis), sem que se contrarie norma imperativa. Mas, na verdade, será inaceitável a autonomia da

vontade para indicar a lei aplicável; haverá tal autonomia para escolha do local para regulamentação de seus interesses ou do foro (choice of fórum clause; AJ 45:2 e 73:88; RTJ, 10:401, 34:404 e 35:155) etc”.

617 Batalha (apud FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga. A lei e o foro de eleição em tema de contratos

internacionais. In: RODAS, João Grandino (Coord.). Contratos internacionais. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 73) afirma que, “face à Lei de Introdução ao Código Civil não pode pairar dúvida: inaceitável é a autonomia da vontade para a indicação da lei aplicável. A autonomia da vontade só pode exercer-se no âmbito das normas dispositivas do Direito reputado aplicável”.

Essa divisão doutrinária ocorre, em parte, pelas diferentes legislações que contemplam a matéria. Por exemplo, enquanto a maioria das convenções internacionais618 faz menção ao princípio da autonomia privada como elemento de conexão, como visto anteriormente, a legislação brasileira não aceita de maneira expressa esse princípio.

No entanto, o Brasil já teve presente no seu sistema jurídico, como acreditam alguns autores como Luiz Alberto de Souza e Silva, o princípio da autonomia privada conflitual. O art. 13 da Lei de Introdução ao Código Civil de 1917 chegou a estipular que “regulará, salvo estipulação em contrário, quanto à substância e aos efeitos das obrigações, a lei do lugar onde forem contraídas”619. Esse dispositivo, segundo autores como Luiz Alberto de Souza e Silva, autorizava a aplicação do princípio da autonomia privada, por utilizar a expressão “salvo estipulação em contrário”. Este autor, entretanto, afirma que o texto do artigo foi mal formulado e, dessa forma, “[...] embora nosso direito consagrasse a autonomia da vontade, não permitiu que essa tivesse valor jurídico na maioria dos casos exemplificados pelo direito internacional privado”620. Acrescenta o autor que “esta disposição não encontrou amparo no nosso direito que se fundamenta na premissa de que a substância e os efeitos das obrigações são sempre regulados pela lei do lugar onde são contraídas”621.

A má formulação de referido artigo também foi constatada pelo Senador Leopoldo de Bulhões, que sugeriu a reformulação desse texto legal. O novo texto sugerido pelo senador deveria ser redigido desta maneira: “a substância e os efeitos das obrigações serão regulados pela lei estipulada pelas partes; em falta de declaração expressa, serão regulados pela lei do lugar em que forem recolhidas”622. No entanto, a substituição do texto não foi aceita.

Em 1942, uma nova Lei de Introdução ao Código Civil foi promulgada prevendo que a lei de onde fosse contraída a obrigação deveria ser adotada para solucionar os litígios provenientes dessa obrigação, mudando, assim, a visão brasileira com relação ao tema de autonomia das partes. Apesar de aparentemente estar excluída a adoção do princípio da

618 Nadia de Araújo (2004b, p. 330) chegou a explanar que “adequada seria a substituição do art. 9 da LICC

pelas normas da Convenção Interamericana sobre o Direito Aplicável aos Contratos Internacionais. A Convenção serviria não só para regular os contratos internacionais entre os parceiros latino-americanos, mas também como regra conflitual a todas as relações contratuais internacionais”.

619 Como explica Luiz Alberto de Souza e Silva (Direito internacional privado: Lei de Introdução ao Código Civil. 2. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2000b, p. 6), a redação da LICC de 1917, pode-se afirmar, foi

reflexo das disposições do art. 424, do Código Comercial de 1850 e do art. 5° do Regulamento n.º 737, que apresenta os princípios de que a substância e os efeitos das obrigações serão regulados pela lei do lugar onde foram contraídas, salvo expressa convenção das partes contratantes.

620 SILVA, L., 2000b, p. 42. 621 SILVA, L., 2000b, p. 12. 622 SILVA, L., 2000b, p. 12.

autonomia privada, tendo em vista o texto do art. 9º da LICC atual, a literatura prevê a possibilidade de o mesmo ser aplicado no Brasil de maneira supletiva623. Isso seria possível se a lei de onde for contraída a obrigação aceitar esse princípio. Nádia de Araújo, comentando referido artigo, assevera que, “entretanto, apesar de não estabelecer expressamente a permissão para a autonomia da vontade, a LICC também não a proibira, deixando sua permissão à lei do contrato, ou seja, sua aplicação indireta, sempre que a lei da celebração o permitisse”624. No entanto, para Beat Walter Rechsteiner, o Brasil “deveria adotar diretamente a autonomia da vontade das partes na sua legislação interna, tendo em vista a ampla aceitação do princípio no comércio internacional”625. Hee Moon Jo, por sua vez, ainda ressalta que é prática comum a inclusão da cláusula de lei aplicável escolhida expressamente pelas partes nos contratos internacionais, o que demonstraria a grande discrepância entre a lei e a realidade626.

Em concreto, o princípio da autonomia privada, na contratação interna ou internacional, pressupõe e implica a concorrência de determinados fatores: liberdade de eleição da parte contratante; liberdade de negociação e elaboração do contrato; e liberdade de conclusão efetiva dele627. No direito brasileiro, pode-se afirmar que as partes possuem liberdade limitada para contratar e para determinar a lei aplicável628.

Entretanto, aos poucos, vai-se sentindo uma modificação, ainda que tímida, com relação à matéria. Isso pode ser percebido com a promulgação da Lei de Arbitragem

623 Irineu Strenger (2003, p. 660) afirma que “o art. 9 não exclui a aplicação da autonomia da vontade se ela for

admitida pela lei do país onde se constituir a obrigação. Manda a Lei de Introdução aplicar a lei do lugar do contrato. Não quer isso dizer que a obrigação se qualifica e se rege pelas leis locais internas, o que seria admitir o princípio da territorialidade”. No mesmo sentido, João Grandino Rodas (2002, p. 51), “com relação ao vigente art. 9 da Lei de Introdução, após estremar os conceitos de ordem pública e de autonomia da vontade, pergunta-se primeiramente se a lei em vigor admite a autonomia da vontade, quando for permitida pela lei do lugar da constituição da obrigação. E, em segundo lugar, se há tal permissão, quando o conflito for regido pela própria lei brasileira. Conclui por aceitar, com base na lógica e na boa doutrina, a autonomia da vontade, quando não estiver em jogo uma lei imperativa. Sendo tal critério também válido quando for brasileira a própria lei do contrato”.

624 ARAÚJO, 2004b, p. 328. 625 RECHSTEINER, 2003, p. 142. 626 JO, 2001, p. 456.

627 Apud ALVAREZ GONZÁLEZ, 1992, p. 22.

628 Só será considerado esse ponto de vista, de liberdade limitada para escolha de lei aplicável, se for

considerada a corrente que autoriza a adoção da autonomia privada às regras supletivas. De outra forma, não sendo aceita a teoria da regra supletiva, pode-se afirmar que as partes não possuem liberdade contratual para eleger a lei aplicável ao seu contrato. Neste sentido são as idéias de Nadia de Araújo (2002, p. 199), “a liberdade das partes de escolher o foro, que faz parte da liberdade contratual, não se confunde com a liberdade de escolher a lei aplicável, sendo a primeira permitida no Brasil e a segunda não”.

brasileira, que é analisada no terceiro capítulo e no texto do Projeto de Lei de alteração da LICC629.