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2.4 A Autonomia das Partes nos Âmbitos Interno e Internacional

2.4.1 Liberdade de contratar e liberdade contratual

O princípio da autonomia privada, como se viu anteriormente, está constantemente ligado à noção de liberdade. Atualmente, pode-se afirmar que duas são as formas de liberdades encontradas na autonomia das partes em matéria de contratos: a liberdade de contratar540 e a liberdade contratual.

Pode-se entender por liberdade de contratar a faculdade que as partes possuem de realizar ou não determinado contrato541. É a liberdade que as partes possuem dentro de um dado ordenamento jurídico para configurar as suas relações contratuais542. Na liberdade de contratar estão presentes as faculdades de celebrar um contrato, de recusar-se a fazê-lo543, de eleger um co-contratante, de determinar um objeto, etc.544. Esse tipo de liberdade é uma manifestação do poder que, no ordenamento jurídico, a pessoa possui para exercitar suas faculdades e seu comportamento quanto a determinadas regras de conduta em sua relação com os demais. O contrato é o paradigma desse poder de vinculação do próprio comportamento da pessoa na ordem jurídica.

Por outro lado, a liberdade contratual corresponde à possibilidade de estabelecer o conteúdo do contrato545. É a faculdade que essas mesmas partes têm para determinar a ordem

539 ALVAREZ GONZÁLEZ, Santiago. Condiciones generales en la contratación internacional. Madrid: La

Ley, 1992, p. 22.

540 Werner Flume (1998, p. 35) especifica que os termos autonomia privada e liberdade contratual

seguidamente são tratados como sinônimos, devido ao fato de que contrato é a principal forma de manifestação da autonomia privada.

541 NORONHA, 1994, p. 117. 542 NORONHA, 1994, p. 117.

543 Para Carbonnier (apud ALTERINI; CABANA, 1989, p. 40), há uma liberdade de não querer e essa

liberdade desaparece quando o contrato é imposto.

544 ALTERINI; CABANA, 1989, p. 36; NORONHA, 1994, p. 42; REZZÓNICO, 1999, p. 210. 545 NORONHA, 1994, p. 117.

jurídica aplicável como ordenamento marco de suas relações546. Como ressalta Dário Moura Vicente,

A liberdade contratual pressupõe, pois, uma lei estadual que lhe sirva de fundamento. Por conseguinte, a autonomia dos particulares exerce-se sempre dentro dos limites postos pelas normas, maxime de direito imperativo, da lex contractus, apenas sendo lícito às partes derrogar as respectivas normas supletivas. Esta consideração releva, em nossa opinião, tanto para as situações jurídicas que se encontrem conectadas com um único ordenamento jurídico (situações jurídicas internas), como para as que apresentem conexões com vários (situações jurídicas internacionais). Estas últimas apenas se distinguem das primeiras por nelas as partes gozarem do poder de escolher a lei que as há-de reger; de modo algum lhes assiste em tais situações uma liberdade de estipulação do conteúdo dos contratos mais ampla do que a que lhes é reconhecida nas situações puramente internas. Se no tráfico jurídico interno não se questiona o primado da lei sobre a vontade, não se vê por que razão esta se haveria de sobrepor àquela no plano internacional547.

Assim, percebe-se que a liberdade de contratar faz referência à capacidade que possuem as partes para especificar os exatos termos do contrato (conteúdo, cláusulas, etc). A liberdade contratual, por sua vez, refere-se à capacidade das partes para eleger o direito aplicável a um contrato, ou seja, para escolherem um ordenamento jurídico para determinar as normativas que regularão a relação contratual, funcionando como um verdadeiro elemento de conexão548. Beat Walter Rechsteiner, explicando esses casos em que autonomia privada é considerada como elemento de conexão, expõe que,

À medida que um Estado admite a autonomia da vontade das partes como elemento de conexão, é aplicável a lei designada pelas próprias partes, levando em consideração a sua vontade subjetiva, e não a vontade objetiva do legislador. Este determina, subsidiariamente, o direito aplicável na ausência de escolha do direito aplicável pelas partes.

A autonomia da vontade das partes no direito internacional privado distingue-se, fundamentalmente, da autonomia que o direito substantivo ou material interno de um Estado lhes concede. A primeira, inclusive, tolera nos seus limites, inclusive, a derrogação de normas cogentes da última (direito substantivo ou material), desde que a relação jurídica tenha uma conexão internacional549.

546 ALVAREZ GONZÁLEZ, 1992, p. 21. 547 VICENTE, 1990, p. 191-192.

548 CARRASCO GONZALEZ, 1992, p. 72. No mesmo sentido, Hee Moon Jo (Moderno direito internacional privado. São Paulo: LTr, 2001, p. 448-449) contempla que a autonomia da vontade das partes no DIPr,

significa a aceitação livre da autonomia das partes como elemento de conexão sobre a constituição e o efeito de atos jurídicos obrigacionais, ou seja, as próprias partes podem escolher, explícita ou implicitamente, o direito aplicável sobre a constituição e os efeitos do contrato no âmbito do direito obrigacional.

549 RECHSTEINER, Beat Walter. Direito internacional privado: teoria e prática. 6. ed. rev. e atual. São

Dessa forma, pode-se afirmar que, quando permitida pelo sistema jurídico, a liberdade contratual geralmente está presente nos contratos de caráter internacional, pois existem fortes restrições para a eleição de lei aplicável nos de caráter interno. Por outro lado, a liberdade de contratar tanto está presente nos contratos internos quanto nos internacionais, pois, como explica Carlos Esplugues Mota, quem possui liberdade contratual possui liberdade de contratar, já que quem tem capacidade para vincular um contrato a um ordenamento possui, posteriormente, plena capacidade, dentro dos limites impostos por esse ordenamento, de fixar as cláusulas dele550.

Como se observou anteriormente, a liberdade das partes tem sofrido limites, especialmente os impostos pelas garantias sociais. Esses limites têm atingido mais a liberdade contratual do que a liberdade de contratar, de tal forma que Fernando Noronha observa que a liberdade de contratar tem sido mantida, em termos gerais, enquanto a liberdade contratual tem sofrido amplas restrições551.

A liberdade contratual que se postula como princípio da ordem jurídica desenvolve-se no âmbito de limites definidos por exigências sociais intrínsecas à condição ôntica e moral da pessoa. Essa afirmação do princípio de liberdade contratual implica o reconhecimento da existência de uma ordem essencial de relações entre indivíduo e sociedade552. Essa ordem essencial também influencia a concepção de desenvolvimento como liberdade, como visto anteriormente. O desenvolvimento como liberdade percebe os indivíduos como parte de um corpo social e vê a liberdade não só como expressão dos desejos individuais, mas também com uma essencia igualitária, ou seja a relação entre o indivíduo e sociedade, manifesta pela eliminação ou diminuição das liberdades e pelo exercício da condição de agente.