• Nenhum resultado encontrado

2. O Enunciado Narrativo: Dimensões de Análise

2.2. Um Modelo de Análise para os Enunciados Narrativos

2.2.2. Dimensão Discursivo-pragmática do Enunciado Narrativo

2.2.2.1. A Avaliação Laboviana

como reconhecem, um legado da divisão laboviana entre funções narrativas e funções avaliativas das macroproposições que compõem o EN. Assim, antes de avançar, crê-se necessário fazer uma breve incursão sobre o conceito de Avaliação de Labov e considerar algumas das críticas e revisões a que foi sujeito.

2.2.2.1. A Avaliação Laboviana

De acordo com Labov (1972), a Avaliação corresponde a tudo aquilo que não faz parte da sequência „estrutural‟ de frases narrativas (frases unidas por elos temporais que asseguram a dimensão sequencial e referencial do EN), mas que lhe dá sentido, isto é, que lhe atribui um valor ilocutório. Para a situar no EN vai acrescentar aos módulos abordados na secção anterior (2.2.1.), módulos que considera explicitamente avaliativos e que estão vocacionados para interferir no processo de recepção do EN junto do(s) interlocutor(es) quer para despertar o seu interesse e atenção, – Resumo –, quer para promover a sua compreensão do sentido final, – Avaliação Final –, ou simplesmente para facilitar a sua tomada de vez, sinalizando o encerramento do EN e o retorno à situação de enunciação anterior à sua inserção, – Coda –.

No quadro de uma concepção enunciativa das unidades linguísticas, como foi referido anteriormente, Labov vai, ainda, considerar a organização do conjunto de módulos que compõem o EN em função de um diálogo implícito (ou explícito) entre narrador e ouvinte, tendo cada um deles, à excepção do último, que “responder” eficazmente a uma potencial pergunta do interlocutor, como é representado no quadro seguinte:

Quadro 15

Diálogo Narrador / Narratário segundo Labov

RESUMO Qual é o assunto? ORIENTAÇÃO O quê? Quem? Onde? Quando? ACÇÃO O que é que aconteceu? AVALIAÇÃO FINAL E depois ? O que é isso interessa? RESOLUÇÃO Como é que acabou? Qual foi o

desfecho?

CODA ou SAÍDA

Módulos explicitamente avaliativos

61

Repare-se que Resumo, Avaliação Final e Coda surgem como módulos explicitamente avaliativos. No caso da Orientação, o que parece estar em causa é a manutenção da divisão de base, proposta pelo autor, entre frases narrativas e frases livres (não narrativas). Composta por frases do segundo tipo, esta macroproposição vai ter que cair sob a alçada da Avaliação13. Por outro lado, em termos interaccionais, a sua vinculação aos módulos avaliativos justifica-se com a pressuposição de que a sua ocorrência, no âmbito de uma conversação, conduz a uma aceitação tácita da realização do EN14.

Caracterizando, então, o papel da Avaliação no modelo laboviano, ela surge, em primeiro lugar, como módulo central do EN, porque encarregue de dar resposta à questão da legitimidade e relevância da sua existência, correspondendo, neste caso, àquilo que as gramáticas tradicionais da narrativa denominam a moral da história.

Em segundo lugar, ela aparece ligada às macroproposições que „gerem‟ a concretização de um Contrato Comunicacional Narrativo entre o narrador e o(s) seu(s) alocutário(s), contrato esse que vai alterar, durante o tempo de realização do EN, as coordenadas e papéis enunciativos dos interlocutores. Esse contrato prevê e permite a passagem de uma situação de enunciação inicial (Sit0) para uma nova (Sit1) e o retorno à situação anterior (Sit0) com o final do EN. Enquanto no Resumo o narrador promove a adesão dos alocutários à realização do EN, na Coda, como se verá posteriormente, procura obter a ratificação para o acto comunicativo realizado, mesmo que essa ratificação corresponda, simplesmente, a um silêncio cúmplice.

Por último, a Avaliação surge como uma função transversal ao texto narrativo, englobando não só todos os módulos avaliativos referidos como todas as estratégias avaliativas com que o narrador constrói o sentido que pretende dar aos acontecimentos que narra, revelando ao(s) interlocutor(es) a razão de ser do EN, justificando a sua ocorrência e assegurando o seu êxito comunicacional.

Na caracterização desta função avaliativa disseminada pelo EN, Labov (1972) procede a uma distinção entre Avaliações Externas, que correspondem a Apartes

13

Em relação a esta questão, Adam (1991 [1984], 1985) considera artificial e contraditória a omissão da função sequencial da Orientação, uma vez que ela inclui uma referência temporal fundamental para marcar o início do EN. Segundo este autor, a Orientação é uma macroproposição narrativa que funciona como base temática a partir da qual a sequência de acontecimentos se desenvolve.

14

Segundo Labov & Fanshel (1977: 104-110), se um locutor se referir a um acontecimento anterior ao momento da interacção e se essa referência não puder ser interpretada como um acto de fala completo, então o seu interlocutor deve entender esta referência como o início de uma narrativa.

62

avaliativos sobre acontecimentos narrados ou sobre o sentido global do EN, e Avaliações Internas, encaixadas no próprio texto narrativo, e que são realizadas quer através da „fala‟ dos personagens ou do narrador intradiegético quer através da própria construção da sequência narrativa quer, a um nível local, através da complexificação do padrão sintáctico básico das „frases narrativas‟ com a inclusão de material linguístico avaliativo como intensificadores, comparativos, repetições, expressões fixas, ou frases explicativas15.

Dada a centralidade da questão da Avaliação em Labov, são incontornáveis as críticas e propostas de revisão surgidas em quase todos os autores que desenvolveram trabalho nesta área. As principais prendem-se com a artificialidade da redução das relações semânticas no texto narrativo a relações referenciais de temporalidade. Contesta-se o conceito de narrativa conversacional enquanto forma de recapitulação de uma experiência passada que combina uma sequência de frases com uma sequência de acontecimentos (Labov, 1972: 350-360) e a, aparente, possibilidade de a poder „isolar‟ dos segmentos avaliativos que, no entanto, lhe dão sentido. Esta fronteira artificial entre referência e avaliação, tem sido, desde muito cedo, posta em causa. No início da década de 80, Quasthoff (1980) vai defender a necessidade de reequacionar a relação representação-avaliação a partir de critérios de cariz psicocognitivo, propondo que a localização de enunciados avaliativos passe pela identificação de um posicionamento afectivo do locutor em relação ao(s) objecto(s) referido(s) no seu discurso. Este posicionamento estará inscrito na própria construção do texto, nas formas adoptadas, nas opções lexicais realizadas ou mesmo nas implicaturas e inferências que transporta. Vinte anos depois, Smith (2004 [2003]) refere-se ao mesmo fenómeno apelidando-o de „subjectividade‟, e centra a sua atenção na identificação das diferentes “vozes”, dos diferentes “pontos de vista”, presentes no texto narrativo. Segundo esta autora, as categorias linguísticas envolvidas na expressão de „subjectividade‟ seriam: expressões de comunicação / discurso relatado; expressões de estados mentais; “evidencialidade” (comprometimento com a verdade do enunciado); percepção; perspectiva (posição perceptual ou conceptual a partir da qual os acontecimentos são apresentados); escolha lexical.

15

Em Morais (2002a: 21-34) encontra-se um desenvolvimento mais exaustivo de todos os aspectos referidos nesta secção, sendo possível encontrar exemplos de todos os procedimentos enunciados retirados do corpus analisado.

63

Mas também em relação à dimensão interaccional da Avaliação surgem reparos a considerar: Assim, Bres (1994) contesta a unidireccionalidade do conceito de Avaliação laboviano, perspectivado como uma forma de motivar, condicionar e „regular‟ a interpretação do EN pelo interlocutor, isto é, como forma de agir sobre o Outro, e defende a necessidade de considerar a presença desse Outro (os seus interesses, questões, opiniões) no discurso narrativo do Eu. Se, para Labov, a função principal da Avaliação é evitar, a todo o custo, que o interlocutor, ao retomar a palavra, pergunte – E depois? O que é que isso me interessa? – Bres acrescenta-lhe uma segunda função: evitar que o interlocutor inicie o seu turno de retoma com expressões de refutação da veracidade do narrado do tipo: Que disparate! Estás a gozar! – Desta forma, a Avaliação é, também, espaço de solicitação e antecipação da resposta do interlocutor (Bres, 1994: 92), um espaço de adaptação do EN ao público a que se destina.

Numa direcção parcialmente idêntica, e a partir de uma reflexão sobre a noção de “frame”, Tannen (1993 [1979]) refere a necessidade de considerar na construção da Avaliação as expectativas do narrador face aos acontecimentos que pretende narrar e as dos seus destinatários em relação ao narrado.16. Essas expectativas, vinculadas a representações internas de acontecimentos que resultam de experiências anteriores, são socioculturalmente condicionadas. O seu eco faz-se sentir num conjunto aberto de estratégias avaliativas do qual a autora destaca as seguintes: omissões; repetição; falsos arranques, anacronias; „hedges’ (adverbiais circunscritores); conectores contrastivos; modais; inexactidões; generalizações; inferências; linguagem avaliativa; juízos de valor; afirmações incorrectas; adição de infirmação17. Curiosamente, esta listagem ecoa, em boa parte, aquilo que em outros trabalhos refere como “estratégias de envolvimento” (Tannen, 2000 [1989]) interpessoal, conceito operatório que será retomado na presente investigação a propósito da Avaliação (ver secção 2.2.2.3.)

Como parece evidente, as principais críticas ao modelo laboviano estão relacionadas com aspectos configuracionais do EN. No que se refere à sua dimensão interaccional, há uma aceitação geral, quer da identificação, quer da caracterização das macroproposições responsáveis pela gestão da inserção do EN no seio de uma unidade

16

“Since the point of a narrative is directly related to the expectations of people and culture in which is told , it is not surprising that Labov‟s evaluative elements are closely related to the notion of evidence of expectations”. Tannen (1993 [1979]: 22)

17

Há que referir que esta lista não-fechada de estratégias resulta da análise de um reconto de uma sequência fílmica, pelo que existem condições de observação de dados que não estão disponíveis para os estudos de narrativas conversacionais espontâneas, como, por exemplo, a adição de informação.

64

conversacional superior. Iniciar-se-á, então, a discussão em torno da dimensão discursivo-pragmática do EN a partir desta última.

Documentos relacionados