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2. O Enunciado Narrativo: Dimensões de Análise

2.2. Um Modelo de Análise para os Enunciados Narrativos

2.2.3. Dimensão Semântico-cognitiva do Enunciado Narrativo

2.2.3.1. Narrativa e Memória

Somos, porque temos memória de nós, porque ao longo da vida vamos criando um registo de experiências e saberes que nos permite, a qualquer momento, recriar o nosso passado e, com as aprendizagens e competências que fomos acumulando, interagir socioculturalmente. A perda da memória conduz à perda do sentimento de si, da nossa história de vida e da capacidade de interagir de uma forma duradoura com os outros. O que é, de alguma forma, assustador, dada a sua fragilidade e susceptibilidade a distorções que os estudos em psicologia cognitiva têm vindo a pôr a descoberto.

Foi Bartlett que, em primeiro lugar, questionou a exactidão do processo de evocação a partir da memória, considerando-o, sobretudo, um acto de reconstrução ou construção imaginativa de reacções e experiências passadas. Como referem Skire & Kandel (2002 [1999]: 82) se a evocação requer a conjugação de diferentes tipos de informação que estão distribuídos ao longo de vários lugares no córtex e a sua remontagem num todo coerente, ao registo de um evento não corresponderá então uma representação estável e unitária, independente do processo de evocação. Na realidade, a activação das diferentes partes que constituem a memória de uma experiência vai depender das pistas disponibilizadas pelo contexto externo em que ocorre a evocação, e pela configuração global de activação de traços mnésicos que completa, internamente, o contexto da evocação. De tal forma que, sendo as pistas fracas ou ambíguas, aquilo que é reactivado pode diferir do que foi armazenado, ou porque houve uma intromissão no conteúdo da memória armazenada de associações e pensamentos provocados pela pista, ou porque algumas das informações inicialmente codificadas já não estão disponíveis, tendo que ser „recriadas‟ no próprio processo de evocação.

Em ambos os casos, o indivíduo que relembra reconstrói informações e experiências de forma a fazerem sentido no momento em que são activadas. Mas há ainda outras possibilidades de alterar o conteúdo das memórias, quer através da interferência de informação correlacionada adquirida anterior ou posteriormente quer através de alterações introduzidas durante processos de evocação quer através das formas como é induzido o acto de evocação24. A introdução do „erro‟ é, assim, possível

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em qualquer estádio de processamento de informação: na sua codificação, no seu armazenamento, na sua evocação25.

Parece então legítimo concluir sobre a falibilidade da nossa memória declarativa, de todas as recordações de acontecimentos, factos, palavras, rostos, conhecimentos que podem ser declarados, isto é, evocados na nossa mente sob a forma de uma imagem mental ou proposição abstracta26. No entanto, os estudos sobre a codificação da memória declarativa sublinham, também, o peso da motivação e do interesse pessoal na atenção prestada ao material a armazenar, permitindo desencadear, espontaneamente, uma codificação mais profunda e elaborada dos dados, codificação essa que se repercute na qualidade e quantidade de informação disponível para evocações posteriores. No que se refere à nossa memória episódica (isto é, à codificação, armazenamento e evocação de eventos ou episódios vivenciados num determinado momento e lugar), há ainda que referir que a intensidade emocional de uma experiência pode aumentar a probabilidade e a precisão com que a mesma será evocada.

Do acima descrito, é necessário reter dois aspectos fundamentais para a compreensão do processamento das narrativas existenciais: a Falibilidade (e consequente Criatividade) e a Intencionalidade das evocações que disponibilizam o material que compõe essas narrativas.

O primeiro afasta, de vez, o fantasma da reprodução literal dos acontecimentos. O acto de evocação que constitui a História Cognitiva (Quasthoff, 1980) é um acto criativo de aproximação ao passado que depende, também, do contexto da sua enunciação27. O mesmo acto criativo que, buscando dar um sentido coerente às

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A este respeito, escreve Damásio (1999: 262): “É fácil imaginar que, uma vez que as memórias não são guardadas sob a forma de fac-similes e uma vez que, durante a sua recuperação, têm de atravessar um complexo processo de reconstrução, as memórias de alguns acontecimentos autobiográficos possam não ser inteiramente recuperadas, possam ser reconstruídas de maneiras que não correspondam ao original, ou possam até nunca mais voltar a ver a luz da consciência”.

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Jeannerod (2005: 119) distingue, no entanto, entre a disponibilidade das informações armazenadas na memória semântica e aquelas que fazem parte da memória episódica. Se as primeiras possuem uma elevada estabilidade e podem ser evocadas em contextos diferenciados, as segundas parecem estar codificadas sob a forma de representações complexas entre as quais se estabelecem relações que permitem a sua transição de uma representação para a outra. Assim: “La récupération n‟est pas la réactivation des traces tel qu‟elles ont été encodées; c‟est plutôt une reconstruction qui exploite l‟ensemble du matériel présent dans le stock. De fait, les souvenirs autobiographiques sont le plus souvent constitués d‟un mélange de détails appartenant à des circonstances différentes”.

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Como referem Skire & Kandel (2002 [1999]: 82-83), a evocação, até certo ponto, depende do estado de espírito ou até de todo o contexto no momento de recordar encorajando a evocação de eventos que foram anteriormente codificados num estado de espírito e/ou contexto semelhante. A propósito dos efeitos contextuais na codificação e na evocação ver também Sternberg (2000: 244-246).

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diferentes informações disponíveis que compõem o acontecimento a narrar, permite, não só colmatar as falhas do esquecimento, mas também redefinir continuamente as representações anteriormente existentes, ao ponto de construirmos memórias de eventos que não aconteceram (Jeannerod, 2005).

Um outro aspecto interessante, directamente relacionado com a falibilidade das recordações pessoais, é a fragilidade da retenção de pormenores e detalhes de uma experiência pessoal, por contraposição com o rigor com que o indivíduo pode lembrar o significado geral e os pontos principais da mesma experiência. Destaca-se este aspecto, porque, curiosamente, as Narrativas de Experiência Pessoal que compõem o corpus de trabalho estão cheias de detalhes cénicos e „pretensas‟ reproduções de discurso citado que, muito dificilmente, poderiam ser exactas, mesmo que houvesse uma vontade específica e intencional de os lembrar, associada a uma repetição persistente e contínua da sua narração. Uma aparente explicação para este facto estaria na constatação de Sternberg (2000: 245) de que no processo de recontagem de uma experiência ocorre uma reorganização construtiva das nossas memórias “a tal ponto que a exactidão da nossa evocação realmente diminui, enquanto a vividez percebida da evocação aumenta, com o passar do tempo”28

. De qualquer modo, a experiência assim „construída‟ tem, para o seu narrador, um valor objectivo de verdade.

Quanto à Intencionalidade, esta assenta sobre a capacidade da evocação de construir um tecido coerente a partir dos pedaços de memória disponíveis num determinado contexto de reprodução e sob a sua influência. Nas recordações de eventos importantes para a sua biografia, o indivíduo completa essas lacunas de memórias com dados que preservam e constroem a sua imagem de si, especialmente quando, pela sua narração pública, se expõe a uma avaliação. De seguida, abordar-se-ão os aspectos directamente relacionados com essa contextualização.

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