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CAPÍTULO 2 O contexto escolar

2.3. A biblioteca e a escola: análise das relações

Pode-se fazer tudo pela escola, pelo liceu ou pela universidade; se depois faltar a biblioteca, nada se terá feito.

(Jules Ferry, apud Chartier e Hébrard, 1995, p.110)

Como já foi dito na primeira seção deste capítulo, a leitura literária não se apresenta como um veio central do trabalho do professor em sala de aula. Para a escola, ela é tida como uma atividade à parte, que pode ou não ser incentivada, cabendo para isso a iniciativa do professor, quase sempre o de Língua Portuguesa. Acredito que, em conseqüência mesmo dessa concepção acerca da leitura, o espaço que a biblioteca ocupa dentro da organização escolar nem sempre é confortável. Retomemos a fala da auxiliar de biblioteca: “Mas fica

assim, a biblioteca já é separada da sala dos professores, já é uma coisa distante...”. Nos depoimentos, coletados a partir das entrevistas com os profissionais da biblioteca, ficaram evidentes as tensões presentes nas relações entre a biblioteca e a escola:

A minha visão com relação ao trabalho do professor aqui na escola, é um pouco assim: existe uma separação. Não sei se ela existe só na minha cabeça, mas existe uma separação. Os professores eles fecham a porta mesmo e trabalham em sala de

aula. O professor que mais interage com a biblioteca, são os professores de Português, mesmo assim eu acho muito pouco. Tem aquela idéia de que a biblioteca guarda os dicionários que eu vou usar, é ...a biblioteca tem alguns materiais, tem os livros de literatura, mas eles não exploram a biblioteca.

(Auxiliar de biblioteca)

Nesse trecho da entrevista, é transparente a dificuldade enfrentada pela biblioteca, ao propor trabalhos coletivos de promoção da leitura na escola, envolvendo todos os professores ou a maior parte deles (eles fecham a porta mesmo e trabalham em sala de

aula). Essas atitudes, segundo a percepção desses sujeitos envolvidos, têm dificultado a proposição de atividades diferenciadas que dinamizem a biblioteca escolar. Durante a entrevista foram descritas algumas tentativas frustradas de interação com o professor em sala de aula, que não trouxeram os resultados pretendidos:

Aqui também nós não temos projeto de trabalho que interage com o professor. Porque os trabalhos que a gente já propôs... muitos a gente ficou decepcionado no final.[...]

Ou decepcionado, ou não atingiu o que a gente queria. Por quê ? Porque o professor não quis... um professor aceitou, o outro não...

Mas a gente vê a dificuldade de atuar junto ao professor. (Auxiliar de biblioteca)

Esse conflito vivenciado pela biblioteca quando a sua prática interfere, ou pretende interferir no trabalho do professor, ou seja, quando ele deve assumir a sua face pedagógica, não é um fato pontual, que poderia ser tomado como uma impressão dos sujeitos envolvidos nessa relação. Falas como essa são muito comuns sempre que os agentes das bibliotecas escolares têm oportunidade de se manifestarem, em eventos da área ou afins. Essa dificuldade de estabelecer um trabalho em conjunto entre biblioteca e professores também é colocada pela bibliotecária, que acrescenta a necessidade de um envolvimento no campo pessoal para que a interação no trabalho pedagógico possa acontecer:

Bibliotecária: Ele (o relacionamento entre professores e biblioteca) é baseado muito na, quase que, quase que... (riso) no que você consegue de simpatia com o professor, na amizade, naquele professor que você tem mais afinidade...né, com as idéias que você apresenta, porque fora isso (pausa) assim... (pausa)

Pesquisadora: É difícil?

Bibliotecária: É difícil. É difícil. A não ser que o professor tenha a necessidade específica dele: “Ó, preciso trabalhar esse assunto com os alunos”... Aí a gente busca a informação, mapa e tudo que você pode pra dar suporte e tudo, mas em termos de parceria mesmo... dizer assim: Vamos sentar e pensar um projeto e pensar um projeto de História, Matemática e biblioteca não existe. Essa é a realidade, a gente não tem... muito difícil, muito difícil... Eu acho que vai muito, a necessidade do professor e o suporte da biblioteca. A biblioteca fica muito como suporte. (Bibliotecária)

Nas duas entrevistas, a visão dos professores em relação à biblioteca foi pintada da mesma forma: “Têm aquela idéia de que a biblioteca guarda os dicionários que eu vou usar, é... a biblioteca tem alguns materiais, tem os livros de literatura, mas eles não exploram a

biblioteca” e “Eu acho que vai muito da necessidade do professor e o suporte da biblioteca. A biblioteca fica muito como suporte.” A valorização da biblioteca como espaço imprescindível de formação de leitores e, portanto, com um papel central na educação, é decorrente do reconhecimento do lugar da leitura na escola e, por isso, o seu uso nesse contexto escolar, tanto por professores como por alunos, irá variar conforme a importância que recaia sobre a leitura como parte do processo de aprendizagem.

O texto que foi tomado como epígrafe para esta seção do trabalho foi defendido como lema da República por Jules Ferry, quando ministro da Instrução Pública (1879-1881) na França. Ele resume o papel que Ferry reivindicava para a leitura na escola: o objetivo

central de todo o aprendizado escolar. Anne Marie Chartier e Jean Hébrard analisam documentos institucionais que pretendem orientar as práticas escolares, procurando compreender o espaço reservado à leitura na escola, as formas de ler que estão presentes nesse ambiente em diversas épocas, através dos exercícios voltados para o ensino da leitura, e quais são os objetivos dessas leituras - instruir, distrair, informar, etc.. Os autores observam que, apesar de um grande período de permanência da “supremacia” da leitura como base do trabalho escolar, algumas mudanças foram ocorrendo. Essas transformações são discutidas no capítulo com o título sugestivo de Crise da escola, crises da leitura.

Observando-se a permanência dos discursos de valorização da literatura na dinâmica escolar, presentes ainda nas instruções de 1938, pode-se perceber que o projeto republicano de leitura proposto por Jules Ferry fora realizado: “Em cinqüenta anos, a leitura escolar da literatura francesa se tornou a base essencial dos estudos e da formação escolar, no liceu ou no colégio” (CHARTIER e HÉBRARD, 1995, p. 306). Durante várias décadas esse lugar da leitura não fora sequer questionado, a situação começa a se modificar apenas no início da década de 1960, período que marcou a entrada de alunos com resultados insatisfatórios na sexta série, principalmente em relação ao aprendizado da leitura, etapa de articulação, na escola francesa, entre o curso elementar e o secundário. Esse aumento do insucesso escolar gera um período de crise na escola e, em resposta às severas críticas, em 1972, são publicadas novas diretrizes para o ensino de francês. Nesse documento percebem-se algumas modificações em relação às atividades de leitura escolar. Alguns exercícios tradicionais, como a leitura corrente em voz alta, que antes era tomada quase como um pré- requisito para a compreensão do texto, passa a ser considerada de difícil aprendizagem e são abandonados em detrimento de outros, a leitura silenciosa, sob o argumento de que essa forma de leitura está mais presente no cotidiano das pessoas. Assim, em 1977, a leitura literária deixou de ocupar o espaço que outrora lhe cabia na escola francesa, cujos objetivos do ensino passaram a se aproximar de aquisições de saberes mais pragmáticos, conforme concluem os autores:

Assim o memento de 1964 é um dos últimos textos em que se pode perceber a continuidade com as intenções de Jules Simon e as Instruções de Jules Ferry que fundamentavam a coerência do ensino das letras no liceu em uma leitura intensa,

acompanhada, trabalhada, devota “das mais belas obras do nosso patrimônio literário.” O novo projeto quer alunos que dominem a expressão e a comunicação (o antigo preconizava, pelo contato com grandes escritores, aprimorar um domínio já adquirido espontaneamente). Desde então, o ensino do francês oscila, não porque

tenha rejeitado a leitura literária (ela é mantida, embora em escala por força limitada), mas porque recusa tê-la como pedra angular da formação.

(CHARTIER e HÉBRARD, 1995, p.317, grifo meu)

A mudança do público impôs, gradativamente, uma mudança dos exercícios de leitura e por fim dos próprios objetivos do ensino. Conforme os autores, o projeto antigo pretendia

aprimorar um domínio já adquirido espontaneamente, ou seja, o ensino secundário recebia predominantemente alunos que detinham uma certa cultura, das elites, e por isso, à escola cabia apenas aprimorar esse domínio. Nesse novo quadro social, entre os objetivos do ensino do Francês estão: “saber telefonar, redigir um telegrama, uma carta oficial ou particular, um relatório; usar uma obra de referência, classificar um documento, organizar um trabalho individual ou coletivo, montar uma documentação [...]” e a “iniciação a uma cultura própria do nosso tempo”, através da leitura de textos não-literários.

Quando descrevemos, no início desse capítulo, a escola em que desenvolvemos esta pesquisa, tocamos na questão dos objetivos pedagógicos, concernentes à formação de leitores. Ao perguntarmos se a formação de leitores era uma preocupação da escola, obtivemos a seguinte resposta da Auxiliar de biblioteca:

Eu creio que é. Mas é uma coisa muito estranha. Aqui... não ... eu creio que nem tanto a formação de leitores... creio que eles querem alunos alfabetizados, alunos

que entendam o que estão escrevendo, escrevam bem...só que não focalizam a leitura... em si.

Em outras palavras, os professores querem formar leitores eficientes, mas não se preocupam necessariamente com a leitura literária. Os objetivos propostos ao ensino do Português nas escolas do ensino fundamental de 5ª à 8ª série, ou do 3º ciclo de Formação Humana, se aproximam bastante dos objetivos apresentados acima para o ensino do Francês, nos finais da década de 70. Os Parâmetros Curriculares Nacionais prevêem uma série de atividades que pretendem fazer com que o aluno passe a dominar o uso de diversos gêneros textuais, em práticas de linguagem escrita e oral, nas diversas situações comunicativas, que lhe permitam “ampliar suas possibilidades de participação social no exercício da cidadania” (p.32) Dessa forma, a literatura passa a ser apenas mais um gênero textual a ser trabalhado na escola, quando há tempo, vontade e condições favoráveis para isso.

Um exemplo desse tipo de incentivo à leitura que interliga a biblioteca e o professor (de Português) é o agendamento de visitas à biblioteca para se levar toda a turma para

escolher livros ou fazer suas inscrições (a carteirinha da biblioteca). Entretanto, atividades como essa ficam reservadas apenas às turmas de melhor comportamento e, no atropelo da rotina escolar, raramente acontecem. Ocorre então, um descompasso entre os objetivos da biblioteca, primordialmente a difusão da leitura, especialmente a literária, e os objetivos do trabalho docente, revelado sob a forma de tensão entre esses dois pólos de formação. A biblioteca, devido ao contato limitado com os alunos (tanto no espaço, já que é preciso contar com a iniciativa do aluno de se dirigir voluntariamente à biblioteca, como também no tempo, uma vez que não há um horário reservado para isso: os alunos procuram a biblioteca no final do turno, apressadamente, ou quando há horários vagos, na ausência de professores). Ela precisa contar com a mediação do professor para que os seus projetos de incentivo à leitura sejam realizados de maneira eficiente e, muitas vezes, ao que parece, esse apoio não acontece, talvez devido à reduzida importância que é dada à leitura, principalmente literária, como elemento de formação.

No próximo capítulo examinaremos mais de perto as possibilidades de leitura nessa escola, através da apresentação de alguns perfis de leitores, e voltaremos a discutir o papel da escola e da biblioteca, ou seja, das influências escolares na configuração das disposições para a leitura desses alunos.

Capítulo 3