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CAPÍTULO 2 O contexto escolar

2.2. A biblioteca

2.2.4.1. O caso brasileiro

Temos nos referido ao caminho percorrido pela leitura no último século, através da análise dos discursos sobre o tema, na literatura já mencionada, que trata do contexto francês, pois acreditamos que, em alguns pontos relativos à biblioteca, as realidades da França e do Brasil se mostram semelhantes, com as devidas ressalvas.

Uma dessas convergências está nas imagens do profissional do livro, aquela negada pelo discurso e outra a ser construída, a partir do próprio desenvolvimento do ofício de bibliotecário. Isso podemos perceber através da leitura de uma conferência proferida por Rubens Borba de Moraes, na Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, em 1943. Moraes, então, diretor do Departamento de Cultura da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, discute o problema das bibliotecas brasileiras, apresentando a situação na época:

Para falar com franqueza, as nossas bibliotecas não são bem bibliotecas. São ainda, em geral, depósitos de livros, mais ou menos organizados, bem ou mal conservados. Não têm a função ativa que deviam ter. Os livros estão trancados; pouquíssimas bibliotecas brasileiras permitem o livre acesso às estantes. Os catálogos, quando existem, são todos feitos por métodos empíricos antiquados. (MORAES, 1943, p. 53)

Sendo apresentado como o maior especialista brasileiro em organização e administração de bibliotecas no prefácio escrito por Gilberto Freyre, ele afirma: “Até há bem pouco tempo não havia no Brasil a profissão de bibliotecário. Em geral, esses cargos eram atribuídos a pessoas que gostavam de ler, a literatos, a jornalistas, a poetas.” (p.40)

Donde conclui que essa não-formação técnica determinava o perfil da maioria das bibliotecas:

Essa gente não se preocupava com os problemas técnicos, que colocavam sempre em segundo plano. Os mais ativos procuravam, entretanto, enriquecer as suas instituições com obras de sua predileção. Sendo poeta, comprava livros de poesia. Sendo historiador, obras históricas. E assim por diante. (Idem, p.40)

Moraes aponta a necessidade de preparo técnico do profissional, para que este fosse apto a organizar um plano de ação que concentrasse esforços e recursos para o desenvolvimento das bibliotecas públicas no Brasil.

Entretanto, mesmo no seu discurso, bastante remoto no tempo, já se percebe de forma incipiente, a concepção das tarefas do bibliotecário, que será o princípio norteador do seu trabalho com as informações, que deverão estar disponíveis de modo acessível aos usuários: “Muitos bibliotecários esquecem que a principal cousa, na biblioteca, para o leitor, é o livro e não a técnica que se empregou para catalogá-lo e classificá-lo.” (MORAES, p.44) Em outras palavras, semelhante ao modo como se pensava do outro lado do Atlântico, a biblioteca só faz sentido em função do uso. O ideal de “bibliotecário moderno” apresentado então “é um misto de técnico e de intelectual.” (idem, p.43)

Da mesma forma que os franceses, que se empolgaram com o modelo americano de bibliotecas, as bibliotecas-livres, o exemplo brasileiro não é muito diferente, embora se distancie se considerarmos as medidas implementadas para a solução dos problemas vivenciados por nós, dada a permanência de um déficit em relação à distribuição das bibliotecas ainda nos dias atuais. A comparação com os Estados Unidos é explícita, quando na mesma conferência, Moraes propõem que sigamos “a lição americana”, que adotava uma orientação menos burocrática de gerenciamento de recursos que nos países europeus e que, segundo ele, era uma das chaves para a solução da nunca suficiente disponibilidade de recursos financeiros. Segue-se a descrição que ele faz das bibliotecas americanas, que considerava como “as mais aparelhadas do mundo”:

Graças a esse método (a escolha dos técnicos por suas qualidades pessoais), ninguém espera por um livro e ninguém é recebido com maus modos.49 [...]

Existe nas bibliotecas americanas uma atmosfera de cordialidade, de amabilidade, de cooperação para com o leitor, que não se encontra igual em outro país. Pede-se uma informação sem medo de molestar um funcionário com muitos e muitos anos de rotina. O consulente é sempre atendido com um sorriso amável, por uma pessoa

49 Note-se que, através da caracterização do bibliotecário americano pelas atitudes que ele não apresenta,

cuja obrigação é servir ao público e que foi selecionada, entre muitas, para esse serviço.” (Idem, p.51)

Pelo exposto nesse trecho, podemos concluir que, além da precariedade da formação técnica dos bibliotecários brasileiros, apontada juntamente com a burocracia governamental, como fator de impedimento da continuidade dos programas de gestão das bibliotecas públicas existentes, seria uma das principais causas do abandono das bibliotecas nacionais o modo como o usuário era recebido nesses espaços.

Durante muito tempo ainda, entre nós, a posição do bibliotecário, criticada desde meados do século passado perdurou, assim como a imagem das bibliotecas brasileiras como depósito de livros (principalmente didáticos). Vejamos esta citação de um trecho de outra conferência, dessa vez de Ezequiel Theodoro da Silva, apresentada no 3º Ciclo de Estudos da Comissão Brasileira de Bibliotecas Públicas e Escolares, no Rio de Janeiro, em 28 de agosto de 1989:

O problema da biblioteconomia brasileira está na mentalidade retrógrada de um grande número de bibliotecários, que se apresentam como pequenas autoridades: donas dos espaços públicos; reprodutoras cegas de normas esclerosadas. Escravas das fichas de catalogação e de sistemas fechados de consulta; seguidoras servis dos códigos (e não dos caminhos concretos da vida); [...] cópias carbono dos totens autoritários e tocadoras da mesmice, cujo único desafio na vida é saber quando vai sair a aposentadoria para que continuem a fazer nada do nada que sempre fizeram.” (SILVA, 1991, p.99)

Através dessas críticas direcionadas aos antigos profissionais das bibliotecas, percebemos a construção de um novo perfil para o bibliotecário, cujas bases eram trabalhadas na própria academia e que propunha a adoção de atitudes mais receptivas para com os usuários, ao lado do desejo de que houvesse na prática diária de seu trabalho as marcas de um dinamismo próprio de um espírito empreendedor.

2.2.4.2.Ações e atitudes dos bibliotecários: entre a censura pedagógica e a escolha