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A busca feminina como conformidade à ordem de gênero

4.4 UMA ABORDAGEM A PARTIR DO MITO

4.4.1 A busca feminina como conformidade à ordem de gênero

A busca feminina apresentada por Douglass (1989) refere-se a um modelo no qual padrões convencionais de gênero são acionados, isto é, em que se reproduz a feminilidade enfatizada, usando a terminologia de Connell (1987). O que a difere da busca tradicional do herói masculino é que se contorce o foco da narrativa para que seja contada pela perspectiva da mulher. Dessa forma, a busca feminina muda o tema da busca, mas não a estrutura, pois reproduz a estrutura narrativa apresentada em Campbell (1997), em que a presença da mulher está prevista, mas em que o papel desempenhado por ela na história não é o mesmo que o do homem:

A mulher representa, na linguagem pictórica da mitologia, a totalidade do que pode ser conhecido. O herói é aquele que aprende. À medida que ele progride, na lenta iniciação que é a vida, a forma da deusa passa, aos seus olhos, por uma série de transfigurações: ela jamais pode ser maior que ele, embora sempre seja capaz de prometer mais do que ele já é capaz de compreender. Ela o atrai e guia e lhe pede que rompa os grilhões que o prendem. E se ele puder alcançar-lhe a importância, os dois, o sujeito do conhecimento e o seu objeto, serão libertados de todas as limitações. A mulher é o guia para o sublime auge da aventura sensual. Vista por olhos inferiores, é reduzida a condições inferiores; pelo olho mau da ignorância, é condenada à banalidade e à feiúra. Mas é redimida pelos olhos da compreensão. O herói que puder considerá-la tal como ela é, sem comoção indevida, mas com a gentileza e a segurança que ela requer, traz em si o potencial do rei, do deus encarnado, do seu mundo criado (CAMPBELL, 1997, p. 65-66).

Isto é, embora mude o foco tradicional da busca do homem para a da mulher, a busca feminina mantém a mulher no papel designado a ela. Delinear qual seria esse papel ao qual o mito faz analogia, entretanto, não é tarefa simples. Quando buscamos delinear feminilidades enfatizadas e masculinidades hegemônicas (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013), o que fazemos é buscar padrões dominantes, tendo em mente que estes são construções que variam influenciadas por fatores como tempo e lugar.

Historicamente, vemos a figura da mulher associada ao espaço privado. Por sua capacidade reprodutiva, é delegado a elas os cuidados com a família e com a casa, sendo responsabilizada pelo trabalho doméstico (GARCIA, 2011; CONNELL; PEARSE, 2015). Como um objeto, passava da autoridade do pai para a do marido, tendo sido seu direito de trabalhar ou de possuir bens e propriedades consideravelmente limitado até a segunda metade do século XX (GARCIA, 2011).

Como apresentam também Connell e Pearse (2015, p. 91),

Muitos escritores que pensam sobre o gênero assumem que diferenças reprodutivas se refletem diretamente em diversos outros tipos de diferenças: força física e velocidade (homens são mais fortes e mais velozes), habilidades físicas (homens têm habilidades mecânicas e mulheres são boas em tarefas trabalhosas), desejo sexual

(homens têm mais libido), interesses recreativos (homens gostam de esportes e mulheres de fofoca), caráter (homens são agressivos e mulheres são cuidadoras), intelecto (homens são racionais e mulheres têm mais intuição), e assim por diante. Acredita-se amplamente que essas diferenças sejam grandes e ‘naturais’.

Embora exista um projeto vigente ainda hoje de naturalização das identidades de gênero de forma a encaminhar às mulheres o cuidado da casa, do marido e dos filhos, as identidades de gênero não são naturalmente dadas, mas são projetos efetivados nas relações entre estruturas sociais e a agência dos sujeitos, sem desconsiderar os corpos e os aspectos psicológicos do desenvolvimento de gênero (CONNELL; PEARSE, 2015).

Ainda que as identidades de gênero sejam, muitas vezes, naturalizadas, Connell e Messerschmidt (2013) apontam que a feminilidade enfatizada e a masculinidade hegemônica tornam-se dominantes não por serem as mais praticadas, mas por serem os padrões de referência em relação à qual outras formas de feminilidade e masculinidade devem ser avaliadas.

Se em Campbell (1997) a aventura da mulher não seria a mesma do homem, pois enquanto a busca do homem é uma busca por um conhecimento externo a ele, a da mulher seria uma busca pela aceitação de seu papel social. Entretanto, como Connell e Pearse (2015) defendem, o modelo da socialização na teoria dos papéis sexuais pode ser hoje refutado, pois, como já apontado anteriormente, incorre aos erros de 1) subestimar a multiplicidade de padrões de gênero disponíveis para aprendizado; 2) reforçar um modelo baseado em diferenças de gênero; 3) minorar a agência do aprendiz que não simplesmente incorporam padrões irrestritamente e 4) não reconhecer outras dimensões de aprendizado que não em direção às normas dos papéis sexuais de gênero. Ainda, as pesquisas sobre a “diferença sexual” reconhecem que não foram encontrados padrões dicotômicos de gênero em personalidades adultas (CONNELL; PEARSE, 2015).

A busca feminina coexiste com a busca tradicional do herói e contribui para a manutenção de uma ordem de gênero baseada na dominação coletiva dos homens sobre as mulheres na medida que reforça uma feminilidade enfatizada que colabora com a dominação dos homens, pois apresenta “a aprendizagem do papel de passividade que a mulher tem que representar na sociedade e nas narrativas patriarcais” (DOUGLASS, 1989, p. 30).

Entre as sagas apontadas como mais consumidas entre as fãs, Crepúsculo é provavelmente a mais emblemática no que diz respeito à construção e manutenção de uma feminilidade tradicional. Isto porque a narrativa acaba conduzindo a adolescente Bella Swan para um relacionamento amoroso heterossexual com significativa centralidade em sua vida, à perda da virgindade apenas após casamento e a uma gravidez não planejada da qual não abre mão e que a torna mãe aos 18 anos. Ainda, Bella é apresentada com a personagem mais

fisicamente frágil entre os protagonistas da saga por ser humana, enquanto seu interesse amoroso é um vampiro e seu melhor amigo um lobisomem, além de emocionalmente dependente do primeiro a ponto de apresentar o comportamento depressivo ao longo de vários meses após um rompimento no relacionamento.

Entretanto, Bella Swan não é a única personagem feminina cuja jornada termina com a constituição de uma família. O que diferencia a Saga Crepúsculo de outras é que o relacionamento da humana Bella com o vampiro Edward Cullen é menos consequência dos desafios da jornada da personagem do que causa. O relacionamento não é apenas central no desenvolvimento da história, como a inadequação de uma relação romântica entre humanos e vampiros é o que promove em grande medida os acontecimentos da saga.

Na Saga Crepúsculo, a iniciativa de Bella é essencial à manutenção de seu relacionamento com Edward, que teme pela segurança da adolescente, pois permanecendo humana Bella está sujeita às ameaças de se relacionar com uma criatura de uma espécie que se alimenta de sangue, com predileção pelo humano. Ao mesmo tempo, o vampiro não quer que ela seja transformada pois considera a natureza humana muito mais desejável do que a amaldiçoada existência vampiresca.

Embora Bella possa ser interpretada como frágil por depender da proteção de vampiros e lobisomens por ser uma humana vivendo sob ameaças sobrenaturais numa cidade frequentemente visitada por criaturas não-humanas, a pesquisadora feminista Carol Gilligan (1993) propõe que em um mundo em que as mulheres frequentemente se silenciam para não aborrecer aos outros, se posicionar e ter uma voz seria um ato de conexão consigo mesma, o que iriam contra os interesses do patriarcado. Segundo a autora, as relações demandam coragem e vigor emocional, o que tem sido o forte das mulheres, mas que não é notado ou valorizado suficientemente. As relações requerem conexão, o que não depende unicamente de empatia ou habilidade de ouvir e entender sua linguagem, mas também de articular uma voz e uma linguagem (GILLIGAN, 1993). Apesar da comunicação não ser exatamente um forte de Bella, a personagem tende a ser incisiva em relação ao seu desejo de relacionar-se com Edward, de tornar-se vampira, de ter relações sexuais com ele e de manter sua gravidez, ainda que não tivesse sido planejada.

Pensar a busca feminina (DOUGLAS, 1989) através da jornada de Bella Swan sob a perspectiva de Gilligan (1993) conduz, aqui, a duas reflexões principais. A primeira, que continuaremos a desenvolver ao abordar as outras categorias de busca, é que há formas de ser e estar no mundo mais valorizadas do que outras e que a definição destas perpassa questões relativas ao gênero. A segunda é que sob perspectivas que se detêm sobre as liberdades

individuais dos sujeitos, qualquer escolha poderia ser considerada feminista, mesmo que não contrarie a ordem de gênero.