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A busca pela “anormalidade”: o exame, o diagnóstico, a classificação e a separação

4 EDUCAÇÃO ESPECIAL: OLHARES INSTITUCIONAIS

4.1 EDUCAÇÃO ESPECIAL: POSSIBILIDADES E IMPOSSIBILIDADES AO MENOR

4.1.3 As Classes Especiais no Estado de Sergipe

4.1.3.1 A busca pela “anormalidade”: o exame, o diagnóstico, a classificação e a separação

O exame e o diagnóstico aparecem como atribuição da equipe de profissionais que compõem o Núcleo de Educação Especial da Secretaria de Educação e já é descrito anterior à sua execução no livro do Prof. Freitas e colaboradores:

Neste diagnóstico serão necessários exames especializados com técnicas apuradas. Trata-se fundamentalmente de se firmar um diagnóstico válido para se estabelecer uma orientação básica que diz respeito ao próprio indivíduo, à sua personalidade e às suas necessidades vitais [...] A conclusão de exames especializados evidenciarão deficiências intelectuais, estados epileptoides, dislexias, deficiências motoras, enfermidades, não percebidas e não corrigidas, da vista do ouvido etc., enfim, todas as carências e todos os males que têm uma influência direta sobre os candidatos, porque podem originar estado de inquietação ou de sofrimento. Assim sendo, um grande número de deficientes mentais já entrará em tratamento para cada grupo. (FREITAS, et al., 1974, p. 24-25).

Observa-se a descrição de exames especializados com técnicas apuradas, já sinalizando o que vinha sendo usado no Brasil pelos escolanovistas como a psicometria, a preocupação com a individualização e identificação da personalidade do aluno, concordando com as asserções de Lourenço Filho (1978). Por meio dos exames, todos os desvios da norma serão evidenciados; “carências e males” que agem diretamente sobre os alunos serão identificados, reforçando a ideia da dificuldade centrada no indivíduo.

A psicometria proposta por Binet e seus colaboradores (traduzida no Brasil por Lourenço Filho) orientou o olhar dessa equipe, bem como os testes de Aprendizagem de Lourenço Filho (Teste ABC)63, como identificados na narrativa da Profa. Iara:

Usava o teste intelectual, como de Binet, mas usava todo o teste de aprendizagem também. Naquela época era de Lourenço Filho. Mas o teste de aprendizagem, ele trabalhava muito a coordenação motora, ele trabalhava a leitura, a escrita. O teste intelectual, ele sempre deu um diagnóstico mais científico, digamos assim [...] (Iara Maria Campelo Nascimento – entrevista concedida em 26 de junho de 2017).

O teste intelectual de Binet-Simon oferecia os índices de quociente de inteligência, uma medida quantificável que daria o “direito” de a criança ser atendida em sua

63 Segundo a entrevista de Profa. Iara e nos registros de sua dissertação de mestrado, na década de 1980 foi

implementado junto às classes especiais como alternativa a esses modelos de exame, o Diagnóstico Prescritivo ou Educacional, que ela conheceu durante seu mestrado no Rio de Janeiro. Como extrapola o período histórico desta tese não será analisado, destacando-se a importância de futuros estudos que possam dar continuidade a esta pesquisa, investigando as possibilidades que foram sendo traçadas e construídas no ensino da criança com deficiência mental em Sergipe.

individualidade na sala especial. Ao citar o teste de aprendizagem, observa-se a união de outros exames para a classificação dos alunos. O teste ABC de Lourenço Filho (1933), como revela a narrativa da Profa. Iara, centra-se na aplicação de oito provas para avaliar: coordenação viso-motora; memórias imediata, motora, auditiva, lógica; prolação; coordenação motora; atenção e fatigabilidade. Quantificados, os alunos eram classificados em categorias: fortes, médios e fracos, além de predizer como seria a evolução da aprendizagem da leitura e escrita de cada educando.

O trabalho de mestrado da Profa. Iara foi fruto de seu questionamento diante da forma de avaliação das crianças e o impacto disso para elas a partir do estigma de “especial” que se produzia. A professora diz que as mudanças nas definições de deficiência mental e dos escores dos testes para diagnosticá-las impactavam no cotidiano da prática do seu trabalho e revelavam as fragilidades dessa técnica:

Naquele momento nós tínhamos os testes psicológicos, o Binet, por exemplo, a criança era considerada deficiente intelectual se ela tivesse um desvio padrão abaixo da média. Mas, a partir de 70 ou de 69, o desvio padrão não era mais considerado um desvio padrão abaixo da média pra deficiência intelectual eram dois desvios. Ai foi o que mais me incomodou pra gerar meu trabalho de mestrado, porque muitas crianças que tinham sido classificadas como deficiência intelectual já não eram mais [...] psicometricamente, ela foi avaliada como deficiência intelectual, mas como o nível de exigência do teste mudou, ela deixou de ser deficiente intelectual. (Iara Maria Campelo do Nascimento – entrevista concedida em 26 de junho de 2017).

Em sua dissertação, Profa. Iara apresenta esse questionamento, destacando a diferença na padronização da normalidade por meio do saber científico que se propaga em cada época comparando as definições da American Association for Mental Deficieny, de Herber, de 1961 e a de Grosman, de 1973, verificando que houve uma ampliação da faixa considerada normal sob o ponto de vista psicométrico. Na definição de Herber, pessoas com Q.I. menor que um desvio padrão abaixo da média eram consideradas deficientes mentais e na definição de Grosman, a faixa de normalidade ampliou-se, considerando deficientes pessoas com Q.I. de dois desvios padrão abaixo da média:

[...] o funcionamento intelectual geral abaixo da média na definição da AADM refere-se ao desempenho em testes padronizados de inteligência em que o indivíduo apresenta mais de dois desvios-padrão a baixo da média. Comumente são usados testes como o Stanford-Binet ou a Escala de Wechsler, nos quais um escore igual ou menor que 68 ou 69 aproximadamente classifica uma criança como retardada. Antes da definição da Associação Americana de Deficiência Mental (1973) apenas um desvio padrão abaixo da média era usado como critério o que significava que um escore, equivalente a 83 ou 84, segundo se usasse o Stanford-Binet ou a

Escala Wechsler classificaria uma criança como retardada. (NASCIMENTO, 1985, p. 50-51).

A preocupação da autora vai além da inquietação diante dos critérios psicométricos de anormalidade, destacando a condição de desvantagem do aluno na escola, não somente por sua dificuldade diagnosticada, mas também por sua condição socioeconômica, a maioria proveniente da classe operária. Para Nascimento (1985), a escola, ao exigir um comportamento e saber da classe média, privilegia esse grupo, fazendo com que aqueles que não compartilham desse capital cultural sejam levados ao erro:

Fora da escola, a sociedade lhes oferece uma condição de pobreza, mas exige na escola uma resposta coerente com a população de classe média. Neste caso, este aluno só terá direito ao erro e ele é visto como alguém que não está sabendo aproveitar a oportunidade dada pela sociedade, e não é visto que as oportunidades dadas é que estão inadequadas aos alunos de classe operária; consequentemente, sua dificuldade se acentua ou poderá até ser criada, passando daí a ser atendido pela Educação Especial. (NASCIMENTO, 1985, p. 3)

Diante dessa percepção, continua sua argumentação afirmando que se for considerado esse aspecto, a dificuldade da criança ao ingressar na escola seria normal e “[...] talvez até a própria escola seja responsável pelo grande número de crianças identificadas com retardo leve de causas desconhecidas” (NASCIMENTO, 1985, p.16).

Analisando de forma crítica seu próprio trabalho dentro das classes especiais, a autora revela em sua entrevista o quanto ela e os demais profissionais estavam desconhecendo a realidade de seus alunos. O trecho abaixo ilustra a apropriação do saber científico pelos profissionais para aplicação junto aos alunos, sem interpretá-lo sob o campo cultural dos alunos que se desejava avaliar:

Naquele momento você via como nós estávamos completamente desconhecendo a realidade, muitas vezes, mostrava que no teste intelectual ela ia dar abaixo, a nossa criança não conhecia pedra preciosa. Até tem um fato muito interessante com uma psicóloga que fazendo a avaliação com o garoto perguntou se ele conhecia esmeralda, e ele com toda certeza disse conheço, aí ela ficou impressionada e disse qual é a cor de esmeralda? Ele disse é verde. Aí ela se impressionou mais ainda. Então foi quando ela perguntou, e quando é que você viu esmeralda? Ele disse, ela é minha vizinha. Então quer dizer, o garoto, naquele momento era nosso estudo, o que nos inquietava era ele, aquele garoto estava trazendo uma percepção da realidade, ele não só identificou a esmeralda vizinha dele, como ele já estava observando que a Esmeralda poderia ter icterícia, ou alguma coisa assim do fígado, que ela era esverdeada. Então era um menino que estava atento à realidade, só que a realidade social dele era uma e o que o teste exigia era outra. (Iara Maria Campelo do Nascimento – entrevista concedida em 26 de junho de 2017).

A autora faz uma reflexão importante em sua dissertação não só das práticas realizadas em Sergipe, da qual fazia parte, mas de todo contexto nacional a partir de uma leitura ampliada:

[...] com a democratização do ensino, a obrigatoriedade de receber todas as crianças na contramão da ideologia dominante que pensava a educação apenas para os privilegiados socialmente, o ensino foi pensado sem levar em conta as diferenças sociais. Consequente fracasso de algumas crianças atribuído unicamente a elas, vinculado à deficiência, eximindo a escola de qualquer responsabilidade no fracasso das crianças. A escola apenas segue a opção ideológica do grupo social que a mantém, assim, a Educação Especial, culpa as crianças, atribuindo-lhes as deficiências. O processo sempre se inicia com o encaminhamento pela dificuldade de aprendizagem culminando no diagnóstico por meio de testes psicológicos e exames médicos – investiga-se a deficiência, suas causas e as falhas nas habilidades básicas de aprendizado. (Iara Maria Campelo do Nascimento – entrevista concedida em 26 de junho de 2017).

O exame pode ser compreendido como uma técnica que serve a um poder por meio de mecanismos de objetivação (FOUCAULT, 1987). O exame implica um poder disciplinar, caracterizado pela vigilância, observação constante e documentação da observação – as crianças objetivadas pelo saber psicopedagógico que se colocava nas escolas foram fixadas e colocadas em padrões previamente construídos.

Foucault (1987), ao falar do exame, defende a ideia de que por meio de suas técnicas documentárias, transforma os indivíduos em um caso: “[...] um caso que ao mesmo tempo constitui um objeto para o conhecimento e uma tomada para o poder” (p. 215). O indivíduo objetivado pode ser descrito, mensurado, medido, comparado a outros a partir de sua individualidade, bem como será sua individualidade classificada, normalizada, excluída ou não.

O exame como fixação ao mesmo tempo ritual e “científica” das diferenças individuais, como aposição de cada um à sua própria singularidade [...] indica bem a aparição de uma nova modalidade de poder em que cada um recebe como status sua própria individualidade, e onde está estatutariamente ligado aos traços, às medidas, aos desvios, às “notas” que o caracterizam e fazem dele, de qualquer modo, um “caso”. Finalmente, o exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber. É ele que, combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões. (FOUCAULT, 1987, p.216).

A apropriação da educação de saberes biomédicos, também se torna instrumento de biopoder, caracterizando uma microfísica do poder refletido na objetivação das crianças e

jovens que não se adequavam ao meio escolar construído, meio que não respondia às suas demandas sociais e culturais, mas, ao contrário, procurava tirá-los de cena. O exame, sendo técnica desse poder, foi um dispositivo de investigação e diagnóstico, exaltando a individualidade de cada um, e, quando comparados, classificados, construiu-se parâmetros para a “anormalidade escolar”, justificando outras formas de ensino como a apropriação da educação especial.

Foi por meio dos exames contínuos que alguns tiveram direito à educação, outros à educação especial, outros a nenhuma das duas.