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Capítulo 1 Conatus, segundo a Ética de Benedictus de Spinoza

1.4 A caracterização do conatus

Todas as coisas singulares são modos pelos quais a potência de Deus é exprimida de forma definida e determinada e por meio da qual existe e age. Na proposição 6 da parte III, da Ética, Spinoza introduz o conceito do conatus (termo latino que significa esforço) ao afirmar que: “Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser.” (SPINOZA, 2013, p. 173). O esforço (conatus) de cada coisa singular atua para garantir e manter sua existência. Logo, se não existe nela mesma nada que a possa destruir, todo seu esforço ocorrerá no sentido de se opor a tudo que ameace a sua existência. O esforço de cada coisa tende indefinidamente por se conservar na existência.

O conatus, que determina a ação e o pensamento, define a potência atual da coisa e esse esforço não envolve nenhum tempo finito, mas um tempo indefinido, visto que, é um tempo determinado pela duração do esforço, enquanto este não seja destruído por nenhuma causa exterior.

O conatus, portanto, é a potência que determina individualmente todas as coisas singulares, podendo ora aumentar, ora diminuir conforme a maneira com que cada singularidade se relaciona com as outras singularidades, ao tentar garantir sua existência. A intensidade do conatus, ou seja, da força de existir e agir, diminui se a singularidade for afetada de forma que seu conatus seja repelido, e aumenta se ela for afetada por singularidades que compõem sua potência de existir e agir. Assim: “se uma coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de agir do nosso corpo, a ideia dessa coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de pensar de nossa mente”. (SPINOZA, 2013, p. 177)

As afecções que ocorrem no corpo devido à ideia que temos dos outros corpos podem aumentar ou diminuir nossa potência de agir, ou nosso conatus. Quando somos causas inadequadas das afecções somos coagidos pelas afecções tornando-nos passivos a elas. Isto é, enquanto nossa mente possui ideias adequadas ela é ativa, ao contrário, se possui ideias inadequadas é passiva às afecções.

Uma vez que todas as coisas devem perseverar no seu ser, tendendo sempre para a autoconservação, Spinoza (2013, p. 177) afirma:

Esse esforço à medida que está referido apenas à mente, chama-se vontade; mas à medida que está referido simultaneamente à mente e ao corpo chama-se apetite, o qual, portanto, nada mais é do que a própria essência do homem, de cuja natureza necessariamente se seguem aquelas coisas que servem para sua conservação, e as quais o homem está, assim, determinado a realizar. Além disso, entre apetite e desejo não há nenhuma diferença, excetuando-se que, comumente, refere-se o desejo aos homens à medida que estão conscientes de seu apetite.

Com isso, é possível considerar que a mente sofre grandes e constantes mudanças, através das quais se explicam a alegria, a tristeza e o desejo, designadas por Spinoza como as três emoções básicas e provedoras de todas as demais. Nas palavras de Spinoza (2013, p. 177) “por alegria compreenderei, daqui por diante, uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior. Por tristeza, em troca, compreenderei uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor.”

O desejo, por sua vez, é a própria essência do homem, concebido como determinado a fazer algo por alguma afecção; é um apetite do qual se têm consciência. No que se refere à alegria esta é caracterizada pela presença de excitação e contentamento, enquanto a tristeza é caracterizada pela presença de dor e melancolia. Os afetos da excitação e da dor surgem

quando o corpo é afetado parcialmente pela alegria e tristeza, respectivamente. Os afetos do contentamento e da melancolia, por sua vez, surgem quando o corpo é afetado na sua totalidade pela alegria e tristeza, respectivamente.

Quando nosso corpo é afetado de alguma forma, necessariamente, a mente também é afetada temporariamente. A mente, por sua vez, irá se esforçar para imaginar algo que aumente seu conatus; quando a mente é afetada imagina a ideia daquilo que lhe afeta no momento atual e é justamente esta ideia que proporciona o fortalecimento ou o enfraquecimento do conatus. Por isso a mente se esforça para imaginar outra paixão que destrua aquela que enfraqueça seu conatus, repugnando imaginar aquilo que diminui sua potência de agir.

[...] durante todo o tempo que a mente imaginar aquelas coisas que aumentam ou estimulam a potência de agir de nosso corpo, o corpo estará afetado de maneiras que aumentam ou estimulam a potência de agir e, consequentemente, durante esse tempo, a potência de pensar da mente é aumentada estimulada [...] (SPINOZA, 2013, p. 181).

Algo de semelhante ao objeto que afeta a outros pode nos afetar da mesma forma, explicando melhor, quando algo nos traz alegria isso nos faz amar tal objeto, mas, ao contrário, quando nos traz tristeza, faz-nos odiar o objeto que reputamos ser causa desta. A mente considerará o objeto da mesma forma que outrora fora afetada. Ora, se no passado o objeto causara tristeza, tal afecção de ódio irá permanecer na mente.

Simplesmente por termos considerado uma coisa com um afeto de tristeza ou de alegria, afeto do qual essa coisa não é causa eficiente, podemos amá-la ou odiá-la. Com efeito, resulta, simplesmente por isso que a mente, ao imaginar, mais tarde, essa coisa, é afetada de um afeto de alegria ou de tristeza[...]. Compreendemos, assim, como pode ocorrer que amemos ou odiemos certas coisas sem que saibamos a causa, mas apenas por simpatia ou por antipatia[...] (SPINOZA, 2013, p.183).

Uma coisa qualquer pode ser acidentalmente causa de alegria, de tristeza ou de desejo. Só porque imaginamos que uma coisa tem algum traço semelhante a um objeto que afeta habitualmente a alma de alegria ou de tristeza, ainda que esse traço, pelo qual o objeto se assemelhe, não seja a causa eficiente daquelas afeições, amamos ou odiamos essa coisa.

Para manter a potência, o nosso conatus, esforçamo-nos para imaginar tudo aquilo que nos conduz à satisfação, enquanto pelo mesmo processo procuramos rejeitar tudo aquilo que nos traz tristeza ou desalento. Afirmamos através de nós mesmos e da coisa amada, tudo aquilo que imaginamos e que seja capaz de afetá-la e de nos afetar de alegria e em negar tudo o que imaginamos e que possa afetá-la ou nos afetar de tristeza.

O conatus, demonstra Spinoza na parte III da Ética, é a essência atual do corpo e da mente. Mais do que isso, sendo uma força interna para existir e conservar-se na existência,

apresenta-se como força interna positiva ou afirmativa, intrinsecamente indestrutível, pois nenhum ser busca a autodestruição. Possui, assim, uma duração ilimitada até que causas exteriores mais fortes e mais poderosas o destruam. Definindo corpo e alma pelo conatus, Spinoza faz com que sejam essencialmente vida, de maneira que, na definição da essência humana, não entra a morte, pois essa é necessariamente um fator externo a natureza das coisas.

Com isso o conatus, constitui-se como a necessidade da natureza que é a causa pela qual as coisas começam a existir e também a causa pela qual essas coisas perseveram na sua existência. Enquanto causa da existência das coisas, deve ser compreendido sob o aspecto da imanência, pois causa e efeito não se separam, uma vez que, “o conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e envolve este último” (SPINOZA, 2013, p. 15).

O conceito de conatus é explicitado, portanto, como causa eficiente interna e inerente a todos os indivíduos, isto é, causa interna que produz efeitos necessários internos ou externos. Assim, apresentam-se como as características principais do conatus: variabilidade, o conatus é variável, pois pode aumentar ou diminuir de acordo com o exercício das afecções; a indefinição temporal, o conatus não envolve tempo finito, mas indefinido, pois age até que uma causa exterior mais forte o reprima ou o cesse; essência atual, o conatus é a essência atual de cada coisa, pois só pode ser destruído por uma causa exterior.

Há que se observar que sobre a teoria do conatus se funda toda a teoria da afetividade, bem como a ética e a teoria política de Spinoza. Essa concepção permeia a ontologia da potência desenvolvida na primeira parte da Ética, que reverbera ao longo de todo o seu sistema, culminando na abordagem política do dinamismo causal da substância divina com as essências das coisas finitas, que produzem efeitos de acordo com seu grau de potência. Com isso, admite-se que todas as coisas são dotadas de uma potência de agir.

De forma isolada, como vimos, cada coisa esforça-se tanto quanto pode (em tempo indefinido) por perseverar no seu ser. Porém, as coisas finitas não existem isoladamente, estão situadas no mundo e como tal só podem existir com o concurso de outras coisas finitas com as quais estabelecem relação causal, favorecendo ou prejudicando o pleno exercício de sua potência de agir.

Isso significa dizer que o ser humano é uma singularidade individual por sua própria essência, por isso, seu conatus não é uma inclinação ou uma tendência virtual ou potencial, mas uma força que está sempre em ação. Logo, a essência de um ser singular é igual a sua atividade e esta engloba todas as operações e ações que realiza para manter-se na existência e

essas ações são logicamente anteriores ao juízo de valor que fazemos das coisas quando as classificamos em certas ou erradas, boas ou más, irracionais ou racionais, etc.. Dessa forma, os apetites (no corpo) e as volições (na mente), que constituem os desejos humanos são os aspectos atuais do conatus e, por isso mesmo, são causas eficientes determinadas por outras causas eficientes. Do conatus decorre, portanto, a definição spinozana da essência do homem, cf. Def. 1 das Definições dos Afetos: “O desejo é a própria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si própria, a agir de alguma maneira.” (SPINOZA, 2013, p. 237). É na concepção de conatus aliada à potência, que se constitui o cerne da teoria política de Spinoza da qual trataremos mais especificamente nos capítulos que se seguem.