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Capítulo 2 Política e multidão segundo Benedictus de Spinoza

2.3 Multidão

O conceito de multidão sempre foi trabalhado com certo desprezo por carregar em seu âmago a ideia de multiplicidade, normalmente atrelada a um conjunto de pessoas cujo valor (prestígio) é insignificante. Trata-se de um agrupamento de indivíduos que não possuem uma unidade primordial e por isso mesmo não possuem objeto, ao mesmo tempo em que não se constituem como sujeito. De forma contrária, Spinoza concebe a multidão como reflexo de unidade primordial em prol de sua própria conservação.

Se a tradição política da modernidade renega a multidão ao refletir sobre o movimento fundador e gerenciador da política, Spinoza segue na direção oposta construindo sua teoria política e fundamentando a legitimação do direito civil a partir da multidão. Tendo em vista a importância deste conceito para a reflexão política de Spinoza, torna-se necessário expor os contornos do mesmo, a fim de demonstrar por quais meios o autor confronta o sentido tradicionalmente atribuído à multidão, ao mesmo tempo em que a promove a sujeito político.

No pensamento político de Spinoza, a multiplicidade e a singularidade não são apresentadas como noções dissonantes, mas, ao contrário, vinculam-se necessariamente. Nessa medida o conceito multidão pode ser explicado seguindo os mesmos elementos argumentativos que o autor utiliza para falar do corpo. Na parte II da Ética, Spinoza (2013, p. 105) postula o corpo da seguinte forma: “o corpo humano compõe-se de muitos indivíduos (de natureza diferente), cada um dos quais é também altamente composto”, trata-se, portanto, de uma relação entre partes extensas determinada por uma certa proporção de movimento e repouso. Essa proporção entre movimento e repouso, que também pode ser entendida como aceleração e refreamento, é o que garante a individualidade de cada coisa, nas palavras de

Spinoza (2013, p. 99) “os corpos se distinguem entre si pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e pela lentidão, e não pela substância”, ou seja, cada corpo é composto por relações entre outros tantos corpos, o que nos permite aventar que à natureza de cada indivíduo pertence a multiplicidade.

Ainda nos postulados da parte II da Ética, é declarado que “o corpo humano tem necessidade, para conservar-se, de outros corpos, pelos quais ele é como que continuamente regenerado” (SPINOZA, 2013, p.105). De forma análoga, podemos entender o movimento de formação da multidão, como necessário à conservação das singularidades. Dito de outra maneira, a forma como o corpo é constituído equivale à forma como a multidão é formada, possibilitando a identificação da multidão como corpo, mas não corpo individual, corpo coletivo e/ou corpo político.

Trata-se, por conseguinte, daquilo que se encontra na natureza de todas as coisas. Todo corpo se compõe a partir de uma multiplicidade determinada ao mesmo tempo em que de outras multiplicidades organizacionais. De forma adequada podemos conceber a multidão como sujeito político por excelência e não segundo a perspectiva que a identifica como sinônimo de anarquia, caos e guerra. É a pluralidade das forças e das formas de vida presentes no contexto social que configura o espaço político e auxilia a conservação da existência da multiplicidade constituinte.

O conceito de multidão, na filosofia de Spinoza, surge, especificamente, nas obras em que o autor trata da política, a saber: Tratado Teológico-Político e Tratado Político, ficando ausente no restante das obras, inclusive na Ética, escrita entre os dois tratados.

No estado natural, tanto pode ocorrer que os indivíduos entrem em conflito quanto que se unam numa situação de cooperação mútua. Quando se agrupam, são levados a isso por uma situação comum entre todos os integrantes do grupo, gerando afetos comuns (normalmente de medo ou esperança) que suavizam as divergências e conflitos provisoriamente.

Dado que os homens, como dissemos, se conduzem mais pelo afeto que pela razão, segue-se que não é por condução da razão, mas por algum afeto comum que uma multidão se põe naturalmente de acordo e quer ser conduzida como que por uma só mente, ou seja (como dissemos no art.9, cap. III), por uma esperança ou medo comuns, ou pelo desejo de vingar algum dano comum. Como, porém, o medo da solidão existe em todos os homens, porque ninguém na solidão tem forças para poder defender-se e reunir o necessário para a vida, segue-se que os homens desejam por natureza o estado civil, não podendo acontecer que eles alguma vez o dissolvam por completo. (ESPINOSA, 2009, p.47).

Santiago (2014, p. 77) nos chama atenção para a relação estabelecida por Spinoza entre liberdade e poder:

Se Hobbes dobrava a liberdade ao poder, Spinoza terá o mérito de tentar dobrar o poder à liberdade, à potência do coletivo, recusando enfaticamente a “necessidade capitalista da mistificação da potentia em potestas”, isto é, a sua sujeição à um poder soberano. Toda ontologia será então mobilizada para o cumprimento desse objetivo e culminará exatamente na multidão como sujeito portador da potência coletiva.

As limitações impostas pelo estado de natureza põem em movimento todos os mecanismos necessários à constituição do sujeito coletivo. A ideia de multidão trabalhada no Tratado Político conjuga a essência humana e o fundamento do Estado. Na medida em que vários homens se reúnem, também suas potências se conectam fundando uma potência totalizante capaz de gerir e organizar o Estado, sem que a liberdade de cada um, garantida por seu direito natural seja desconsiderada. De forma prática, consolida-se o direito civil que coexiste com o direito natural, possibilitando aos cidadãos a participação na organização da vida política.

2.3.1 Multidão no Tratado Teológico-Político e no Tratado político

Como tratamos no tópico anterior, o conceito de multidão é apresentado por Spinoza em seus dois tratados sobre política. Há, no entanto, uma diferença de significado e de sentido na utilização desse conceito nas duas obras. Grosso modo, no TTP, o autor utiliza o termo unicamente para identificar a massa, ao passo que no TP, não se trata apenas de um termo, mas de um conceito que não só identifica a massa, a caracteriza e a denomina como sujeito político.

No TTP, a palavra multidão aparece enunciada pouquíssimas vezes, sempre como substantivo comum identificando uma matéria indistinta, que só é proferida quando ordenada e/ou contida pela soberania. Sendo facilmente identificado o caráter passivo que ela recebe, haja vista que não é dotada de nenhum nível de potência, nem indica margem possível para qualquer manifestação autônoma. A exemplo disso, podemos citar a passagem do TTP em que Spinoza menciona a superstição como um meio eficaz de gerência da multidão: “não há nada mais eficaz do que a superstição para governar as multidões” (ESPINOSA, 1988, p. 113).

Seguindo essa linha de raciocínio, Hobbes é um dos estudiosos que veem a multidão como sinônimo de caos e desordem. Sobretudo as considera não como uma unidade, mas como uma massa desordenada que deveria ser controlada, contida, submetendo-se a mesma aos mecanismos de representação e/ou repressão política. A passagem que se segue, retirada do Leviatã, revela o ponto de vista hobbesiano acerca da multidão:

Uma multidão de homens se converte numa só pessoa quando é representada por um homem, ou uma pessoa, de tal forma que possa atuar com o consentimento de cada

um dos indivíduos que compõem essa multidão. Isso representa a unidade do representante, não a unidade dos representados, o que faz a pessoa uma. E é o representante que sustenta a pessoa, mas apenas uma pessoa. A unidade não pode ser entendida de outro modo na multidão. (HOBBES, 2014, p. 135-136).

Em síntese, a palavra multidão aparece no TTP sempre com significados que remetem ao que é manifesto pela tradição filosófica política, isto é, como sinônimo de povo, plebe, vulgo, representando uma matéria impassível de ação e de direito. Ao passo que no TP

[...] ela vai aparecer como sujeito da potência pela qual se define o estado, ao mesmo tempo que deixa de ser entendida como parte de um todo para passar a identificar-se como esse todo, a tal ponto que a sua potência se entende como exprimindo exatamente a potência e, por conseguinte, o direito do imperium. (AURÉLIO, 2009, p. xxvii).

Aurélio (2009, p. xxvii) nos incita a questão: “Qual a origem dessa reviravolta, que leva Espinosa a dotar a palavra multidão de uma carga semântica que ele próprio até então ignorara, transformando-a num conceito integralmente novo no âmbito do pensamento jurídico-político?”. Na sequência, é feita a suposição de que essa mudança de perspectiva ocorre pela necessidade do autor de conciliar a política e a ontologia do seu sistema.

A multidão está na origem do poder político e este é constituído inteiramente por sua potência, assim, contrariando Hobbes, defende que esta não se desfaz com a implementação do contrato. Como já mencionamos em outro momento no texto, Spinoza afirma no TTP e reafirma no TP a impossibilidade de total transferência da potência a outrem, o que é fácil compreendermos se atentarmos para a constituição da multidão, formada pela reunião de inúmeros conatus. Sendo este a essência humana, não é possível que haja transferência total, mas tão somente parcial de forma a promover a organização do corpo político.

Essa mudança de sentido empregada ao termo multidão nos tratados sobre a política, não está referida somente ao caráter sociopolítico das relações entre os homens no contexto do estado civil, ou à garantia da sua liberdade e segurança nesse contexto. Muito mais profundo que isso, a “requalificação” da multidão ocorre pela impossibilidade de modificação da essência dos homens e, consequentemente, da essência da própria multidão. De forma mais clara, trata-se da adequação da ontologia à política.