• Nenhum resultado encontrado

A CARACTERIZAÇÃO DA DEFICIÊNCIA E A JURISPRUDÊNCIA PÁTRIA

4. A SISTEMATIZAÇÃO JURÍDICO-NORMATIVA DA TUTELA DE CARGOS

5.1. A CARACTERIZAÇÃO DA DEFICIÊNCIA E A JURISPRUDÊNCIA PÁTRIA

Conforme destacado em tópico anterior, há de fato vários diplomas normativos que definem pessoa com deficiência, todavia, após a incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) ao ordenamento constitucional brasileiro, está em vigor um novo conceito de pessoa com deficiência. Mas não é só isso, há um novo arcabouço constitucional à disposição da concretização dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência.

Portanto, cabe agora avaliar se o posicionamento jurisprudencial adotado na concretização da política de cotas ao trabalho previsto no art. 37, VIII, encontra-se em

harmonia com esse novo panorama inclusivo das pessoas com deficiência, isto é, precisa-se averiguar se o debatido Decreto nº 3.298/99, com as alterações conferidas pelo Decreto nº 5.296/2004 ainda estão servindo de parâmetro exclusivo à caracterização da deficiência. Além disso, é preciso identificar se os tribunais superiores brasileiros já adotam o modelo bipsicossocial de deficiência, no qual se diferencia pessoa que tem deficiência daquela com deficiência. Em outras palavras, esse modelo considera apenas pessoa com deficiência àquele indivíduo que, além de apresentar uma limitação funcional, também apresenta dificuldades de inserção social, em face das barreiras a ele impostas, em razão dessa limitação funcional identificada. Por isso aqueles que apenas apresentarem uma ou mais limitações funcionais, mas não sofrer nem um impedimento ou dificuldade de inserção social em razão desta, não se enquadra no conceito constitucional, atual, de pessoa com deficiência, e, por conseguinte, não deve ser considerado como beneficiário da política de cotas para o trabalho determinada pela Constituição Federal de 1988.

Para tanto, faz-se necessário analisar alguns julgados recentes dos tribunais superiores brasileiros, assim como de tribunais instalados no Rio Grande do Norte, em razão do recorte metodológico realizado no presente estudo, a fim de se identificar o parâmetro legal utilizado para a caraterização da pessoa com deficiência na efetivação do comando constitucional referido.

Por tratar-se do direito ao trabalho, inicia-se essa averiguação pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), que, em Outubro de 2012, assim se manifestou no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 11800-35.2011.5.21.0000, publicado no Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho (DEJT) em 15/10/2012:

MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATA INSCRITA COMO PORTADORA DE NECESSIDADES ESPECIAIS. ENQUADRAMENTO COMO PNE NEGADO PELA COMISSÃO CENTRAL DO CONCURSO. DEFICIÊNCIA AUDITIVA UNILATERAL. ARTIGOS 3º E 4º DO DECRETO 3.298/1999. A interpretação dos arts. 3º e 4º do Decreto 3.298/1999 (com a redação dada pelo Decreto 5.296/2004) em harmonia com os dispositivos da Constituição da República, mormente com os seus arts. 1º, incs. II e III, e 3º, inc. IV, os quais evidenciam que, mediante as denominadas ações afirmativas, sejam efetivadas as políticas públicas de apoio, promoção e integração dos portadores de necessidades especiais, leva à conclusão de que a deficiência auditiva unilateral é suficiente para assegurar o direito do candidato concorrer a uma das vagas destinadas aos portadores de necessidades especiais a que aludem os arts. 37, inc. VIII, da Constituição da República e 5º, § 2º, da Lei 8.112/1990, não se exigindo que a deficiência auditiva seja bilateral. [...] (BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 11800-35.2011.5.21.0000. Relator: Ministro João Batista Brito Pereira, Órgão Especial. Brasília, 01/10/2012, Publicado no DEJT do dia 15/10/2012. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/consulta-unificada>. Acesso em: 14/04/2014) (grifos nossos)

Conforme se verifica com a leitura da emenda acima transcrita, o TST, mediante uma

interpretação sistemática346 dos art. 3º e 4º do Decreto nº 3.298/1999, ampliou o rol de

pessoas com deficiência exposto no art. 4º do referido decreto, moldando-o as exigências constitucionais de inclusão social e efetivação da ação afirmativa prevista no art. 37, VIII da CF. Entretanto, ainda encontra-se atrelado ao modelo biomédico para caracterização da deficiência, visto que nada versa sobre a existência de barreiras que dificultem ou impeça o candidato de exercer qualquer de seus direitos fundamentais, apenas pauta-se na existência de uma limitação funcional, que, apesar de não estar expressamente definida como deficiência pela legislação regulamentar, dela pode ser inferida.

Observa-se, também, que o citado Tribunal, ainda, não utiliza no analisado acórdão a nomenclatura mais adequada à designação das pessoas com deficiência, eis que ainda faz uso da expressão ―pessoa portadora de necessidades especiais‖ (PNE), assim como não tece qualquer referência a CDPD, deixando de aplicar a definição constitucional colacionada pela referida convenção.

É importante destacar que, analisando o inteiro teor da decisão comentada, verifica- se que o Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região (Rio Grande do Norte) cassou a liminar inicialmente concedida por esse mesmo Egrégio Tribunal Regional, com o fundamento de que a época da publicação do Edital discutido (2010), a legislação nacional em vigor não era suficiente para caracteriza a Impetrante como ―candidato portador de deficiência física‖, em face da sua perda auditiva unilateral, logo, neste julgamento o tribunal referido utilizou como parâmetro legal o supracitado decreto de 1999.

Todavia, tal argumento não deve prosperar, haja vista que desde agosto de 2008 a CDPD fora ratificada pelo Brasil com hierarquia de norma constitucional, alterando, sensivelmente, a definição de pessoa com deficiência, pois o conceito insculpido na citada convenção é mais amplo do que àquele disposto na legislação infraconstitucional utilizada pelo mencionado tribunal, abarcando, portanto, tantos outros casos que não estejam ali enumerados. Ademais, repita-se, hoje a caracterização da pessoa com deficiência não mais se encontra vinculada exclusivamente à patologia, mais também a interação do indivíduo com o meio ambiente, em razão da limitação funcional por ele apresentada, motivo pelo qual os

346 ―O método sistemático disputa com o teleológico a primazia no processo interpretativo. O direito objetivo não

é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmonicamente. Sistema pressupõe ordem e unidade. A interpretação sistemática é fruto da ideia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas.‖ (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: Fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7 ed rev. São Paulo: Saraiva, 2009. 2 tiragem, 2010, p. 106).

operadores do Direito devem estar atentos para a necessidade de interpretar a legislação infraconstitucional em conformidade com o novo paradigma constitucional, abandonando-se o modelo biomédico para definição de deficiência e adotando o biopsicossocial.

Outro Acórdão digno de menção e análise é o proferido no julgamento conjunto de Reexame Necessário e Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 29400-

69.2011.5.21.0000, publicado no DEJT em 15 de outubro de 2012347.

Em análise à referida emenda, observa-se que, nesse acórdão, o TST realizou, mais uma vez, interpretação sistemática do Decreto nº 3.298/199, de modo a considerar como deficiência, limitação funcional não constante no rol do art. 4º, entretanto, a esta acrescentou

ponderação quanto ao conceito constitucional de deficiência advindo da CDPD348, realizando

interpretação que privilegia o Princípio da Supremacia da Constituição. Registre-se, também, que no momento que o Colendo Tribunal reconheceu que as limitações sensoriais vividas pelo candidato ―impedem a sua convivência em pé de igualdade com as demais pessoas‖, dito tribunal acabou por fazer uso do modelo biopsicossocial para caracterizar o candidato como pessoa com deficiência, abandonando, desta feita, o modelo anterior.

Destaque-se que, nas razões do voto proferido pela Ministra Dora Maria da Costa, o Órgão Especial do TST claramente reconhece que as normas infraconstitucionais que regem a matéria são normas integrantes da ―diretriz constitucional de garantia da proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência, e têm o escopo de assegurar efetivamente a isonomia.‖ E por isso, necessitam ser interpretadas ―em obediência à máxima da dignidade da

pessoa humana, em função dos interesses constitucionais protegidos.‖. E assevera, ainda, que:

347 ―[...] CONCURSO PÚBLICO PARA SERVIDOR. PERDA AUDITIVA SUPERIOR A 41 dB EM UM DOS

OUVIDOS. ENQUADRAMENTO COMO DEFICIENTE PARA CONCORRER A VAGA DESTINADA AOS PORTADORES DE NECESSIDADES ESPECIAIS. O art. 4º do Decreto nº 3.298/99, que enumera as

deficiências hábeis a autorizar que o candidato em concurso público concorra às vagas reservadas aos portadores de necessidades especiais, exige perda auditiva bilateral superior a 41 dB, não permitindo em sua literalidade enquadrar como deficiente o impetrante, portador de perda auditiva bilateral de 46,5 dB na orelha direita e 30 dB na orelha esquerda. Contudo, o rol de deficiências previsto no dispositivo regulamentar em foco não é exaustivo, demandando leitura à luz do conceito de deficiência oferecido pelo art. 1º da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, norma trazida para a ordem jurídica interna com status de Emenda Constitucional, nos termos do art. 5º, § 3º, da CF. Nesse contexto, considerando que a perda auditiva de que é portador o impetrante foge do padrão de normalidade física, trazendo-lhe limitações sensoriais que impedem a sua convivência em pé de igualdade com as demais pessoas, impõe-se reconhecer a sua

condição de deficiente físico, tendo direito líquido e certo à reserva de vagas prevista nos arts. 37, VIII, da CF e 5º, § 2º, da Lei nº 8.112/90. Precedentes deste Órgão Especial e do Superior Tribunal de Justiça. Remessa necessária e recurso ordinário conhecidos e não providos. (BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Reexame Necessário e Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 29400-69.2011.5.21.0000. Relator: Ministra Dora Maria da Costa, Órgão Especial. Brasília, 01/10/2012, Publicado no DEJT do dia 15/10/2012. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/consulta-unificada>. Acesso em: 14/04/2014) (grifos nossos).

348―À luz desse conceito, reitere-se, dotado de status constitucional, é que devem ser lidas todas as normas que

visam traçar os limites da proteção às pessoas portadoras de deficiência, entre elas o já mencionado art. 4º do Decreto nº 3.298/99.‖ (Idem).

Nessa interpretação conjunta, há de se conferir especial relevo às normas inscritas na Constituição Federal, tendo em vista a inquestionável supremacia de que é dotado o texto constitucional e os valores neles positivados. Na linha desse entendimento, a doutrina vem propondo que o administrador público contemporâneo não se submete apenas ao princípio da legalidade estrita, mas, sim, ao princípio da juridicidade, pautado pela aplicação da lei à luz da Constituição.349.

Diante desse acórdão, resta evidente que o Tribunal Superior do Trabalho reconhece a importância da política de cotas ao trabalho prevista no art. 37, VIII, da CF, bem como busca pautar sua atuação na concretização de tal dispositivo, conferindo interpretação sistemática à legislação infraconstitucional, compatibilizando-a com as mudanças ocorridas na Constituição Federal, em razão da ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos

das Pessoas com Deficiência350, tudo em homenagem ao Princípio da Supremacia da

Constituição, princípio esse que não pode ser olvidado quando se estiver diante de interpretação constitucional.

Frise-se que os dois acórdãos acima analisados foram julgados no mesmo dia, pelo mesmo órgão julgador, contudo, em cada uma das decisões fora aplicado um modelo diferente para caracterização da deficiência, sendo, portanto, lícito inferir que os Ministros integrantes deste Colendo Tribunal já visualizaram algumas mudanças constitucionais operadas pela CDPD no âmbito normativo pátrio, principalmente, no que tange ao modelo vigente para caracterização da deficiência, todavia, ainda é majoritária a aplicação do modelo biomédico na jurisprudência deste tribunal superior, conforme revela a pesquisa jurisprudencial

realizada, tendo como exemplo recente o acórdão351 proferido em razão de julgamento de

Reexame Necessário em Mandado de Segurança nº 1220-74.2012.5.15.0000, julgado em

02/09/2013352.

349 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Reexame Necessário e Recurso Ordinário em Mandado de

Segurança nº 29400-69.2011.5.21.0000. Relator: Ministra Dora Maria da Costa, Órgão Especial. Brasília, 01/10/2012, Publicado no DEJT do dia 15/10/2012. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/consulta-unificada>. Acesso em: 14/04/2014.

350 Ainda nesta seara, destaca-se o acórdão proferido no julgamento do Recurso Ordinário nº 9-

84.2012.5.12.0000, que, assim como o anteriormente citado, também reconhece a necessidade de interpretar o art. 4º do Decreto nº 3.298/99 como rol meramente exemplificativo, em face da ratificação da CDPD.

351 No mesmo sentido, cf. BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso Ordinário em Mandado de

Segurança nº 8829-08.2011.5.02.0000. Relator: Ministro João Oreste Dalazen, Órgão Especial. Brasília, 03/06/2013, Publicado no DEJT 28/06/2013. Disponível em: <http://www.tst.jus.br>. Acesso em: 08/04/2014.

352 ―REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. INSCRIÇÃO.

ANALISTA JUDICIÁRIO. PESSOA DEFICIENTE AUDITIVA. SURDEZ UNILATERAL. ANACUSIA. RESERVA DE VAGA 1. A perda auditiva igual ou superior a 41 decibéis (dB) em pelo menos um dos ouvidos (surdez unilateral), aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.00OHZ, 2.000HZ e 3.000HZ,

caracteriza deficiência auditiva. Inteligência dos arts. 3º e 4º do Decreto nº 3.298/99 com a redação do Decreto nº 5.296/2004. 2. Nessa condição, assegura-se à pessoa com surdez unilateral, nos concursos públicos, a reserva de vagas destinadas aos candidatos com deficiência física. 3. Reexame necessário conhecido e ao qual se nega provimento.‖ (BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Reexame Necessário em Mandado de Segurança nº

Em consequência desse posicionamento majoritário, verifica-se que o TST, no intuito de concretizar o art. 37, VIII, da CRFB, vem contribuindo para o enquadramento errôneo de indivíduos no grupo de pessoas com deficiência, e, consequentemente, vem deferindo o benefício da reserva de vaga em cargos e empregos públicos a pessoas que não possuem qualquer dificuldade ou impedimento para sua plena inserção no mercado laboral em detrimento daqueles que efetivamente necessitam fazer uso dessa política afirmativa para ter seu direito fundamental ao trabalho efetivado. Então, com esse posicionamento, o Colendo Tribunal, ao invés de contribuir efetivamente para a concretização do comando constitucional supra referido, o descaracteriza, reduzindo ainda mais as chances dos integrantes desse grupo vulnerável conseguir ocupar um posto de trabalho no serviço público, já que parte das vagas a eles reservadas estão sendo ocupadas por indivíduos com limitação funcional, mas não caracterizados com pessoas com deficiência, ante a ausência de barreiras para o pleno exercício de seus direitos.

Ainda no âmbito trabalhista, cabe aqui analisar o posicionamento do TRT 21ª Região, uma vez que este é o tribunal com competência trabalhista no Estado do Rio Grande do Norte, local onde estão sediadas as Instituições Federais de Ensino objeto de estudo deste trabalho.

De acordo com a pesquisa realizada nos acórdãos do Egrégio Tribunal, verifica-se que, assim como o TST, o mencionado tribunal regional também adota como parâmetro para caracterização da deficiência o Decreto nº 3.298/99, e suas alterações posteriores, realizando, igualmente, interpretação sistemática do citado diploma legal, assim como ainda encontra-se aplicando o modelo biomédico, visto que valoriza apenas a existência de limitação funcional para enquadrar alguém como pessoa com deficiência, não atentando para o novo conceito

insculpido na CDPD, nem para o modelo biopsicossocial353.

Ressalte-se que, da mesma forma que o TST, o posicionamento do TRT 21ª Região também contribui para o desvirtuamento da política de cotas ao trabalho, constitucionalmente

1220-74.2012.5.15.0000. Relator: Ministro João Oreste Dalazen, Órgão Especial. Brasília, Julgado em 02/09/2013, Publicado no DEJT do dia 13/09/2013).

353 Sobre o assunto, cf. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho 21ª Região. Mandado de Segurança nº 36900-

89.2011.5.21. Acórdão nº 113.999. Impetrante: Fernanda Daniele Gonçalves de Macedo. Impetrado:

Desembargador Presidente do TRT da 21ª Região. Des. Relatora: Maria de Lourdes Alves Leite. Natal, Julgado em15/12/2011, Divulgado no DEJT nº 879, em 20/12/2011, Publicado em 21/12/2011. Traslado nº 01614/2011. Disponível em: <http://www.trt21.jus.br/asp/jurisprudencia/pesquisatextual.asp>. Acesso em: 14/04/2014; BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho 21ª Região. Mandado de Segurança nº 25900-92.2011.5.21. Acórdão nº 113.737. Impetrante: Alberto Jorge Araújo. Impetrado: Desembargador Presidente do TRT da 21ª Região. Des. Relatora: Lygia Maria de Godoy Batista Cavalcanti. Natal, Julgado em 01/12/2011, Divulgado no DEJT nº 874, em 13/12/2011, Publicado em 14/12/2011. Traslado nº 01592/2011. Disponível em:

instituída, haja vista o defasado parâmetro legal utilizado para caracterização da pessoa com deficiência, nos termos acima explicitados.

Partindo agora para uma análise do posicionamento do Tribunal Superior de Justiça (STJ) sobre a temática em enfoque, destaca-se o Acórdão proferido no Agravo Regimental no Recurso em Mandado de Segurança nº 24.445 - RS, publicado no Diário da Justiça Eletrônico

(DJe) em 17 de outubro de 2012354.

Como é possível verificar na leitura da ementa mencionada, o STJ já possui entendimento pacificado quanto à possibilidade de caracterização da deficiência física por perda auditiva unilateral, desde que igual ou superior a 41 decibéis. Ou seja, ante a vigência do modelo biomédico, o referido Tribunal já realizava uma interpretação sistemática das

normas regulamentares, como se pode verificar no inteiro teor do Acórdão acima referido355,

tomando por base a legislação infraconstitucional que rege a matéria, mais precisamente a Lei nº 7.853/1989 e o Decreto nº 3.298/1999, com a redação conferida pelo Decreto nº 5.296/2004. Desse modo, o STJ considera o art. 4º do Decreto nº 3.298 como um rol meramente exemplificativo, o qual deve ser interpretado em conjunto com o disposto no artigo antecedente, de forma a se privilegiar a Política de Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, disposta na referida lei.

354 ―ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM

MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA AUDITIVA UNILATERAL. RESERVA DE VAGA. POSSIBILIDADE. DILAÇÃO PROBATÓRIA. DESNECESSIDADE. SURDEZ AFERIDA POR JUNTA MÉDICA. 1. A solução da controvérsia não exige dilação probatória, pois não se discute o grau de deficiência do recorrente, que já foi aferido por junta médica, mas, sim, determinar se a surdez unilateral configura deficiência física, para fins de aplicação da legislação protetiva. 2. Nos termos da Lei nº 7.853/1989, regulamentada pelos Decretos nos 3.298/1999 e 5.296/2004, toda perda de audição, ainda que unilateral ou parcial, de 41 decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz, caracteriza deficiência auditiva. 3. O laudo médico oficial confirmou que o candidato possui "deficiência acústica unipolar" no ouvido esquerdo, o que se revela suficiente para a caracterização da deficiência, porquanto a bilateralidade da perda auditiva não é legalmente exigida nessa seara. 4. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que a pessoa que apresenta surdez unilateral tem direito a vaga reservada a portadores de deficiência. A propósito: AgRg no AREsp 22.688/PE, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 24/4/2012, DJe 2/5/2012; AgRg no RMS 34.436/PE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 3/5/2012, DJe 22/5/2012; AgRg no REsp 1.150.154/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 21/6/2011, DJe 28/6/2011; RMS 20.865/ES, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 3/8/2006, DJ 30/10/2006. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.‖ (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso em Mandado de Segurança nº 24.445/RS. Relator: Ministro OG FERNANDES. Brasília, 09/10/2012. Publicado no DJe 17/10/2012. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 05/04/2014).

355―O agravo não merece êxito, porquanto a interpretação dada à Lei nº 7.853/1989, que dispõe sobre a Política

Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, e ao Decreto nº 3.298/1999, cujo art. 3º, I, define, para fins do benefício previsto no referido art. 37, VIII, CF/1988, os contornos da expressão "pessoas

portadoras de deficiência ", é consonante com a jurisprudência firmada nesta Corte Superior no sentido de que a

pessoa que apresenta surdez unilateral tem direito a vaga reservada a portadores de deficiência, em concursos públicos.‖ (Idem).

Portanto, mediante mencionado método interpretativo, o STJ busca concretizar o comando constitucional insculpido no art. 37, VIII da CF, e, consequentemente, auxiliar na integração social da pessoa com deficiência, garantindo-lhe o direito fundamental ao trabalho. Entretanto, em verdade, em razão a esta estrita vinculação a aspectos biomédicos, o Superior Tribunal de Justiça acaba por desvirtuar o intento da ação afirmativa disposta constitucionalmente, eis que reconhece como pessoa com deficiência indivíduos que, a priori, possuem apenas limitações funcionais, sem se perquirir se tais limitações são responsáveis por sua dificuldade ou impedimento em inserir-se socialmente.

Note-se que esta ausência de atualização do parâmetro legal para a identificação da pessoa com deficiência, além de causar distorções no sistema, gera também um ranço da sociedade em desfavor de ações afirmativas, pois se visualiza cotidianamente a excepcionalização do critério meritocrático para o reiterado privilégio de indivíduos ―normais‖ – isto é, indivíduo cuja deficiência apresentada não o impede ou dificulta o

exercícios de seus direitos, por isso, são tidos como os mais ―espertos‖, que se aproveitam de

um falha do sistema para tirar proveito imoral, e agora com a ratificação da CDPD, ilegal –,

quando dita medida de exceção deveria ser utilizada para beneficiar pessoas em situação de