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2. OS FUNDAMENTOS DA POLÍTICA AFIRMATIVA DE PROTEÇÃO A

2.3. MULTICULTURALISMO

2.3.3. Por um diálogo intercultural

Atento as críticas realizadas ao universalismo dos direitos humanos, Antônio

Augusto Cançado Trindade94 afirma que estas servem de alerta frente a todos os tipos de

fundamentalismo, e não apenas o religioso, pois aquele que busca impor modelo único de organização social e ―modus vivendi‖ é tão nefastos quanto os demais.

Nesse sentido, destaca-se que o fundamentalismo econômico, acentuado pela globalização neoliberal, é tão perigoso e devastador quanto o fundamentalismo religioso. Por isso, se faz premente a reconstrução da sociedade mundial com fulcro no princípio da solidariedade, no afã de combater as mazelas causadas por um grupo reduzido de

―globalizadores‖ em detrimento de milhões / bilhões de ―globalizados‖95.

A mercantilização das relações humanas, com a consequente despersonalização dos seres humanos, somada a imposição de um modus operandi uniforme afrontam os direitos culturais do homem, ameaçando destruir o legado cultural de gerações e civilizações passadas. O ser humano é reduzido à condição de coisa, onde os fins compensam os meios (TRINDADE, 2003, 334-335).

9292 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma Concepção Intercultural dos Direitos Humanos. In:

SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. 2 tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 15.

93 FLORES, Joaquín Herrera. La Construcción de las garantías: Hacia una concepción antipatriarcal de la

libertad y la igualdad. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. 2 tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 113-11, 133.

94 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, vol. III.

Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 322.

Por sua vez, Boaventura de Souza Santos96, também considerando as constantes críticas deferidas ao universalismo dos direitos humanos nas últimas décadas, afirma ser possível compreender as políticas envolvidas em tais direitos como políticas culturais, e em razão disso questiona como então poderão os direitos humanos ser, concomitantemente, uma política cultural e global.

Na tentativa de responder esse questionamento e encontrar um ponto de equilíbrio

entre universalistas e relativistas, toma-se como marco teórico a obra ―Para uma Concepção

Intercultural dos Direitos Humanos‖, na qual o referido autor propõe que os direitos humanos

sejam concebidos como um mecanismo de globalização97 contra-hegemônica (ou alternativa),

a qual pode ser entendida como um fenômeno que inicia na base da sociedade mundial e não nas classes dominantes e detentoras do capital, por isso Boaventura refere-se à globalização ―a partir de baixo‖.

Nesse contexto, a globalização contra-hegemônica seria a antítese da globalização hegemônica, predatória, capitalista, massificante, que visa impor um único modelo a todos, independentemente das características particulares de cada sociedade e indivíduo.

Dita globalização alternativa é construída por dois processos: o cosmopolitismo insurgente e o patrimônio comum da humanidade.

O primeiro consistiria ―na resistência transnacionalmente organizada contra os

localismos globalizados98 e os globalismo localizados‖, isto é, em encampar um combate

organizado contra as mazelas ocasionadas pela globalização neoliberal, tais como a degradação ambiental, as exclusões e discriminações sociais. Desta feita, o cosmopolitismo insurgente seria exercido através de um amplo e variado conjunto de iniciativas, movimentos

e organizações mediante articulações transnacionais99 (SANTOS, B., 2010, p. 9-10).

Destaque-se que, nessa concepção, o cosmopolitismo insurgente não objetiva uma homogeneização; não busca neutralizar diferenças, identidades e autonomias. Ao contrário,

96 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma Concepção Intercultural dos Direitos Humanos. In: SARMENTO,

Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. 2 tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 7.

97 Boaventura (Para uma Concepção Intercultural dos Direitos Humanos. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA,

Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. 2 tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 8) compreende a globalização como ―processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival‖.

98 Segundo Boaventura (Idem, p. 8-9), o localismo globalizado pode ser definido como ―o processo pelo qual

determinado fenômeno, entidade, condição ou conceito local é globalizado com sucesso‖, enquanto que o globalismo localizado consistiria ―no impacto específico nas condições locais das práticas e imperativos transnacionais que emergem dos localismos globalizados‖.

visa conferir um peso equitativo entre os princípios da igualdade e do reconhecimento da diferença.

Por sua vez, o patrimônio comum da humanidade consistiria em valores ou recursos caracterizados por seu viés global e voltados à sustentabilidade da vida humana no globo terrestre. Como exemplo, tem-se a preservação da biodiversidade, da camada de ozônio, etc.

Neste diapasão, a depender da concepção adotada de direitos humanos, estes podem atuar tanto a favor da globalização hegemônica como da globalização contra-hegemônica. Em outras palavras, enquanto os direitos humanos forem considerados em abstrato, eles fomentaram os localismos globalizados, pois prevaleceriam contra qualquer visão diferenciada de dignidade de pessoa humana. Na medida em que passarem a ser concebidos como interculturais, os direitos humanos operaram como cosmopolitismo insurgente.

Então, para que os direitos humanos possam ser vistos como um cosmopolitismo insurgente é necessário algumas premissas: 1) superação do debate entre universalismo e

relativismo cultural – pois é preciso realizar diálogos interculturais, focados nas preocupações

semelhantes, apesar de um universo cultural diferente, bem como se faz essencial o desenvolvimento de critérios na reformulação de uma política emancipatória dos direitos humanos; 2) reconhecimento de que todas as culturas possuem concepções próprias de dignidade da pessoa humana; 3) todas as culturas são incompletas e com concepções de dignidade humana problemáticas; 4) todas as culturas comportam variadas versões de dignidade da pessoa humana; 5) é preciso saber distinguir as lutas pela igualdade e pelo reconhecimento das diferenças, uma vez que são fenômenos comuns e hierarquizados em todas as culturas100.

Ressalte-se que tais premissas constituem um ponto de partida para possibilitar um diálogo intercultural, o qual não será uma tarefa fácil, haja vista a existência de diversos topoi em toda e qualquer cultura.

Diante disso, Boaventura propõe o manejo da hermenêutica diatópica como forma de minimizar a aridez desse diálogo, que poderá proporcionar recíprocas trocas culturais e aprendizagens.

A hermenêutica diatópica funda-se na ideia de incompletude dos topoi de cada uma das culturas, por mais fortes que estes pareçam ser, eis que todas as culturas são incompletas. Ademais, tem como objetivo elevar a consciência de incompletude mútua, à medida que

100 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma Concepção Intercultural dos Direitos Humanos. In: SARMENTO,

Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. 2 tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 16-18.

avança o diálogo intercultural, possibilitando um olhar diferente sobre a cultura do outro, na busca por pontos em comum e preenchimento de eventuais lacunas.

Resta evidente que a hermenêutica diatópica exige um processo diferenciado de produção do conhecimento, caracterizando-se por uma produção participação, coletiva e intersubjetiva.

Destaca-se que a realização desse diálogo intercultural, aliada a hermenêutica diatópica, permite a ocorrência de revisões recíprocas, nas quais as culturas envolvidas atuam simultaneamente como hóspede e anfitriã, facilitando a ocorrência de uma concepção híbrida

de dignidade da pessoa humana e, consequentemente, de direitos humanos101.

Em suma, afirma o autor que:

O multiculturalismo progressista pressupõe que o princípio da igualdade seja prosseguido de par com o princípio do reconhecimento da diferença. A hermenêutica diatópica pressupõe a aceitação do seguinte imperativo transcultural: temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza102.

Nesse diapasão, o multiculturalismo não constitui entrave ao universalismo dos direitos humanos quando atuam como cosmopolitismo insurgente, uma vez que, a partir da

diversidade cultural, deve-se ―buscar um denominador comum mínimo entre as distintas

culturas do mundo, para, então, ampliá-lo mediante um ‗cross-cultural dialogue‘‖, isto é, um

diálogo intercultural. Por conseguinte, as sociedades necessitam buscar a universalidade dos

direitos humanos através da identificação e cultivo de seus fundamentos interculturais103.

Registre-se, ainda, que no multiculturalismo busca-se a convivência entre os diferentes, de modo a se propiciar um diálogo intercultural, onde há pontos de convergência

que auxiliam no desenvolvimento socioeconômico do país104.

Em face do todo o exposto, observa-se que, parafraseando Bobbio, não cabe mais aqui a discursão quanto à natureza e fundamento dos direitos humanos, sejam eles absolutos ou relativos, naturais ou históricos, o essencial é que haja a construção e efetivação de meios mais seguros para garanti-los e concretizá-los, indo além das solenes e meras declarações.

101 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma Concepção Intercultural dos Direitos Humanos. In: SARMENTO,

Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. 2 tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 26.

102 Idem, p. 36.

103 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, vol. III.

Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 310.

104 Nesse sentido, vide, VIEIRA JÚNIOR, Ronaldo Jorge A. Rumo ao multiculturalismo: a adoção compulsória

de ações afirmativas pelo Estado brasileiro como reparação dos danos atuais sofridos pela população negra. In: SANTOS, Sales Augusto dos (Org.). Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas. Brasília: Ministério da Educação: UNESCO, 2005.

Para tanto, um pluralismo voltado para o intercâmbio cultural, que valoriza e respeita as diferenças essenciais de cada indivíduo e comunidade, sem visar à imposição de um modelo unificador, é um ponto de partida adequado para a superação da dicotomia universalismo versus relativismo.

Ademais, apesar de necessário, tem-se a consciência que, a efetivação de um constante diálogo intercultural, com respeito à diversidade e pautado no fim último de desenvolver um reconhecimento e proteção de um ―mínimo ético irredutível‖, se trata de uma tarefa árdua.

É preciso encampar o combate às mazelas sociais e ambientais ocasionadas pela globalização hegemônica, tendo como aliado os direitos humanos, como forma de cosmopolitismo insurgente, nos termos propostos por Boaventura de Souza Santos.

Portanto, considerando seus objetivos de combate às desigualdades socioeconômicas, respeito à dignidade da pessoa humana, concretização dos direitos humanos e o respeito ao direito à diferença, verifica-se o porquê do multiculturalismo ser um dos fundamentos da política de ação afirmativa.