• Nenhum resultado encontrado

A CARTA AO LADO DE OUTROS GÊNEROS DISCURSIVOS

Notamos, no entanto, que as cartas escritas pelos alunos não remetem somente à escrita de cartas em sala de aula. Em outros trechos, podemos perceber que houve alunos que entenderam que, ao escrever cartas em sala de aula, estavam produzindo redações – o que interpretamos como gêneros próprios da escola, criados por ela, como estratégia para o ensino da escrita. Vamos aos fragmentos:

(5)

49 Não é objetivo deste trabalho discutir a possível relação que há entre os gêneros discursivos bilhete e

carta, mas fica aqui registrada uma sugestão de pesquisa. Muito tem se falado do e-mail como uma continuidade da carta. E o bilhete, seria uma espécie de origem da carta? Em um sistema continuum de

situações discursivas (cf. cap. 2), que compreende os gêneros primários e secundários, estariam transitando

Uma coisa vou dizer não gosto de fazer redação não sei escrever não tenho idéias boa para escrever. (...) Desculpe da redação sem sentido.

(6)

Anna, mesmo não gostando muito de escrever redação, acho muito importante, o que vocês estão fazendo, pois a redação é muito importante principalmente nos vestibulares.

(7)

Seria legal que vocês voltassem no próximo semestre para que pudéssemos aprender algo mais, porque a redação e a forma como se escreve é muito importante e conceituada em um vestibular.

Ao lê-los, fica clara a interpretação que os alunos fizeram do trabalho das estagiárias: foram aulas de redação. Interessante observar que nas cartas onde aparece redação, encontramos também um vocabulário comum, que remete a temas recorrentes das aulas de português: gramática, erros de português, técnicas de redação, vestibular,etc.

(8)

Só gostaria que mudasse um pouco no bimestre que vêm, e passasse técnicas de redação e outras coisas importantes que irão cair nos vestibulares.

(9)

Eu achei bom escrever bastante para reparar meus erros e tentar melhora-lo em cada redação.

(10)

Desculpe dos erros de português

A maneira como estes autores nomeiam as questões que perceberam ao longo do trabalho realizado com eles remonta a uma coerência muito interessante de ser observada. Para eles, o objeto de ensino e aprendizagem não foi o gênero discursivo carta, uma vez que se produziu redações, com o objetivo de adquirir um certo padrão da língua: a variação escrita-culta. Daí a preocupação com erros, normas gramaticais, técnicas, vestibular. A escrita escolar, para estes autores, atende a estas finalidades e, por isto, não vemos nestas cartas nenhuma referência à comunicação, expressão de idéias – o que daria uma dimensão mais discursiva às produções que fizeram. A escrita de cartas, neste sentido, foi um mero exercício escolar, imposto e cobrado pela escola. A partir do que estes alunos afirmaram e/ou sinalizaram em suas cartas, podemos concluir que, neste caso, a carta passou por um forte processo de escolarização, tornando-se um gênero escolar, desvinculado de suas características originais.

Novamente esta dissertação busca uma solução aparentemente dicotômica, dividindo em cartas e redações a discussão realizada nas cartas escritas pelos alunos. Embora tal recorrência mostre um estilo de entender os objetos do conhecimento (inspirado por autores, citados neste trabalho, que discutem a dialogia, sem dicotomizar), esta divisão – cartas e redações – apareceu em cartas escritas por alguns alunos:

(11)

Embora eu não seJa muito fã de redação e carta, eu achei bom escrever bastante.

(12)

Gostei muito de escrever cartas, redações e das palestras também.

(13)

Quando o negócio é redação e carta, a coisa muda de figura.

Por que estes autores preferem falar em cartas e redações, dividindo em dois grupos os textos que produziram? Estes dados, ainda que apareçam na conclusão deste trabalho, foram observados por mim no momento que iniciei a análise de todas as cartas e deram origem às reflexões feitas nesta dissertação.

Ao dividir os textos propostos e escritos em sala entre carta e redação, podemos notar que, para os autores, dois gêneros discursivos foram trabalhados – o que, no entanto, não foi planejado pelas estagiárias, que acreditaram ter trabalhado com cartas durante todo o estágio. Como já mostramos nesta dissertação, a escrita de carta, neste contexto, pode ser entendida como o momento em que o gênero discursivo, mesmo trabalhado em sala de aula, conservou, em maior grau, suas características originais: buscar a comunicação com alguém distante. São cartas os textos escritos a parentes, namorados(as), amigos, Presidente da República, e de certa maneira, às estagiárias. São redações as cartas argumentativas escritas à Virginia Puglisi, ao pastor, à professora de ciências. Este conjunto de textos parece não ter correspondido a um querer –dizer dos alunos – condição necessária para o uso de um determinado gênero discursivo. Neste caso, os alunos escreveram as cartas, como um exercício escolar, imposto pelo professor.Toda a discussão sobre escolarização do gênero discursivo e produtos escolares, realizada nesta dissertação nasceu aqui, a partir da leitura desses trechos.

Ainda sobre esta discussão, um outro trecho de carta é muito revelador, e não diz somente sobre a distinção entre redações e cartas, mas como, num processo de aquisição de um gênero discursivo, a produção de redações pode dar lugar ao uso de um gênero, quando o sujeito passa a experimentar situações próprias do discurso, ao escrever:

(14)

Anna, eu gostei muito das aulas de redação. Pois com todos os seus esforços até que deu para melhorar nas redações, eu que não gostava nada nadica de nada já estou começando a gostar de escrever cartas.

Neste fragmento, apesar das palavras redação e cartas aparecerem num mesmo contexto não podemos entender que foram usadas com valor sinonímico. Observando bem, notamos que elas pertencem, sim, a dois universos distintos, e, da maneira como estão dispostas na frase, mostram que uma situação (escrever cartas) evoluiu da outra (produção de redações).Nesta história particular de constituição do gênero discursivo, a escrita de cartas se iniciou como uma atividade escolar – quando ainda ela as escrevia e não gostava do que fazia.No entanto, a medida que vai escrevendo (e usando o gênero discursivo), parece começar a gostar de escrever cartas – e não redações. Neste trecho, parece ser registrado um momento importante de uma história de escrita, que acontece com a aquisição da carta.

Documentos relacionados