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As ações das estagiárias foram o tema mais discutido e comentado nas cartas, o que nos mostra como o conteúdo temático pode se influenciar pela presença de interlocutores reais, situação característica deste gênero discursivo. Os alunos parecem perceber isto e direcionam as suas mensagens a estes interlocutores específicos, fazendo questão de tratar sobre eles em quase toda a extensão das cartas. A presença dos interlocutores no mesmo ambiente (o que não é comum que aconteça quando se escreve uma carta) parece influenciar nos aspectos que elegem para falar das estagiárias: há desde questões mais físicas, como aparência, características da voz até o comportamento – todos tratados de maneira bastante pessoal:

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Vocês são legais, divertidas, e muito simpáticas.

Todos nós percebemos que você não falava muito, eu não sei o motivo, mas você quase não fazia comentários algum. Quando você voltar, vê se fica mais liberal, menos tímida.

Mas nunca deixe de ser sorridente.

Você atinge a sala com seus risos e eu acho isso o máximo.

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Você não é tímida, é bem extrovertida e sempre sorridente. (17) J - jeitosa o -otimista s -sorridente i -inteligente C - carinhosa a - amiga r - real l - legal a - amorosa

Ao elogiar e apresentar características que perceberam de cada uma, os alunos vão também mostrando um conhecimento bastante agudo da situação que participam: sabem que suas interlocutoras são estagiárias e que se preparam para ser professoras. Eles, com a experiência que têm como alunos, elencam aspectos importantes para um professor em formação e revelam uma concepção sobre o que é, como age e/ou como deve ser e como deve agir um professor. Um imaginário sobre o professor, então, se revela: é alguém que não deve ser tímido, deve ser tranqüilo, seguro, detentor do conhecimento, absoluto em suas explicações e respostas:

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Só que vocês precisam melhorar o comportamento com os alunos, pois varias vezes vi alunos questionarem algumas coisas e vocês não esclareceram a s dúvidas, disseram o que vocês acham certo,e continuaram com seus trabalhos, e a dúvida continuou.

Ao tratar das ações pedagógicas das estagiárias, e portanto, tratá-las como responsáveis, assim como o professor, pelo funcionamento das aulas, os comentários mais recorrentes dizem respeito à dinamicidade das aulas, ao produtivismo, ao ar de descontração, criado pela presença delas. No entanto, as aulas produtivas, que previam discussão e produção de cartas, geraram, para alguns, também uma certa monotonia e cansaço:

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Seu comportamento em sala de aula foi muito importante, você deixa o ar descontraído, tira dúvidas com facilidade.

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Espero que vocês não desistam pois quando há debates principalmente fica uma aula mais gostosa, mais dinâmica que uma simples aula de português

(21)

Mas o que nos deixou cansados, é o fato que em todas as aulas que esteve conosco sempre tínhamos que fazer carta.

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Eu gostei das aulas mesmo, apesar de todas elas serem aulas de cartas, são meio enjoadas.

Interessante notar a percepção dos alunos em relação ao papel das estagiárias: se num momento, chegam a aconselhá-las com a intenção de que elas se aproximem mais do que se espera de um professor, em outros momentos, podemos observar que as estagiárias, por não serem professoras da turma e, portanto, não participarem da rotina escolar, criam nas aulas um ar descontraído, um movimento diferente. Parece que agora, de acordo com o desejo dos alunos, é a vez do professor se mirar na ação das estagiárias, trazendo às aulas mais propostas variadas, mais dinamicidade:

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Anna, achei muito interessante o que vocês vem realizando em nossa sala de aula, é bom que quebra um pouco a rotina.

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Josiane gostei muito de ter aula com você e sua amiga, porque vocês duas nos descontraem buscando explicando sempre quando precisamos, e aprovo seu jeito de dar aula que é muito bom.

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Também gostaria de lhe dizer que você vai ser uma excelente professora, pois já é.

Entre o “vai ser” e “já é”: este é o lugar meio indefinido das estagiárias,50 que os alunos perceberam e mostraram com tanta agudeza nas cartas. Na constituição do gênero carta, nesta sala de 3o ano, foi esta figura, a do estagiário, que acompanhou toda a produção dos alunos. O papel deste outro, que foi interlocutor, corretor, professor- estagiário, repercute na história da escrita destes alunos, como mostram os seguintes trechos:

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O trabalho de vocês foi muito importante para o desenvolvimento de nossa escrita e de nosso senso crítico.

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Com certeza, os alunos que cuidaram em emprenhar-se, ao menos um pouco, foram acrescidos de boas bases redacionais.

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Seu comportamento em sala de aula foi muito importante. Isso é fundamental para uma boa redação.

Ao se referir às ações das estagiárias e a influência que estas causaram na aquisição de escrita dos alunos, muitos afirmam que aprenderam a escreveram cartas, depois do trabalho que foi realizado com eles, como mostra o fragmento abaixo:

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50 Sobre o papel do estagiário, escrevi, na condição de professora que recebeu um estagiário em sala de aula,

um artigo, cujos trechos transcrevo a seguir: “Os estagiários são jovens que transitam nesta linha sutil entre a juventude e a vida adulta, entre os bancos da universidade e o relógio de ponto no trabalho, entre o que aprenderam e o que devem colocar em prática, entre os alunos e professores. (...) Os estagiários são estes seres que ocupam este lugar meio sem nome na escola: acomodam-se em horários e aulas, mas trazem toda a agitação do mundo lá fora. Têm um ar descontraído de quem não vai fechar as notas no final do mês, mas trazem uma única e séria responsabilidade: a de olhar para o que acontece ali dentro. E eles vêem muita coisa. Tanto que, quando movimentam suas mãos, seus pés, suas bocas mexem a escola de uma maneira que ela há muito não era sacudida” (DINI, A.C.O. (2001).Tudo que move é sagrado em Começando a viver os

Planos para o Futuro – Coletânea de Textos dos Alunos de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa. (Org. Lílian Lopes Martin da Silva). Campinas: FE/ Unicamp.)

Eu que não sabia escrever cartas, passei a conhecer um pouquinho. Tenho certeza que tinha muitas pessoas aqui, que não sabiam escrever cartas.

Importante observar é que a aluna que escreveu esta carta mostrou-se muito familiarizada com o gênero epistolar, quando escreveu uma carta direcionada à mãe, de acordo com a primeira proposta. Ao escrever as cartas argumentativas, no entanto, acaba produzindo um texto que não apresenta interlocução, ainda que a estrutura se aproxime de uma carta.

Para esta aluna, como para outros, os momentos de ensino e aprendizagem aconteceram quando tratamos sobre argumentação direcionada a um interlocutor específico – cartas argumentativas – ou questões gramaticais, como concordância verbal, ortografia, etc. Outros momentos passam despercebidos em suas avaliações. O que não perceberam e esta dissertação conclui é que não narramos aqui somente a história de ensino e aprendizagem de um gênero discursivo, mas sim como ele foi constituído, ao longo de quatro meses, em/por uma turma de alunos do Ensino Médio. Constituição que se fez a partir de uma experiência de uso da carta, trazida pelos alunos de outras esferas sociais, de um imaginário que se formou sobre o gênero discursivo carta e de um processo de escolarização sofrido pelo gênero, quando introduzido em sala de aula, materializado nas cartas argumentativas e nos exercícios de reescrita.

No trabalho com as cartas, a noção de ensino e aprendizagem se amplificou, graças ao caráter histórico do gênero discursivo e o imaginário que se forma sobre ele, ao longo dessa história, pelas pessoas que o usaram.Um gênero discursivo não se ensina e/ou se aprende, simplesmente: ele é constituído por/em um grupo de pessoas que o utiliza.

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