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5 OS DIAS COM ELE

5.1 A casa, a perda da memória, a imagem que falta

Essa casa, não tem 'lá fora', a casa só tem 'lá dentro' Aguapé, de Belchior e Fagner

Esse filme é integralmente feito no interior de uma casa, a casa onde mora o pai. Não se sabe onde ela fica, nem se mostra a fachada, a calçada e se tem calçada. Não se diz a cidade, nem se permite informar mais algo, isso faz pressupor que a pedido dele ou herança do tempo de termos obscuros (a ditadura militar brasileira). O filme começa e termina entre paredes. Assim, soa íntimo, claustrofóbico, seco. Mas também cheio de silêncios, ecos e vazios de um passado sem documentos.

Mais uma vez se vê a casa como lócus de um filme autobiográfico. Aqui, territorialmente, esse domínio é total, do início ao final. É a casa, armários, louças, livros, esteira de caminhada, a luz que entra pela janela, a noite que lhe escurece o mundo. Dele, o pai, se vê sempre a frente, o lado, o blazer, o suspensório, o pijama, o pulôver, os óculos e calhamaço de papéis. E alguns vícios de linguagem, p çõ , c m “ cê ?” E m s, uma inteligência e uma audição que começa a falhar... e uma cadeira vazia.

Não se tem registros, nem filmes, nem gravações. Há uma carta, guardada há anos, apenas. A ausência aqui é de memórias sobre a história dos dois, visto que conviveram por pouco tempo, quando ela ainda era criança. Assim como nos dois filmes comentados anteriormente, Os dias com ele se funda na percepção de que algo está ali, bem ausente – relembramos aqui a placa de rua de Camille Claudel, aludida no capítulo anterior. A ausência de uma convivência entre pai e filha é trazida à tona e incomoda não só os dois como ao próprio espectador. De fato, deve ser muito difícil fazer um filme sobre o pai que não se conhece quase nada, não se tem em fotografia, nem em registros de memória. Passar do roteiro à filmagem a partir do vazio deixado, talvez, seja a forma encontrada por ela para preencher-se. Um filme sobre a ausência, que ao tentar trazer de volta o vazio, permite pensar em como superar a lacuna.

Para suprir esses vazios e a falta de memória, a diretora redige sua melhor página: a utilização de arquivos de memória de diversas famílias, no intento de dar a saber sobre a memória social de um Brasil que ela não teve direito de conhecer por dentro. Ela faz uma bricolagem de imagens caseiras em completo ê c N “ u - ” um â c qu ã h u – o silêncio é gritante. Muitas imagens de filmes caseiros em vídeo e bitola Super 8 são mostrados, mas nada se sabe sobre esses filmes, de quem são, quem filma, quem é mostrado. As famílias mostradas não são as deles, são desconhecidas, indefinidas. A imagem é usada como marca de um período, pelo estilo de captação que caracteriza uma época.

Mas o passado já não é mais possível de se resgatar. Por isso, as imagens de arquivo ficam inteiramente mudas. Memória = silêncio. Os laços quebrados já esgarçaram demais as suas pontas e a história que os une é a história feita dos trechos de filmes de outras famílias, em que os pais estão de mãos dadas com os seus filhos. Quando eu morrer, não quero choro, nem vela, quero uma fita

amarela, gravada com o nome dela, diz a letra da música de Noel Rosa, que toca no

filme de forma diegética.

Quando se caminha para o final do documentário, há o plano mais longo do filme, em que a câmera começa a gravar a imagem a partir de uma cadeira vazia, antecipando a chegada de Henrique Escobar, quando aparece fora do quadro a melhor fala do pai, um marxista questionando a filha e o sentido do próprio filme: eu

não fui bobo nem como preso... talvez você nem saiba direito quem você está filmando... (fala do pai, fora do quadro). Como intelectual perspicaz, ele reconhece

que este filme ao qual está dando seu depoimento não é sobre ele, mas sobre a filha.

- Se fosse um filme sobre mim, tudo bem, mas é você... (diz ele) - É a história de meu país... (...), ela responde.

Na moldura da memória, o olhar da diretora não estava mostrando a imagem do todo, nem de alguém completo, mas sobre fragmentos do pensamento de alguém sobre a vida e sobre como ela pode ser vivida, como se escolheu vivê-la. Algo muito próximo de um filme existencial.

Fotografia XXI: Pai e filha. Reprodução internet.

O pai sustenta o argumento: Mas acho que nós dois estamos enganados,

porque se nós dois, de maneira diferente, merecemos um filme. As pessoas e o mundo não merecem um filme sobre nós...

Em entrevista, Maria Clara Escobar mostra consciência de que além do filme sobre sua relação com o pai, intenta mostrar um olhar sobre o Brasil:

Acredito que o filme, além de dar palavra a uma pessoa muito lúcida, que não está em um lugar comum da esquerda que conhecemos agora, fala de muitas coisas – fala de fazer um filme, de falarmos a respeito e da conduta do nosso país diante ao que aconteceu na ditadura. É, em certo aspecto, ir contra uma certa conduta burguesa em se calar. Acho que por isso, e talvez ainda por outros motivos, me pareceu que fazia sentido fazer um filme. Porque nunca se tratou de um acerto de contas ou um filme-umbigo, termos ultimamente em voga.

De fato, tudo o que se passa no filme, a falta de dados de memória, o distanciamento parental entre os dois, tem uma razão subjacente e foi provocado pelo contexto da ditadura, tanto quanto pela decisão dos indivíduos. Além de abrir a voz contra os sufocos da ditadura, ela questiona o posicionamento dos antigos companheiros da esquerda brasileira. Também por isso é um filme que se investe de coragem. Quando todos gostariam de escapar por um alçapão abaixo dos pés, a coragem de envolver-se na trama de fragmentos de dobras no labirinto de memórias vazias pode tê-la levado longe demais, em vez de ter-lhe feito perder-se de vez.